domingo, 15 de novembro de 2009

Reflexão do dia - Luiz Weneck Vianna

“Mais que mudanças tópicas ou de ênfase, é toda uma forma de Estado que ressurge, em particular no novo papel concedido às corporações e à representação funcional, evidente nas funções delegadas ao Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). O Estado se amplia com a incorporação de representantes das entidades classistas de empresários e de trabalhadores, e são guindadas à condução de ministérios estratégicos as lideranças das múltiplas frações da burguesia brasileira — a industrial, a comercial, a financeira, a agrária, inclusive estes culaques à brasileira, que começaram a sua história na pequena e média propriedade — lado a lado com as centrais sindicais e com os representantes do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST).”


(Luiz Werneck Vianna, no 33º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu/MG de 26 à 30/10/2009)

Merval Pereira:: E a cigana se enganou...

DEU EM O GLOBO

A primeira eleição a gente nunca esquece, especialmente a de 1989, que tinha várias particularidades para mim: naquela que era a primeira eleição direta para presidente, seria a primeira vez em que votaria, pois quando fiz 18 anos estávamos em plena ditadura militar; era editor-chefe do GLOBO e, por uma coincidência dessas que não acontecem todos os dias, um dos candidatos a presidente, Fernando Collor, havia sido meu colega de colégio. E ainda havia uma história familiar curiosa. Minha mãe, grávida, passava férias em Caxambu, uma estação de águas em Minas muito em moda naquela época, 1949, quando uma cigana leu sua mão e decretou: seu filho vai ser presidente da República.

A cigana estava certa, só que com o radar um tanto desfocado. Acontece que ao lado de minha mãe estava uma amiga, Leda Collor de Mello, também grávida daquele que seria o trigésimo segundo presidente da República do Brasil.

Depois de cursarmos juntos o ginásio no Colégio São Vicente de Paula, no Rio, aonde chegamos a fazer juntos um jornalzinho, nos separamos, Collor foi para Brasília e eu fiquei no Rio.

Muitos anos depois, voltamos a nos cruzar em Brasília, para onde fui trabalhando no GLOBO como repórter, e ele era deputado federal, mas não tivemos muito contato.

Quando o então governador de Alagoas começou a despontar como o “caçador de marajás”, e depois possível candidato a presidente, comecei a me interessar de longe pela atuação daquele ex-colega.

Com a aproximação da campanha eleitoral, o contato foi restabelecido, e um dia combinamos um almoço no Rio. Me lembro bem, foi no antigo Hotel Méridien, em Copacabana.

Collor acabara de ser muito aplaudido no desfile das escolas de samba, transformandose num fato político relevante.

Eu ainda disse a ele: “Você não vai ser candidato a presidente nada, quer mesmo é ser vice de alguém”.

Ele me pareceu sincero quando respondeu: “Vou ser candidato e vou ganhar a eleição. Em todo lugar que eu vou é a mesma coisa, as pessoas querem que eu seja candidato”.

Como se tivesse combinado, de repente uma senhora abordou-o na mesa para pedir que continuasse daquela maneira, que se tornasse presidente para dar um jeito no país. Era de fato um fenômeno eleitoral.

No decorrer da campanha, porém, fomos nos afastando gradualmente, ele crescendo nas pesquisas até chegar à liderança.

Eu, desconfiado de que aquilo não ia dar certo, o que parecia novo era a velha política oligarca fantasiada de modernidade.

Houve momentos da disputa em que parecia que Afif Domingues, do PL, poderia decolar; o senador Mário Covas, do recém-criado PSDB, fez um discurso defendendo um “choque de capitalismo” e parecia uma alternativa melhor do que o novato Collor, mas não se mostrou viável, não decolou.

Lembro-me de uma conversa com o candidato do PMDB, Ulysses Guimarães, na casa de Renato Archer, levado por meu amigo Jorge Bastos Moreno, seu assessor de imprensa na campanha presidencial, em que o grande político falava na virada que daria quando o PMDB colocasse em campo toda sua máquina partidária, o que nunca aconteceu.

A campanha ia se afunilando com os três candidatos, Lula e Brizola pela esquerda e Collor pela direita, e o clima político foi se radicalizando à medida que se aproximava a definição.

Os programas eleitorais chamavam a atenção tanto pela agressividade, especialmente o de Collor, quanto pelas novidades tecnológicas que introduziram.

O presidente José Sarney foi atacado de todas as maneiras pelos candidatos, especialmente Collor, que o chamou até de “corrupto e safado”.

Lula não ficou atrás, e disse certa vez que Maluf era “um trombadinha” perto do governante da Nova República, José Sarney.

As redações eram majoritariamente petistas, e a do GLOBO não era diferente. Onde Lula aparecia, não era raro que até os repórteres aderissem ao coro de “Lu-la-lá” que arrebatava os militantes.

Eram comuns também os confrontos entre militantes, especialmente os “colloridos” contra os “petistas” — não que os brizolistas fossem menos agressivos.

Na Brizolândia, no centro do Rio, os confrontos eram diários.

Mas faltavam votos a Brizola em estados fundamentais, como Minas e São Paulo.

Na definição de quem iria para o segundo turno contra Collor, Brizola e Lula disputavam palmo a palmo.

Lula venceu por 0,5%, e Brizola morreu convencido de que fora roubado na apuração dos votos, numa conspiração para colocar Lula no segundo turno, um candidato mais fácil de ser derrotado, segundo Brizola.

Lula mostrou-se, porém, um candidato fortíssimo, e o grau de radicalização da campanha ganhou tons dramáticos.

Houve o polêmico episódio da Miriam Cordeiro, que foi levada ao programa de Collor para acusar Lula de tentar fazê-la abortar a filha de ambos, Lurian, poucos dias antes do debate do segundo turno entre Collor e Lula.

O debate foi tenso, com Collor sugerindo que tinha acusações gravíssimas contra Lula em uma pasta que colocou estrategicamente na sua mesa, e Lula nervoso, sem conseguir reagir.

Perdeu o debate e a eleição.

Hoje, 20 anos depois, vendo Lula, Sarney e Collor unidos no mesmo projeto político, vejo como eram ingênuos os militantes de ambos os lados, que radicalizaram aquela primeira eleição direta para presidente do Brasil depois da ditadura.

E, com o que aconteceu no governo Collor, e a confissão de Lula, de que não estava preparado para governar se fosse eleito, vê-se que não tínhamos escapatória naquele ano de 1989.

Qualquer que fosse o resultado, teria havido uma crise política.

Pensando bem, aquela cigana de Caxambu não estava com nada.

Dora Kramer:: O jogo do João bobo

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

É intrigante a insistente solicitude com que governistas se dispõem a aconselhar o governador de Minas Gerais, Aécio Neves, a persistir na luta para obter a legenda do PSDB na disputa pela Presidência da República em 2010.

Tecem loas à capacidade de Aécio para agregar aliados, insinuam que se ele for o candidato da oposição o governo estará em maus lençóis porque a aliança em torno de Dilma Rousseff tenderia a explodir em função do êxodo de governistas em direção à candidatura do mineiro e alimentam abertamente a tese de que "Minas" tende a se insurgir contra uma posição subalterna, pois a sucessão presidencial "passa" necessariamente por lá.

Começando pelo fim: se Minas não aceita uma posição subalterna e tem - como, de fato, tem - a importância estratégica devida ao segundo maior colégio eleitoral do País, por que a direção nacional do PT não começa por organizar sua própria seara, hoje às turras no Estado, ao invés de incentivá-la a se tornar uma sublegenda do PMDB?

É que a preocupação primordial do governo é afastar o máximo de obstáculos possíveis do caminho de Dilma Rousseff, haja vista a determinação do presidente Luiz Inácio da Silva em tirar o deputado Ciro Gomes do páreo e acomodá-lo na disputa pelo governo de São Paulo.

Nessa linha, a paúra maior é com a possibilidade de o PSDB juntar os governadores de São Paulo e Minas Gerais numa mesma chapa. Se a dupla seria imbatível ou não, só o eleitor para confirmar. Mas é fato que nas hostes governistas o temor é grande porque a avaliação em tese é a de que seria praticamente impossível derrotar José Serra e Aécio Neves juntos.

O ideal, qualquer governista confirma, teria sido conseguir que Aécio saísse do PSDB e concorresse por outro partido, de preferência o PMDB, para tirar dos tucanos os votos de Minas.

Essa possibilidade morreu com o fim do prazo para filiação partidária dos candidatos e a permanência de Aécio Neves no PSDB. A meta do adversário passou a ser, então, a tentativa de alimentar a cizânia interna na esperança de que se repita o cenário de 2002, quando boa parte do PSDB fazia cara de paisagem enquanto José Serra disputava a Presidência com Lula.

É do jogo, não fere nenhuma regra, mas o caminho escolhido agride a lógica dos fatos e não faz jus à inteligência dos envolvidos. De ambos os lados.

Os petistas dizem por toda parte que Aécio é o candidato mais difícil de ser derrotado, que eles prefeririam mil vezes concorrer com José Serra e que se o mineiro for escolhido está tudo perdido. Cobrem o governador de Minas de elogios, fazendo dele um juízo que não condiz com quem aprendeu na família que a política é a arte de ser matreiro.

Se Aécio é mesmo, na visão do PT, o adversário mais perigoso, o natural seria combatê-lo, minar suas chances, desqualificá-lo no lugar de elevá-lo à condição de divindade.

Nem Aécio acredita nem o PT se faz verossímil. Inclusive porque já usou o truque em 2006, quando ministros "confidenciavam" a jornalistas que o PSDB faria bom negócio em escolher o então governador de São Paulo, pois Geraldo Alckmin seria um páreo duríssimo para Lula.

Agora a coisa se repete. Dá para entender alguém que elege para si a melhor opção para o adversário? Só sendo mentira. E das bem bobas.

Futucar é preciso

Hoje à noite no programa É notícia (Rede TV!) o presidente Lula aparecerá dizendo em entrevista a Kennedy Alencar que o mensalão foi fruto de armação de seus adversários, uma tentativa de golpe da oposição que ele não denunciou porque não é função do presidente da República ficar "futucando essas coisas".

Quer dizer, então, que há quatro anos o Brasil correu o risco de enfrentar uma ruptura institucional e o chefe da Nação deixou passar em branco, permitindo que os responsáveis pela conspiração ficassem impunes, mais não fosse da condenação moral diante da opinião pública?

Se foi isso mesmo que o presidente Lula quis dizer na gravação feita durante a semana, cabe ao menos uma interpelação judicial para que sua excelência explique as razões pelas quais deliberadamente acobertou uma tentativa de agressão ao Estado de Direito, cláusula pétrea da Constituição.

Se não foi, cumpria reparar. A ausência de cobranças sérias a respeito das declarações do presidente e a aceitação tácita de que sua popularidade o torna inimputável é o que o autoriza a cometer toda sorte de leviandades, a ofender as pessoas, desmoralizar qualquer um que se oponha aos seus propósitos e ainda exigir que seja tratado com obsequiosa reverência.

A penúltima foi comparar a oposição a Hitler dizendo que a organização de militantes para atuar da eleição se assemelhava à cooptação de jovens na Alemanha nazista.

Como Lula fala tolices a mancheias, as pessoas acham graça. Vão rindo até o momento em que encontrarão razões para chorar e já não terão como reclamar.

Suely Caldas:: O muro abaixo do Equador

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Há dias a festa de 20 anos da queda do Muro de Berlim reuniu chefes de Estado dos EUA e países da Europa, ex-comunistas e capitalistas, liberais e autoritários, que protagonizaram a guerra fria pós-anos 1950 e ali estavam para, finalmente irmanados, celebrar o fim de uma barreira que dividiu uma cidade, separou famílias, extinguiu a liberdade. Abaixo da Linha do Equador, a guerra fria também chegou à América Latina, trazida pelos dois fantasmas que dominavam o mundo: o comunismo e o imperialismo norte-americano. Por aqui não havia muro. Mas generais que enxergavam o fantasma comunista em tudo tomaram o poder e impuseram suas ditaduras.

Prenderam, torturaram, mataram opositores, exterminaram a liberdade.

Até a queda do Muro de Berlim, em 1989, as ditaduras de esquerda no Leste Europeu e as de direita na América Latina espalharam autoritarismo pela força das armas, suprimiram a liberdade e a democracia. Nos últimos 20 anos elas foram desaparecendo e em nosso continente só restou Cuba. Recuperamos, enfim, a liberdade - o bem mais precioso e impregnado no homem e do qual ele não aceita abrir mão por vontade espontânea, independentemente da classe social.

O Muro de Berlim caiu há 20 anos e o leste da Europa não quer voltar no tempo, mas a ideologia que lhe deu origem ainda sobrevive no imaginário de alguns governantes latino-americanos, que sonham se eternizar no poder (como os ditadores) sem ter de enfrentar oposição nem imprensa livre e impor o seu "socialismo bolivariano" - o populismo ralé do século 21, que distribui dinheiro à população pobre e não desenvolve o país, não gera riqueza, empregos e salários.

Ao longo da História, ditaduras de esquerda e de direita sempre se confundiram, usaram os mesmos métodos. Quando o venezuelano Hugo Chávez, que se diz socialista e de esquerda, convoca "estudantes revolucionários, trabalhadores e mulheres" para uma guerra patética contra a Colômbia, nada mais faz do que repetir o general Roberto Viola - que se dizia de direita - ao conclamar o povo argentino para a aventura da Guerra das Malvinas contra a Inglaterra, em 1982. Em momentos diferentes da História e com ideologias diferentes, ambos usam o mais grosseiro e rude populismo de inventar uma guerra como meio de criar um falso clima patriótico-nacionalista e atrair apoio político da população. Na Argentina, milhares de jovens recrutas morreram no mar gelado das Malvinas sem saberem por quê.

Quando o mesmo Chávez fecha emissoras de rádio e TV, Cristina Kirchner cria uma nova lei da mídia e persegue os jornais El Clarín e La Nación - pelo simples motivo de lhe fazerem oposição - e Lula tenta criar um conselho para controlar a imprensa no Brasil, eles repetem a censura imposta pelas ditaduras militares da América Latina nos anos 70.

É verdade que a onda de terceiro, quarto mandatos para os governantes na Venezuela, Equador, Bolívia, Colômbia e, agora, Honduras não chegou ao Brasil. É também verdade que Lula não usa o caudilhismo autoritário de Chávez, Morales e Correa. Ele até pode baixar o nível e recorrer ao deboche rasteiro ao falar da oposição, mas não tenta calá-la.

O problema de Lula não é se perpetuar no poder - embora o ambicione e tudo fará para voltar em 2014. O retrocesso político que ele impõe ao País decorre de sua visão estreita e limitada de democracia. Oportunista ou verdadeiro, pensado ou irrefletido, o fato é que ele vê a democracia como um sistema político em que os governantes são escolhidos pelo voto. E ponto final. Basta ter eleição para consagrar as liberdades democráticas.

Mas quem passa sete anos no exercício do poder sabe que democracia é um sistema político construído a partir das instituições, que precisam funcionar a favor dos cidadãos, ser suficientemente fortes para barrar a incompetência, a corrupção e proteger a sociedade contra governantes mal-intencionados. Em suas viagens mundo afora Lula viu democracias frágeis, outras maduras, umas em estado embrionário, outras em estado avançado de construção, viu que o Paraguai é diferente da Dinamarca.

O Brasil começava a construir suas instituições quando Lula chegou com seu trator em 2002.

Loteou funções de Estado entre partidos políticos, com pessoas incompetentes e despreparadas. E, se o cumprimento da regra de uma instituição lhe desagrada, trata de mudá-la. Como faz agora com o Tribunal de Contas da União, cuja função ele quer substituir por um conselho, por ele controlado, para liberar suas obras suspeitas de corrupção.

Suely Caldas é jornalista e professora de Comunicação da PUC-Rio.

Clóvis Rossi:: O apagão mental

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - Pior que o apagão elétrico da terça-feira é o apagão mental que assola boa parte da elite dirigente brasileira. Trata-se de um blecaute permanente, sinal de que o subdesenvolvimento não é apenas econômico e social mas também de cultura política.

Apagão mental, por exemplo, é o do ministro Tarso Genro (Justiça), que classificou o blecaute de "microincidente", incapaz por isso de turvar o "nunca antes" neste país que se tornou a história oficial. Tarso não entende nada do assunto, que não é de sua área de atuação.

Mas precisava mostrar servilismo ao chefe -uma evidência de subdesenvolvimento político.Que o próprio chefe, depois, tenha chamado o "microincidente" de "desastre" não fez Tarso corar de vergonha. Levar pito do líder é um clássico nos casos de culto à personalidade, que também é sinal de subdesenvolvimento.

Apagão cultural deu-se igualmente com Dilma Rousseff, que decretou "caso encerrado", apenas para ser, ela também, desmentida pelo chefe. De novo, é típico do subdesenvolvimento da cultura política tapuia achar que não é preciso prestar contas ao público por problemas que afetam a vida de uma ou de milhões de pessoas.

Menos mal que, no público, há quem enxergue com clareza as coisas, caso de Cornelio Celso de Brasil Camargo, do Laboratório de Planejamento de Sistemas de Energia Elétrica da UFSC, que escreveu à Folha sobre o que fez o governo norte-americano no apagão de Nova York em 1965: "O governo não buscou evasivas, não fez uso político do evento e palpiteiros de plantão não foram ouvidos. A preocupação foi esclarecer tecnicamente o que aconteceu.

Foi montada uma comissão federal de alto nível, com técnicos de empresas elétricas e professores de universidades, para emitir um relatório", lembrou o leitor. Acender as luzes não é tão difícil, não é mesmo?

Eliane Cantanhêde:: Microincidentes

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

BRASÍLIA - Para o ministro da Justiça, Tarso Genro, o apagão que atingiu 18 Estados, mais de 60 milhões de cidadãos e paralisou o país foi um "microincidente".

Para o de Minas e Energia, Edison Lobão, foi um problema de "tempestade, vento, raios", e não se fala mais nisso.

Para o líder do PT, Aloizio Mercadante, "a oposição está muito nervosa, devia tomar maracujina". E, para Dilma Rousseff, ex-ministra de Minas e Energia e manda-chuva do setor e do sucessor, "racionamento é que é barbeiragem".

Nessa profusão de pérolas, ninguém conseguiu superar o insuperável Lula. Vejamos o que o presidente disse: "Essa questão do clima é delicada por quê? Porque o mundo é redondo. Se o mundo fosse quadrado ou retangular...".

E, assim, o mundo gira, sem que a oposição supere o trauma do próprio apagão e reaja politicamente.

Coube a Lula, não ao DEM (que até tenta) ou ao PSDB (mais perdido do que a gente em apagão), fazer as vezes de oposicionista-mor.

Dilma, com aquele jeitão dela, e Lobão, bem ensaiado, já tinham declarado o assunto do apagão, ops!, do blecaute, como "encerrado". E veio Lula condenar o "achismo" e cobrar uma investigação afinal séria e respostas definitivas. Se elas virão? Bem, aí é outra história.

Para sorte geral de Tarso, Lobão, Mercadante, Dilma e, principalmente, Lula, o mundo não só gira como gira rapidíssimo e pegou de jeito a obra mais vistosa do tucanato paulista.

Antes mesmo do fim de semana, "a tempestade, o vento e os raios" que derrotaram o sistema elétrico brasileiro derrubaram três vigas de 40 metros do trecho sul do Rodoanel.

Não foram tempestade, vento e raios? Então que Serra dê um basta no "achismo" e exija investigações sérias e respostas definitivas. É melhor do que agradecer o "milagre" e dizer que foi "um presente de Deus não haver mortes".

PS - O anúncio dos caças é no dia 23.

Marina usa blecaute para atacar governo

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Sem citar nomes, ela criticou Dilma por não assumir "responsabilidade" no caso

Roberto Almeida

Em meio à troca de acusações entre PT e PSDB em virtude do blecaute da última terça-feira, a senadora e pré-candidata pelo PV à Presidência, Marina Silva, manteve um ponto de vista técnico sobre o assunto durante a semana. Esquivou-se de atacar diretamente o Planalto. Ontem, porém, durante congresso do PV em São Paulo, Marina teceu duras críticas ao governo e à ética de seus ex-colegas que "evitam responsabilidades" e "terceirizam problemas".

Em tom de desabafo, durante discurso na Assembleia Legislativa de São Paulo para correligionários verdes, a senadora e ex-ministra do Meio Ambiente contrapôs dois episódios que marcaram sua passagem pela pasta - o desmatamento recorde de 2004 e o assassinato da irmã Dorothy Stang, em 2005 - à resposta pouco convincente do governo ao blecaute.

Naquelas ocasiões, apontou Marina, sua posição como ministra era necessariamente de "encarar os problemas" e "dar exemplo de bom comportamento na vida pública".

A senadora lembra que, apesar de desgostosa com os dados do desmatamento que tinha em mãos em 2004, deu a cara para bater e fez pessoalmente o anúncio à imprensa. Em seguida, ofereceu um plano para reverter o quadro, que segundo ela ocasionou a queda expressiva do corte de árvores na Amazônia.

VITÓRIA

O anúncio de que a floresta só perdeu uma área de 7 mil km², a melhor marca em 21 anos, foi feito esta semana pela ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, e não pelo Ministério do Meio Ambiente, como de praxe.

"Quando é uma vitória, todo mundo quer assumir, mas quando acontece um problema, poucos assumem", criticou a senadora, sem citar nomes, mas fazendo uma crítica velada ao comportamento de Dilma, que "sumiu" no dia seguinte ao do apagão, que atingiu 18 Estados, para não ser questionada sobre o blecaute.

Com relação ao caso da missionária Dorothy Stang, Marina ressaltou que se sentiu obrigada a interferir diretamente nas investigações. Ela pediu ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva que a Polícia Federal assumisse as apurações do assassinato, que teve repercussão mundial.

Sob essa perspectiva, a senadora disse concordar com Lula sobre o "achismo" que rondou o Planalto, que titubeava quanto às explicações do blecaute. E sublinhou que fez parte do coro que pediu explicações do ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, na Comissão de Infraestrutura do Senado. "Quando eu estava no governo, falava do "princípio da precaução". As pessoas não gostavam muito", alfinetou Marina. "Mas quando se trabalha com esse princípio, há menos erros, menos prejuízos políticos e morais."

Ela manteve o mesmo tom crítico quando questionada sobre desgaste político em geral. "Eu sofri muito desgaste, mas para defender aquilo que eu acredito", disse. "O que não queremos é o desgaste do ponto de vista ético."

PRÓXIMOS PASSOS

Marina, que teve ampla agenda de eventos em São Paulo na última semana, deve retornar ao Estado antes da Conferência de Copenhague, em dezembro. O diretório estadual do PV estuda uma agenda no ABC paulista no próximo dia 7.

Alberto Dines:: Tensões pré-eleitorais

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

O apagão da terça-feira pode tirar votos da quase-candidata do governo? A substituição do neologismo apagão pelo anglicismo blacaute muda alguma coisa na imagem da ministra-chefe da Casa Civil? Todas as eleições são essencialmente plebiscitárias, queiram ou não queiram os marqueteiros. Em alta voltagem podem produzir curtos-circuitos.

O ato de escolher, selecionar ou votar equivale à manifestação de uma preferência por pessoas, ideias, posturas. Na primitiva democracia romana, os senadores preparavam leis para serem submetidos ao povo (plebis, plebe + scitum, decreto). Na democracia moderna, representativa, escolhem-se partidos ou pessoas que teoricamente encarnam programas e produzirão os estatutos a serem votados pelos legislativos. Em determinadas circunstâncias, os regimes representativos admitem votações diretas, específicas (presidencialismo versus parlamentarismo, porte de armas, aborto, laicismo, etc.).

Na Era da comunicação de massa os plebiscitos são contínuos, velozes, extremamente intensos.


Tudo serve para alavancar comparações – aparência, gestos, palavras, entonação, humores, bocejo, esgares, a covinha no rosto, a olheira. Não há como fugir do escrutínio total. A dramatização torna-se inevitável e ela costuma ser péssima não apenas para os contendores mas para o processo político e as instituições: as irrelevâncias são magnificadas e as simplificações incontroláveis.

O governo apostou num clima eletrizante para compensar a relativa obscuridade da sua candidata. Tinha as cartas na mão para um plano de voo menos turbulento, mais seguro e eficaz, no entanto optou pela perigosa estratégia do estresse. Pegou uma oposição sem postulações, fragmentada por duas candidaturas, esmagada pela maioria situacionista, já afônica faltando um longo ano até o pleito, mas desobrigada de frequentar a ribalta com tanta assiduidade.

E esta pode ser uma enorme vantagem. Os operadores palacianos esqueceram que holofotes, refletores, câmeras e microfones permanentemente acesos e ligados são impiedosos. No sentido figurado, óbvio. A ministra Dilma Rousseff passa uma imagem confiável, quando quer faz o seu charme, (ficou uma gracinha ao colocar a esferográfica entre os dentes como uma estudante no vestibular), mas os riscos de um desgaste político são inegáveis.

Cada frase pode ser uma armadilha, cada evento – mesmo favorável – pode transformar-se em bumerangue. A exposição continua pode criar demandas insuportáveis sobretudo no decorrer do festival de inaugurações que ocorrerá no próximo ano. Cada projeto contém um apagão em potencial já que a estrutura em cima da qual serão pendurados tantas e tão diferentes empreitadas do PAC tem insondáveis fragilidades. Como aquela que produziu o black-out da terça-feira.

O xadrez eleitoral seria fascinante se não estivesse sendo jogado no tabuleiro latino-americano. Tal como na história do aprendiz de feiticeiro, Hugo Chávez elevou demasiadamente a temperatura política e agora não consegue ou não sabe como baixá-la para colher alguns dividendos da radicalização que promoveu.

A excitação externa, além disso, adiciona elementos imponderáveis ao clima plebiscitário doméstico. O esforço da nossa diplomacia em colocar o País como interlocutor confiável em diversos conflitos internacionais pode ser fulminado por alguma delirante aventura engendrada pelo caudilho vizinho.

O desenvolvimento econômico exige um fortíssimo contrapeso de caráter político e institucional. A sucessão presidencial não pode ser envolvida pelo frenesi de final de campeonato. O processo democrático é necessariamente movimentado e ágil. Conviria que o plebiscito fosse menos tenso.

O ano em que tudo começou

DEU NO CORREIO BRAZILIENSE

Em 1989, a primeira eleição presidencial direta em três décadas transformou-se em marco no processo de redemocratização do país

Maurício Lara


O economista José Celso de Oliveira estava perto dos 40 anos quando, em 15 de novembro de 1989, colocou o terno do casamento para votar pela primeira vez em uma eleição presidencial, de tão solene que considerou a ocasião. Não era para menos, porque desde a vitória de Jânio Quadros, em 1960, nunca mais o brasileiro tinha votado para presidente e esse fato transformou a disputa de 1989 no maior marco do processo de redemocratização do país.

“Praticamente 90% dos eleitores nunca tinham votado para presidente. De lá para cá, foi acontecendo uma consolidação no processo eleitoral, que se torna rotina na vida do cidadão”, avalia o cientista político Marcus Figueiredo, pesquisador e professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Ele classifica aquele momento de “eleição crítica” por ter produzido “uma mudança brutal no realinhamento eleitoral” e por ter sido o “início do processo de amadurecimento do eleitor brasileiro”.

Para o cientista político, depois da experiência de 1989, o eleitor nunca mais foi o mesmo. “O episódio produziu um efeito extraordinário para o eleitor não acreditar mais na história de caçador de qualquer coisa, de salvador da pátria. Agora o candidato tem de ter substância”, avalia Figueiredo, referindo-se explicitamente ao ex-governador de Alagoas, Fernando Collor de Melo, que se autonomeou “caçador de marajás” e foi o vencedor do pleito.

Collor, um dos 22 candidatos à presidência, disputou com vários ícones da política brasileira, como Ulysses Guimarães, Leonel Brizola, Aureliano Chaves e Mário Covas. Todos eles foram ficando pelo caminho ao longo da campanha. O eleitor queria mudanças, queria o novo e acabou levando para o segundo turno exatamente os dois candidatos mais jovens e identificados como novidade, Collor e Luiz Inácio Lula da Silva. “Collor representava a renovação pela direita e, pela esquerda, tinha Lula, Brizola e Mário Covas”, analisa Marcus Figueiredo.

Comunista

Havia outros candidatos, pela esquerda e pela direita, entusiasmados pela “culminância do processo de restauração democrática”, como define o candidato do PCB, o pernambucano Roberto Freire, atual presidente nacional do PPS. Ele enumera fatos anteriores à eleição que contribuíram para valorizar o pleito: movimento das Diretas Já, em 1984, eleição de Tancredo Neves no colégio eleitoral, em 1985, e a promulgação da Constituição de 1988. “O país vinha num crescendo de participação”, lembra.

Para Freire, a vitória de Collor não coloca em dúvida a capacidade do eleitor de fazer escolhas. “O povo sabe votar. Pode até se enganar, mas, naquele momento, Collor era o jovem que parecia representar o novo”, diz Freire. O candidato do PL, o paulista Guilherme Afif Domingos, também com um discurso de modernização, chegou a ser visto como uma alternativa pelo eleitorado cerca de dois meses antes da votação. “Infelizmente, o Collor enganou todo mundo”, diz o cientista político Marcus Figueiredo. Mas o saldo, avalia, é muito positivo, pelo que a eleição significou em termos de aprendizado, como se o eleitorado tivesse atirado no que viu e acertado no que não viu.

Outra concordância é que a emoção, que tanto marcou a campanha de 1989, tem poucas possibilidades de se repetir. “O que marcou mais foi a vibração, a vontade do brasileiro em participar do processo”, lembra o publicitário Almir Sales, coordenador da comunicação na campanha de Collor. “Foi um momento único, que deixa exemplos”, avalia Roberto Freire. “A eleição fica rotineira, o que torna o processo muito mais racional”, completa Marcus Figueiredo. -

Vitória do marketing

Uma das primeiras providências de Fernando Collor, na fase de preparação para a disputa eleitoral, foi mudar o nome do Partido da Juventude (PJ), a que pertencia, para Partido da Reconstrução Nacional (PRN). A mudança foi decidida a partir da interpretação de pesquisas qualitativas e quantitativas, ferramentas que a campanha utilizou fartamente e que indicavam riscos no fato de um candidato tão jovem, do partido “da juventude”, encontrar resistências perante o eleitorado mais velho e mais conservador. Já um partido “da reconstrução nacional” trazia no nome a síntese do discurso construído para o candidato.

Esse fato ilustra as novidades introduzidas na campanha de 1989 por Collor, que se valeu, por exemplo, de marketing eleitoral, pesquisas de opinião pública, computação gráfica e novos formatos para fazer programas de televisão. O coordenador de comunicação da campanha, o mineiro Almir Sales, na época proprietário da Setembro Propaganda, conta que as reuniões para definição do discurso eram realizadas em Belo Horizonte, na sede do instituto Vox Populi, que se encarregava das pesquisas. “Collor aceitava opinião, a gente discutia. As qualitativas eram uma orientação importante e o Marcos Coimbra (diretor do instituto) teve uma importância muito grande no processo.”

Almir Salles diz que Collor, pelo seu estilo, incorporou muito bem o discurso elaborado. “Ele era, efetivamente, o novo, o jovem guerreiro, o caçador de marajás”, avalia. Mas o candidato, segundo ele, tinha também muita intuição para decidir os rumos. “A sacada do ‘caçador de marajás’ é dele”, revela o publicitário, que recorda como a campanha, para Collor, começou no ano anterior, com a veiculação, em rede de televisão, de programas partidários com uma hora de duração.

Aluguel

Foram utilizados horários de partidos “nanicos”, como PTR e PSC, para construir a imagem do governador de Alagoas. E introduzidos novos formatos e conceitos, com a utilização de computação gráfica e gravações feitas em várias regiões do Brasil, tratando de vários temas. “Os assuntos eram divididos por ‘intervalos comerciais’ especialmente criados para os programas”, conta Almir Salles. Ele afirma que também acreditava ser Collor “uma saída para o Brasil cartorial, estagnado, amarrado pela burocracia”. O publicitário, hoje, fala da frustração com o resultado: “Eu fiquei muito decepcionado, porque acreditei”.

Mas todos concordam também que os tempos mudaram e aquele tipo de discurso de 1989 não funcionaria mais. “Hoje a eleição é mais racional do que emocional. Não faz mais sentido olhar para trás”, aposta Afif Domingos. “O caminho hoje seria diferente. Tem que partir para os grandes temas e levar a discussão para a sociedade. As coisas mudaram, o país mudou”, explica Almir Sales. (ML)

Rede Povo e Lula Lá

Em contraposição à campanha moderna e repleta de tecnologia de Fernando Collor, o grupo responsável pela comunicação de Luiz Inácio Lula da Silva agiu baseado em análises políticas e na intuição. Nos grupos de todos os candidatos, mesmo os comunicadores mais experientes jamais tinham feito uma campanha presidencial, por causa do longo jejum de eleições diretas. A visão era muito mais política e não marqueteira, como é hoje”, diz Toni Cotrim, um dos coordenadores da Rede Povo, uma paródia da maior rede de televisão do Brasil que, supunham eles, seria a principal adversária de Lula na campanha.

A ideia da Rede Povo surgiu quando os cinco do grupo comiam uma pizza em São Paulo. Na época, admite Cotrim, eles não imaginavam que Lula iria tão longe na disputa. “Achávamos que íamos marcar posição. No meio do primeiro turno começamos a entusiasmar”, diz. Sem possibilidade de testar o formato, já que, no primeiro turno, a campanha de Lula não dispôs de pesquisas próprias, foi difícil convencer a direção da campanha a colocar a Rede Povo no ar. Os publicitários tiveram que negociar. “Fizemos uma aposta: se na primeira pesquisa divulgada Lula tivesse subido, continuaríamos”, revela Cotrim. Deu certo. A Rede Povo “pegou”, bem como o jingle do Lula lá, de Hilton Acioly, e o gesto da letra L formada com o indicador e o polegar, sugerido por um militante do Paraná.

A perspectiva de vitória surpreendeu os coordenadores de campanha. O ex-ministro Luiz Gushiken revelou que, já no segundo turno, preocupado com a governabilidade, disse ao candidato: “Lula, nós vamos ganhar essa eleição e precisamos conversar com o exército”. Só aí, contou Gushiken, os militares foram procurados. No outro lado, ao contrário, desde o início o planejamento era para vencer. “Tocamos a campanha, desde o princípio com muito entusiasmo. A expectativa era de vitória”, afirma Almir Salles.

Sem pesquisas

Outros candidatos concordam que os diferenciais da campanha de Collor foram decisivos. Roberto Freire e Afif Domingos dizem que não dispuseram de pesquisas para suas análises. “Collor foi um candidato moderno. Quem não tiver isso hoje (as ferramentas) é como se faltasse uma perna”, avalia Freire. Já Ulysses Guimarães, mesmo dispondo de profissionais de comunicação na campanha, não conseguiu lidar com a questão da idade mais avançada.

O jingle dele, por exemplo, falava em “bota fé no velhinho”. “Eles erraram”, avalia Toni Cotrim. Segundo ele, por convicções pessoais, Mário Covas não acreditava em marketing eleitoral e Leonel Brizola não tinha praticamente nenhuma estrutura de comunicação. (ML)

Vento rasteiro (poema)

Graziela Melo

Era
Um vento
Rasteiro

Que vinha
Levantando
As folhas
Do Chão...

No ar


O perfume
Das flores

No céu,

As nuvens
Em cores

No tempo

As dores

Perdidos
Amores

E...

Solidão!!!

Rio, 27/5/2003

Seminário: A questão republicana na atualidade

No mês da República em nosso país, a Fundação Casa de Rui Barbosa revisita o tema para estimular a reflexão sobre seus postulados teóricos, sua trajetória nas instituições ocidentais e seus percalços atuais na republicanização da democracia brasileira.

10 de novembro de 2009, às 15h30
Filosofia republicana
Ricardo Vélez-Rodriguez (UFJF)

17 de novembro de 2009, às 15h30
Republicanismo como idéia-força e experiência histórica
Modesto Florenzano (USP) José Eisenberg (UFRJ)

24 de novembro de 2009, às 15h
Cultura política, república e democracia na atualidade brasileira
Alberto Aggio (Unesp) Ricardo Ismael (PUC-RJ)

Organizadores:
Júlio Aurélio Vianna Lopes (FCRB)Renata Bastos (Uerj) Ricardo Marinho (Unigranrio)

Serão conferidos certificados de 10 horas de atividades complementares aos interessados.Sala de CursosEntrada FrancaInformações: 3289 4638

Rua São Clemente, 134 Botafogo/Rio de Janeiro/RJ

Do Lula-lá ao Lula-cá com Collor e Sarney

DEU EM O GLOBO

Vinte anos depois, os três estão juntos e defendem aliança, ironizada por Maluf: "Hoje, perto do Lula, me sinto um comunista"

Gerson Camarotti e Maria Lima

BRASÍLIA. A primeira eleição direta para presidente da República na redemocratização do país, em 1989, foi marcada por agressões e ataques pessoais dos três principais personagens: os candidatos Fernando Collor de Mello (PRN), que seria eleito presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que ficou em segundo lugar, e o então presidente da República, José Sarney. Era ladrão para lá, corrupto para cá e ditador de opereta para acolá.

Collor ameaçava pôr os corruptos do governo Sarney na cadeia, se eleito. Sarney processou Collor por injúria e difamação.

No calor da campanha mais eletrizante, com 22 candidatos a presidente, o alagoano xingou Lula de cambalacheiro, foi eleito e não botou ninguém na cadeia.

Foi ele próprio apeado do cargo após dois anos de poder.

Depois de 20 anos, já com Lula na Presidência, os três arquiinimigos políticos
transformaramse em aliados em torno da base do governo petista, o que surpreendeu até os governistas.

As declarações de cada um para justificar a repentina amizade se baseiam na alegação de que todos foram alvo de campanhas difamatórias e injustiças. Outra argumentação é que não foram eles que mudaram, mas o tempo e a política. De forma reservada, interlocutores de Lula dizem o que mais mudou nessas duas décadas: o pragmatismo e a necessidade de governabilidade.

A relação de Lula com Sarney foi construída de forma gradual e, aparentemente, sem grandes traumas. Em 2002, o atual presidente do Senado apoiou a eleição de Lula. Mas a aproximação de Lula com Collor foi um processo mais lento e “difícil” para o presidente, segundo relato de Lula a um interlocutor.

Lula até hoje tem na memória os ataques de Collor na campanha, na qual foi atingido com um golpe abaixo da linha da cintura: a acusação de tentativa de aborto da filha Lurian. Sarney também foi alvo de Lula e Collor, que acusaram seu governo de corrupção: — O senhor José Sarney sempre foi um político de segunda classe, nunca teve uma atitude de coragem. O senhor pegou carona na história, beneficiandose de uma tragédia que abalou o país — disparou Collor em seu programa de TV, reagindo à articulação do então presidente para lançar a candidatura de Silvio Santos a 15 dias do 1oturno.

Hoje beneficiário do apoio de Collor no Senado, Sarney relativiza os episódios de 89.

— O tempo é que mudou. O tempo passado é história. As circunstâncias não são as mesmas.

Só quem não mudam são as pedras, como diria Rui Barbosa.

Não sou capaz de ter ódio e ressentimento — diz Sarney.

Ele diz que a eleição era um fato político inédito no Brasil, até porque não estavam em disputa outros cargos. Segundo ele, foi isso que permitiu o surgimento das candidaturas de Collor e Lula, afetando candidaturas tradicionais.

Chega a citar a votação “inexpressiva” do então candidato do chamado PMDB histórico, o ex-presidente da Câmara Ulysses Guimarães.

Sarney relembra que o início da campanha foi marcado por ataques dos candidatos contra sua gestão, mas que, no segundo turno, seu governo saiu de pauta: — Saí de cena. A partir dali, foi uma disputa ideológica: o operário contra o representante das forças conservadoras. Os dois não estavam preparados para assumir o governo. Isso fica claro, porque aconteceu o que aconteceu (impeachment) com Collor.

Este ano, Collor integrou a tropa de choque de Sarney para defender a sua manutenção no cargo de presidente do Senado, no auge da crise política que se arrastou por quase seis meses na Casa.

O entrosamento dos dois com o presidente Lula nesse processo foi tamanho que, um dia depois do destemperado bate-boca no plenário com o senador Pedro Simon (PMDB-RS), para defender Sarney, o senador Collor foi recebido pelo presidente Lula em seu gabinete.

Além do episódio com a filha Lurian, Collor foi duro também nos ataques a Lula, em 1989: — O outro candidato (Lula) defende abertamente a luta armada, a invasão de casas e apartamentos. Lula é um cambalacheiro — dizia Collor.

Mas, para Lula, também são águas passadas. Este ano, em Alagoas, ele abraçou o ex-desafeto num palanque, afirmando que queria “fazer justiça ao senador Collor e ao senador Renan Calheiros (PMDB-AL)”, por causado apoio que dão ao governo no Senado. No mesmo período, o da crise no Senado, Lula ganhou a ira dos petistas ao enquadrar a bancada do PT em defesa de Sarney.

— Na vida pública, não podemos avançar olhando só para o retrovisor. Para quem é minoria, a aliança é imprescindível. Para quem é maioria, a aliança facilita.

Mas não é fácil superar as divergências, as diferenças e, principalmente, as marcas que ficaram do passado. Mas eu tento — diz o senador Aloizio Mercadante (PT-SP), um dos coordenadores da campanha de Lula em 89. — O ano de 89 passou.

Mas aconteceu. Porque passou, é possível distensionar e construir novas relações políticas.

Mas porque aconteceu, da forma como aconteceu, a gente não pode e nunca deve esquecer, para que não se repita.

Para muitos presidenciáveis de 1989, a aliança atual é vista por ângulos diferentes. O deputado Paulo Maluf (PP-SP) aprova a aproximação de ex-desafetos: — Hoje o presidente Lula é quem está próximo de nossas ideias. Antes, a sua barba lembrava a de Fidel Castro. Lula transmitia medo. Atualmente, perto do Lula, me sinto um comunista diante da maneira histérica com que ele defende os banqueiros.

O Lula se reciclou. E , atualmente , não vejo grande divergência ideológica e de pensamento entre Collor, Lula, Sarney e eu — ironiza Maluf (PP) , que, em 89, foi candidato do PDS e apoiou Collor no segundo turno.

Mas esse pensamento não é consenso entre os presidenciáveis daquela eleição.

— Lula competia com o Collor e o Sarney no campo ético.

Agora, todos estão juntos,

pela ética, que foi a grande perdedora dessa aliança — diz o deputado Fernando Gabeira (PV), também presidenciável de 1989 e que, no segundo turno, apoiou Lula.

— Vejo a aliança como desserviço à política brasileira.

Eram pessoas de lados opostos e que, sem explicação, se tornaram aliadas. São esses conchavos e acordos que o eleitor não consegue entender. Eles se acham no direito de se agrupar e esquecer tudo o que falaram anteriormente um do outro.

Agora se relacionam normalmente, como se nada tivesse ocorrido — critica o líder do DEM, deputado Ronaldo Caiado (GO), que naquela eleição foi candidato pelo PSD e apoiou Collor no segundo turno.

O presidente do PPS, Roberto Freire, acha que a incoerência de Lula vem desde 1989, citando que ele vetou o apoio do PMDB e de Ulysses em seu palanque, no segundo turno. Mas agora, observa o pós-comunista, aceita o PMDB, um PMDB bem mais complicado, em sua base. Ele foi candidato pelo PCB e apoiou Lula no segundo turno: — O mundo mudou muito.

Mas essa estranha aliança não é em função da mudança do mundo, mas sim da mudança dos personagens. Principalmente, de Lula.

Para o então coordenador da campanha de Ulysses e que na época presidia o PMDB, o hoje senador Jarbas Vasconcelos (PE) , a aliança atual de Lula-CollorSarney é a prova de fragilidade do sistema partidário: — Essa aliança é estapafúrdia.

Há 20 anos, Collor chamava Sarney de ladrão, corrupto, e hoje estão de mãos dadas. Já Lula chamava Sarney de grileiro e dizia que ele havia assaltado o Maranhão. Isso mostra que o quadro partidário brasileiro chegou ao fim.

Procurado, o senador Collor não quis falar.

“Não sou eu quem diz que Lula quis forçar o aborto. Quem diz é Miriam Cordeiro, mãe da Lurian"
Collor sobre Lula, em 89

“O Brasil é testemunha do desatino com que fui agredido por um candidato transtornado"
Sarney sobre Collor, em 89

“Pena que esse moço seja tão corrupto"
Luiz Inácio Lula da Silva, então candidato do PT, atacando o adversário Fernando Collor em 1989

“Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum
Lula, defendendo Sarney este ano

Alianças no túnel do tempo

DEU EM O GLOBO

Onde estão os protagonistas de 89 e o que faziam os de hoje

Muitos dos principais personagens da primeira eleição direta para a escolha do presidente da República, em 1989, depois dos 20 anos de ditadura militar, instalada em 1964, já morreram.
Mas a maioria deles continua na vida pública do país, alguns sobrevivendo a duras penas, outros com papel importante na sucessão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

JOSÉ SERRA: Foi um dos fundadores do PSDB e, em 1989, ajudou na campanha de Mário Covas como deputado federal. Foi ministro da Saúde de FH, disputou a eleição de 2002 e foi derrotado por Lula. Elegeu-se governador de SP em 2006. Disputa com Aécio indicação no PSDB como candidato à sucessão de Lula.

PAULO MALUF: Em 1989, disputando a Presidência pelo extinto PDS, teve 5,9 milhões de votos, escapou da prisão por denúncias de corrupção e hoje é um discretíssimo deputado. Deve disputar de novo o governo de SP.

ULYSSES GUIMARÃES: Embalado pela promulgação da Constituição em 1988, foi candidato a presidente pelo PMDB. Mas foi abandonado na campanha pelo partido, que rachou, e obteve um modesto sétimo lugar. Morreu em um acidente aéreo em 1992, e seu corpo nunca foi encontrado.

MÁRIO COVAS : Candidato a presidente pelo PSDB, ficou em quarto lugar no primeiro turno. Impediu o PSDB de aderir ao governo Collor. Foi governador de São Paulo. Morreu em 2001.

AÉCIO NEVES: Governador de Minas, é pré-candidato à sucessão de Lula pelo PSDB.
Herdeiro político do presidente Tancredo Neves, se projetou como deputado constituinte.
Apoiou a candidatura Covas em 1989 como deputado. Foi presidente da Câmara e está no segundo mandato no governo mineiro.

JOSÉ SARNEY: Em 1989, era presidente da República e encerrou o mandato em decadência política, deixando o país com inflação de mais de 80% ao mês. Foi o saco de pancadas de Lula e de Collor na campanha. Se reergueu politicamente no Amapá, para onde transferiu seu domicílio eleitoral. Voltou como senador, presidente do Senado, escapou de várias denúncias de corrupção junto com familiares e é hoje o mais apaixonado aliado do presidente Lula.

LEONEL BRIZOLA: Foi candidato a presidente pelo PDT e quase foi para o segundo turno com Fernando Collor. Apoiou o governo Collor, elegeu-se governador do Rio, foi vice na chapa de Lula em 98 e eterno presidente do PDT. Morreu em 2004.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO: Em 1989 era senador pelo PSDB. Foi chanceler e ministro da Fazenda, no governo Itamar. Lançou o Plano Real em 1994 e no mesmo ano foi eleito presidente da República, reeleito em 1998.

RENAN CALHEIROS : Em 1989 era deputado federal pelo PMDB e se filiou ao PRN para ser um dos principais articuladores da campanha de Collor. Era integrante do chamado grupo do “pato laqueado de Pequim”, jantar onde teria sido combinado o lançamento da candidatura Collor. Foi líder do governo Collor no Congresso, mas logo rompeu por causa de brigas regionais. Voltou ao PMDB, elegeu-se senador, presidente do Senado e escapou de cassação com apoio de Sarney.

ITAMAR FRANCO: Eleito vice-presidente na chapa de Collor, assumiu a Presidência da República por dois anos depois do impeachment. Foi governador de Minas Gerais e pode retornar ao Senado na eleição de 2010, pelo PPS.

DILMA ROUSSEFF: Pré-candidata do PT à sucessão de Lula. Depois que saiu da prisão, na ditadura, se mudou para o Rio Grande do Sul, onde ajudou a fundar o PDT, junto com o ex-marido Carlos Araújo. Na eleição de 1989, durante a campanha de Leonel Brizola, exercia um cargo burocrático de diretorageral da Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Foi demitida do cargo pelo presidente da Câmara, o vereador Waldir Fraga.

CIRO GOMES: Pré-candidato do PSB à sucessão de Lula. Entrou para o PSDB em 1988 e se elegeu prefeito de Fortaleza.

Na eleição de 1989 esteve lado a lado com o então deputado José Serra apoiando a campanha do tucano Mário Covas.

Se elegeu governador do Ceará e deputado federal.

Disputou e perdeu a eleição para presidente em 2002 pelo PPS e disputa ano que vem pelo PSB. Hoje é um dos mais ferrenhos inimigos de Serra.

MARINA SILVA: Pré-candidata à sucessão de Lula pelo PV. Começou na vida pública como a vereadora mais votada de Rio Branco pelo PT, que ajudou a fundar no Acre. Em 1989, como vereadora, ajudou na campanha de Lula.

Foi eleita senadora e nomeada ministra do Meio Ambiente com a vitória de Lula. Ano passado, rompeu com o PT e ingressou no PV.

Para ex-petistas, a decepção venceu a esperança

DEU EM O GLOBO

Companheiros de 1989 criticam novos aliados e políticas do governo Lula; outros elogiam e dizem que fariam de novo

Tatiana Farah

SÃO PAULO. Companheiros do palanque de 1989 e petistas de carteirinha abandonaram o partido e o amigo Luiz Inácio Lula da Silva por discordarem das políticas do presidente, dos métodos de campanha ou dos novos aliados do PT. Outros ainda sentem a esperança de quando animavam os comícios apinhados de militantes em 1989, quando Lula quase chegou lá, e dizem que fariam tudo de novo.

Para o economista da Unicamp Ricardo Antunes, petista de 1983 a 2003, a vitória de Lula é a derrota cabal das forças de esquerda. O jurista Plínio de Arruda Sampaio, fundador do PT e agora no PSOL, afirma: — O governo petista é uma traição à classe trabalhadora.

“É o governo que é possível fazer”, diz ex-sindicalista

Amigo de Lula dos tempos do ABC, o metalúrgico aposentado Djalma Bom preserva o companheiro, mas conta que doeu ver o presidente abraçado a Fernando Collor de Mello. O ator Paulo Betti, que em 89 apresentava o programa do PT, diz que Lula faz “um belíssimo governo”: — É um belíssimo governo do jeito que é possível fazer, diante de uma elite grosseira. O povo identifica nele um aliado.

Foi a política de alianças que aposentou Djalma Bom da vida pública. Em 89, ele era vice-prefeito de São Bernardo, depois foi parlamentar. Continua petista, mas deixou a política.

— Fico chateado com a desfiguração do PT, que deixou seu aliado, a classe trabalhadora, para procurar a tal base. Sarney era contra os trabalhadores.

Para ele, ver Lula e Collor abraçados foi o que mais doeu.

A decepção começou com o mensalão, em 2005: — O desvio com o financiamento das campanhas é a escolha que o PT fez pela porta mais larga. Ninguém dá jantar de graça a ninguém.

Amigo de Lula, Bom defende o companheiro e seu governo: — O governo tenta fazer com que os mais pobres tenham oportunidades. Tem falhas, mas é um avanço. Lula continua sendo a mesma figura, sem vaidade.

Meu amigo continua. Por isso deixei a política: porque a gente tem de ceder muito.

O jurista Hélio Bicudo não preserva a amizade com o presidente.

Em 2006, anulou o voto e, este ano, no primeiro turno deve escolher Marina Silva (PV).

Em um eventual segundo turno entre Dilma Rousseff e o tucano José Serra, vai de Serra: — Eu não tucanei. Se alguém mudou de lado foram eles (os petistas). O Bolsa Família é um programa eleitoreiro. Nada foi feito em direitos humanos.

Quando olho esses 20 anos, não fico desanimado, mas lamento.

Plínio, que pode ser lançado como pré-candidato à Presidência pelo PSOL, diz que o PT deu uma guinada para a direita.

— O PT faria diferente se Lula tivesse sido eleito em 89, mas o país escolheu a direita. Foi a possibilidade perdida de transformação capaz de quebrar o subdesenvolvimento.

Era um programa anticapitalista porque o PT era socialista. Hoje o PT é o que chamam de capitalista-social.

É capitalista envergonhado.

Plínio diz que não se sente culpado, mas preocupado: — Tenho certa preocupação por ter colaborado com o governo, mas eu estava enganado.

“O governo Lula mantém a boa-vida dos ricos”

O economista Paul Singer, secretário de Economia Solidária do Ministério do Trabalho, elogia o Bolsa Família. Dirigente do PT, Singer continua com Lula: — Valeu a pena. Os avanços aconteceram. O PT tornou-se governante e os dirigentes tornaramse políticos profissionais.

Acontece na esquerda no mundo todo, lamento.

Para Ricardo Antunes, se os petistas tivessem ganhado a eleição 20 anos atrás, o governo teria sido melhor: — O PT de 89 faria no mínimo um governo democrático e popular.

Não tenho dúvidas de que aquele seria um governo melhor para os trabalhadores. O governo Lula minimiza o sofrimento dos que são muito pobres e mantém a boa-vida dos ricos.

"O Bolsa Família é um programa eleitoreiro. Nada foi feito na área de direitos humanos "Hélio Bicudo, jurista

Era uma luta por um país melhor'

DEU EM O GLOBO

Artistas lembram clipe do Lula-lá, que marcou o 2º turno

Cláudia Lamego

A gravação estava marcada para as 21h. Cansados de esperar, Gonzaguinha e Fagner desistiram e foram embora. Quem ficou participou de um momento histórico da política e do horário eleitoral gratuito na TV. O clipe que marcou o início do segundo turno na campanha do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, tinha vozes e imagens de Chico Buarque, Gal Costa, Beth Carvalho, Felipe Camargo, Reginaldo Farias, Hugo Carvana, Djavan, Lydia Brondi, Bety Faria, Jards Macalé, Luciana Braga, Cláudio Marzo, Jonas Bloch e os já falecidos João Nogueira e Armando Bógus. Eram tantos artistas que, relembra um dos produtores, Paulo Betti, ficou difícil de mostrar todo mundo no pouco tempo que durava o jingle Lula-lá.

— A organização era precária. A equipe que ia filmar chegou de São Paulo à 1h da manhã.

As pessoas participavam da campanha e não ganhavam nada. Tenho orgulho de ter participado.

Todo mundo acreditava na grande transformação que poderia ocorrer — conta Betti.

No clipe, alguns aparecem com o lenço vermelho dos brizolistas, como José Mayer, Elba Ramalho, João Nogueira Beth Carvalho. Para Betti, era importante mostrar que simpatizantes de Leonel Brizola (PDT), que perdeu para Lula no primeiro turno, estavam com o PT.

— A gente queria o Brizola, mas não deu — lamenta Beth. — Tínhamos que apoiar o Lula.

Foi um dia maravilhoso, com o sentimento de esperança. Era uma luta por um país melhor.

Quem vê o clipe e ouve, ainda hoje, o Lula-lá em alguns comícios do PT não sabe que o famoso jingle poderia ter sido um samba. O autor, Hilton Acioli, professor de música em São Paulo, relembra que, quando cantou o samba numa reunião no PT, ninguém se empolgou: — Gente que trabalhava para o Collor e me disse que votou no Lula por causa da música.

Ferreira Gullar:: Retrocesso à vista

DEU NA FOLHA DE S. PAULO / ILUSTRADA

O petismo já abriu mão do revolucionarismo, mas não admite perder posições conquistadas

O FIM DA utopia marxista, que apostava na derrota do capitalismo, deu lugar, na América Latina, ao neopopulismo que, fazendo-se passar por socialista, explora, em vez da contradição classe operária versus burguesia, a oposição entre pobres e ricos. Se, no caso anterior, os sindicatos funcionavam como instrumento de organização e mobilização do operariado para a tomada revolucionária do poder, agora constituem uma burocracia de neopelegos, que passaram a ocupar posições estratégicas no aparelho de Estado e na máquina política.

Assim, pressionam o governo e os patrões para que façam pequenas concessões aos trabalhadores, com a condição de mantê-los quietos, enquanto eles, os neopelegos, enriquecem a se fortalecem politicamente. A ascensão de Lula à Presidência da República foi resultado desse jogo e, ao mesmo tempo, um salto qualitativo para a elite sindicalista.

As consequências disso para a democracia brasileira podem ser as mais desastrosas, como procurou mostrar Fernando Henrique Cardoso, num artigo recente, intitulado "Para onde vamos?".

O neopopulismo nada tem de revolucionário, como alardeia Hugo Chávez, travestido de líder esquerdista, mas que, na verdade, se apoia no voto do venezuelano pobre.

Sustentado pelos vultosos rendimentos do petróleo, mantém programas sociais assistencialistas, que lhe garantem vasta popularidade.

Aparece, diante do povão desinformado, como seu providencial protetor, que o defende de um lobo mau chamado Estados Unidos. Seu verdadeiro projeto é manter-se indefinidamente no poder e, para consegui-lo, fez o Congresso aprovar a reeleição ilimitada.

Lula tentou seguir o mesmo caminho, mas teve sua pretensão rejeitada numa pesquisa de opinião. Precavido, mudou de tática e terminou adotando a candidatura de Dilma como a solução possível.

Invenção sua, se eleita, ela terá que fazer dele seu sucessor em 2014, e, assim, caso isso ocorra, teríamos mais oito anos de Lula na Presidência da República, o que somaria, no total, 20 anos de lulismo. Ou mais, muito mais, porque pode não parar aí, já que, àquela altura, as bases do neopeleguismo e do neopopulismo estariam amplamente assentadas em todo o país.

A ameaça é que, se já agora ele se rebela contra a ação fiscalizadora do Tribunal de Contas da União e pretende calar a imprensa, ou seja, não admite que ninguém critique ou cerceie suas decisões de governo, imaginem o que não fará durante tantos anos no poder.

A história tanto anda para frente como pode andar para trás. O propósito de, chegado ao poder, não sair mais, faz parte da ideologia petista, como deixou claro José Dirceu, em visita a Madri, logo após a posse de Lula, em 2003, ao afirmar que o projeto deles era ficar 20 anos no poder. Sim, porque, ao contrário dos outros partidos "burgueses", o partido dito revolucionário vem para salvar o povo e mudar o rumo da história. Logo, não pode se submeter às regras democráticas da alternância no poder. Se é verdade que, a esta altura, o petismo já abriu mão do revolucionarismo, não admite perder as posições conquistadas.

Lula, muito esperto, logo compreendeu que o Brasil não é a Venezuela. Sabe que, embora tenha maioria no Congresso, este jamais lhe concederia um terceiro mandato e muito menos a possibilidade de reeleição ilimitada. Por isso, adotou a tática de conseguir um mandato tampão para Dilma, enquanto, às carreiras, procura implantar o PAC e aparecer, diante da nação, como um presidente empreendedor, que visa elevar o país à condição de grande potência. Assim age Chávez e assim agiu nossa ditadura militar.

A fórmula é sempre aquela: inimigo dos poderosos e amigo dos pobres, defensor dos negros e mulatos, inimigo dos brancos de olhos azuis. Isso transparece, a todo momento, em suas declarações e discursos. Não faz muito tempo, falando aos catadores de lixo, criticou os ricos que, deliberadamente, sujam a cidade para que os lixeiros, humilhados por eles, a limpem.

É um presidente da República que, sem qualquer escrúpulo, faz questão de instigar ressentimentos e conflitos entre os cidadãos, jogar uns contra os outros. Isso no discurso, porque, de fato, usa a máquina do Estado para favorecer grandes empresas nacionais e estrangeiras.

O artigo de Fernando Henrique Cardoso chamou atenção para o perigo que o país corre.

Em vez de desautorizá-lo, os formadores de opinião deveriam preocupar-se com o interesse maior da sociedade. É de se esperar, também, que Serra e Aécio assumam a responsabilidade que lhes cabe.

Ricupero vê foco eleitoral em guinada da política externa

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Segundo ex-embaixador, radicalização teria objetivo de marcar a diferença entre a conduta do Itamaraty no governo Lula e a da era FHC

Denise Chrispim Marin, BRASÍLIA


Na reta final do mandato e diante da missão de eleger sua sucessora, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu uma guinada mais à esquerda em sua política externa. O contorno partidário - petista, obviamente - tornou-se inconfundível, assim como o uso de questões diplomáticas para fazer propaganda sobre a inserção internacional do Brasil e uma liderança que o atual governo teria conquistado. Observada ao longo dos últimos dez meses pelo embaixador Rubens Ricupero, essa radicalização de perfil teria o claro objetivo de, em tempos eleitorais e de fim de governo, marcar a diferença entre a política externa de Lula e a adotada nos oito anos da administração de Fernando Henrique Cardoso.

"O governo está moldando o perfil com o qual quer entrar para a História. A política exterior tornou-se mais identificada ao governo e também a seu partido, o PT. Não está mais identificada ao Estado", afirmou Ricupero ao Estado.

Em um balanço preliminar da política exterior do governo Lula, Ricupero lembrou-se de uma emblemática declaração de Tancredo Neves (1910-1985), presidente da República eleito em 1984. "Se há um ponto na política brasileira que encontrou um consenso de todas as correntes de pensamento, esse ponto é exatamente a política externa levada a efeito pelo Itamaraty", afirmara Tancredo. "Esse consenso não existe mais", completou Ricupero.

Atual diretor da Faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e presidente do Instituto Fernand Braudel, Ricupero explica que, mesmo quando algumas decisões de política externa são justificadas pelas circunstâncias, elas compõem um mesmo padrão de adequação às linhas do PT e de culto à personalidade do presidente Lula.

OPÇÕES

A insistência do atual governo em receber o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, que havia suspendido sua visita de maio passado, é um caso de predomínio de convicções partidárias nas decisões de política externa. A opção de posicionar-se contra Bogotá em vez de atuar como um moderador, na polêmica gerada pelo acordo militar firmado pela Colômbia e os Estados Unidos, é outro exemplo.

Essa "crise do consenso", para Ricupero, também se traduziu no empenho do governo do presidente Lula pela adesão plena da Venezuela ao Mercosul e em sua omissão na controvérsia entre Argentina e Uruguai em torno de investimentos da indústria de papel e celulose na fronteira.

Ao longo dos últimos 6 anos e 11 meses, entretanto, esse dilema foi percebido e apontado nos três eixos da diplomacia - a ambição do Brasil por uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, a conclusão da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC) e a construção de um espaço de preponderância brasileira na América do Sul.

Nenhuma das três prioridades foi atingida. "Nos dois primeiros eixos, o governo quer, mas não pode. No terceiro, o governo pode, mas não quer", arrematou Ricupero.

IMAGEM

Esse movimento, para o ex-embaixador do Brasil em Washington e um dos articuladores do Plano Real, não se restringe aos domínios da diplomacia. Alcança também áreas nas quais o governo Lula pretende imprimir e legar uma imagem própria para a história e, em um cenário de curto prazo, para os resultados das eleições gerais de 2010. No setor econômico, o que era um "pecado" no início do governo - a expansão dos gastos públicos - transformou-se em uma "virtude".

Para Ricupero, o papel dos bancos oficiais foi expandido, em consonância com o discurso em favor da maior presença do Estado na economia, e a tentativa de anulação da política de privatização do setor de petróleo - uma marca do governo Fernando Henrique - ganhou fôlego.

Na área de infraestrutura, desapareceram duas iniciativas do governo Lula que alçaram a imagem pública da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff: os leilões de privatização de rodovias e a Parceria Pública Privada. "Aplaudido, Lula liberou-se do compromisso de continuar a política econômica de FHC", avaliou.

Dinheiro gasto no D. Marta daria um imóvel por família

DEU EM O GLOBO

Com R$ 84 mil, moradores poderiam comprar pequenos apartamentos na Tijuca

Um levantamento feito pelo Globo revela que, desde 1983, o poder público - União, estado e prefeitura - investiu um total de R$ 123 milhões em obras ou programas sociais no Morro Dona Marta, que virou o modelo do projeto do governo do estado, de pacificação de favelas. Com esse dinheiro, seria possível indenizar em R$ 84 mil cada um dos 1.460 donos de imóveis da favela, em Botafogo. O valor é suficiente para a compra de um apartamento de dois quartos em bairros da Zona Norte, como a Tijuca - perto de favelas. A maior soma de recursos investidos no Dona Marta, cerca de R$ 38 milhões, vem sendo aplicada desde 2003 em moradias. o gasto atual com a UPP, que expulsou o tráfico depois de 30 anos de controle dos bandidos, é uma das despesas mais baixas: R$ 2,6 milhões por ano em salários para 123 policiais.

Um apartamento no asfalto

Dinheiro investido no Dona Marta é suficiente para adquirir um imóvel por família

Fábio Vasconcellos


Em evidência desde o fim do ano passado, quando a instalação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) expulsou o tráfico armado, o Morro Dona Marta, em Botafogo, viu multiplicar as obras patrocinadas pelo poder público no local. São projetos como construção de casas, áreas de lazer, plano inclinado e melhoria da infraestrutura, muitos iniciados antes da chegada da UPP, mas que agora, com a segurança, vão mudando a comunidade. Tantas iniciativas, porém, acabaram despertando o debate sobre o modelo da política de desenvolvimento urbano e habitacional para o Rio. Afinal, para comunidades de pequeno porte, vale mais ampliar investimentos ou pagar indenizações para que os moradores possam adquirir imóveis em áreas já estruturadas? O caso do Dona Mar ta é um exemplo de como não falta dinheiro para as duas alternativas. O GLOBO calculou tudo que o poder público — União, estado e prefeitura — já aplicou desde 1983 ou ainda pretende investir na comunidade, seja em obras ou programas sociais. Resultado: o Morro Dona Marta foi beneficiado com um pacote de R$ 123 milhões nos últimos 26 anos. Com esse dinheiro, seria possível indenizar com R$ 84 mil cada um dos 1.460 donos de imóveis da favela.

Parece pouco, mas, segundo imobiliárias, com esse dinheiro seria possível comprar um apartamento de dois quartos na Tijuca — perto de favelas —, em Jacarepaguá, Engenho de Dentro, São Cristóvão, Méier, Madureira e Ilha do Governador.

Existe alternativa ainda mais barata, como o programa Minha Casa Minha, Minha Vida, que começará a entregar casas e apartamentos de dois quartos na Zona Oeste, no próximo ano. O futuro proprietário terá que pagar apenas 10% da renda familiar por dez anos. O programa federal é destinado a pessoas que ganham até três salários mínimos (R$ 1.395). Na prefeitura, 306 mil já se inscreveram para participar do programa.

UPP: R$ 2,6 milhões por ano com salários

A maior soma de recursos investidos no Dona Marta, cerca de R$ 38 milhões, vem sendo aplicada desde 2003 na recuperação de moradias, na construção de novas casas e creche — que, no ano passado, virou a sede da UPP —, além de um teleférico e de obras de esgotamento sanitário.

Nos anos 90, a Cedae já havia investido R$ 18 milhões em projetos de abastecimento de água. Para os próximos anos, a favela deverá receber mais R$ 25 milhões em obras, que serão financiadas pelo governo federal em parceria com o estado. O gasto atual com a UPP, que expulsou o tráfico depois de 30 anos de controle da comunidade por bandidos, é uma das despesas mais baixas: R$ 2,6 milhões por ano em salários para 123 policiais.

A presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RJ), Dayse Góis, defende que é necessário rever o modelo de desenvolvimento urbano da cidade. Na sua opinião, o poder público está “enxugando gelo”, e a prova está nos dados. Nos últimos anos, a prefeitura injetou US$ 600 milhões (R$ 1,034 bilhão) do Favela-Bairro em 168 comunidades, mas, ao mesmo tempo, outras 250 surgiram na cidade.

Dayse acrescenta que, apesar de alguma melhoria na infraestrutura, o município não conseguiu inserir essas favelas beneficiadas pelo programa na cidade formal. Para a presidente do IAB, é possível pensar em indenizações de pequenas e novas comunidades, mas é importante também incentivar construções populares em áreas com infraestrutura pronta e, ao mesmo tempo, facilitar o crédito para os moradores comprarem os imóveis.

— A política urbana como foi feita até agora é um sinal imperativo de que precisamos rever a nossa agenda social e urbanística.

A indenização deve ser vista com cautela, caso a caso. Acho que seria possível naquelas situações de novas ocupações, em áreas onde o custo dos investimentos não é capaz de gerar benefícios necessários para a comunidade — argumenta Dayse.

Na avaliação do secretário estadual da Casa Civil, Régis Fichtner, a hipótese de indenizações como política urbana está descartada.

Ele diz que o custo dessa medida seria muito elevado, o que poderia inviabilizar a aplicação de recursos em outras favelas. Fichtner ressalta que a ideia do governo é realizar melhorias nas comunidades e, com isso, deixar que o próprio mercado imobiliário se encarregue da compra dos imóveis e de outras melhorias.

O problema da titularidade dos imóveis não seria empecilho. O governo começará em breve a entregar títulos de posse a famílias que ocupam áreas do poder público nas favelas.

No Pavão-Pavãozinho (Copacabana) e no Cantagalo (Ipanema), 3.300 famílias receberão o documento.

— Não teríamos condições financeiras de indenizar uma favela inteira.

O valor de R$ 120 milhões de uma só vez no Dona Marta seria desproporcional ao que estamos aplicando em comunidades maiores. É quase o valor total de tudo que estamos fazendo no Complexo do Alemão — ressalta Fichtner.

O professor Istvan Karoly Kasznar, da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), concorda com a proposta de se repensar a política de urbanização.

Cético quanto aos benefícios das ações de remoção, Kasznar diz, contudo, que não vê nos programas de investimento atuais formas de impedir o avanço das comunidades ou melhorias efetivas para sua população.

Segundo ele, que estuda temas relacionados a políticas urbanas, apenas ações que possam ampliar a educação, a geração de emprego, a infraestrutura e a habitação popular em outras áreas da cidade poderiam de fato motivar as pessoas a deixarem as favelas.

— Enquanto não forem criadas áreas atrativas, a situação vai continuar como está. Você acha que pintar uma casa e colocar um teleférico resolve o problema das pessoas que estão na favela? Não é por aí. Ensinam às pessoas onde elas devem jogar o lixo, mas elas continuam vivendo na favela. A qualificação que é feita permite a otimização das ofertas e demandas da população da favela? Não acredito. A situação chegou a tal ponto que passamos a romantizar a favela, que agora virou atração turística — critica Kasznar.

O presidente do Conselho Regional de Engenharia (Crea-RJ), Agostinho Guerreiro, também concorda que muitos investimentos nas favelas não surtiram o efeito esperado, especialmente pela qualidade das obras. Ele cita como exemplo as casas do Morro Dona Marta, que ainda estão em situação precária. Guerreiro diz que as indenizações poderiam ser feitas no início de pequenas ocupações.

Em comunidades mais antigas, na sua opinião, seria difícil adotar essa medida, já que os valores seriam altos para um só governo. Ele afirma que, no caso de imóveis em situação de risco ou em áreas de proteção ambiental, seria possível indenizar hoje entre 5% e 15% dos proprietários: — Os valores do Morro Dona Marta são altos, mas foram de vários governos ao longo de mais de 20 anos.

Acho que a política de indenizações seria possível hoje em casos específicos, como ocupações em áreas de risco ou em comunidades que estão começando a ser formar.

“A política urbana como foi feita até agora é um sinal imperativo de que precisamos rever a nossa agenda social e urbanística" Dayse Góis, presidente do IAB-RJ

Luiz Gonzaga Belluzzo:: Neoliberalismo e crise sino-americana

DEU NA FOLHA DE S. PAULO /DINHEIRO

A superação da crise atual depende de um delicado rearranjo das relações políticas e concorrenciais

O MUNDO se abriu para o novo milênio dominado por certezas que hoje se desmancham sob a ação demolidora da crise financeira. A ideologia neoliberal, quase sem resistências, tentou demonstrar que, com a queda do Muro de Berlim, o espaço político e econômico tornou-se mais homogêneo, menos conflitivo, havendo concordância a respeito das tendências da economia e das sociedades.

Afirmavam que as questões essenciais relativas às formas de convivência e à "eficiência" do regime de produção estavam resolvidas: a regulação da sociedade pelo mercado é a conquista definitiva e insuperável da humanidade. Não há mais razão, diziam, para se colocar em discussão questões anacrônicas, tais como a reprodução das desigualdades ou as tendências dos mercados a sair dos trilhos, frequentemente destrambelhados pelos excessos nascidos de suas engrenagens.

Depois da crise, os porta-vozes desse quase consenso, economistas e quetais, sofreram um apagão intelectual. No auge da tormenta, recolheram-se ao silêncio. Passado o vendaval que ajudaram a semear, já agarrados aos salva-vidas lançados pela famigerada intervenção dos governos, entregaram-se a tortuosas e acrobáticas manobras de justificação de suas convicções.

Michel Foucault, um dos pensadores mais fecundos do século 20, não é economista.

Talvez por isso tenha compreendido com maior abrangência e profundidade o significado do neoliberalismo. Contrariamente ao que imaginam detratores e adeptos, diz ele, o neoliberalismo é uma "prática de governo" na sociedade contemporânea. O credo neoliberal não pretende suprimir a ação do Estado, mas, sim, "introduzir a regulação do mercado como princípio regulador da sociedade".

Foucault dá importância secundária à hipótese mais óbvia sobre a arte neoliberal de governar, aquela que afirma a imposição do predomínio das formas mercantis sobre o conjunto das relações sociais. Para ele, "a sociedade regulada com base no mercado em que pensam os neoliberais é uma sociedade em que o princípio regulador não é tanto a troca de mercadorias como os mecanismos da concorrência (...). Trata-se de fazer do mercado, da concorrência e, por consequência da empresa, o que poderíamos chamar de "poder enformador da sociedade'".

(Sob a óptica foucaultiana, a China é, sim, uma economia de mercado).

Tanto a "nova ordem mundial" como sua crise foram construídas e deflagradas no jogo estratégico disputado entre as empresas globais e seus Estados nacionais. Esse fenômeno político-econômico envolveu os protagonistas relevantes da cena global: os EUA, apoiados em sua liderança financeira e monetária, e a China, ancorada em sua crescente superioridade manufatureira. Obama está a caminho da China porque é óbvio que a superação da crise atual não depende apenas da ação competente dos Tesouros nacionais e dos bancos centrais, mas supõem um delicado rearranjo das relações políticas e concorrenciais que sustentaram o modelo sino-americano. Parece que não é fácil.

Luiz Gonzaga Belluzzo, 67, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).

José de Souza Martins: Os 'carolas' do ABC

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

Proletariado rebelde dos anos dourados de Vila Euclides não teve herdeiros capazes de lidar com um minivestido na faculdade

A filha de 20 anos de um metalúrgico operário de montadora do ABC, estudante do curso noturno de turismo da Uniban, de São Bernardo do Campo, e durante o dia empregada de um mercadinho em frente a sua casa, em Diadema, foi moralmente linchada por seus colegas, quase todos trabalhadores como ela. O motivo foi o traje rosa e um pouco curto da moça, que a destacava de suas colegas quando saiu da sala de aula para ir ao banheiro feminino. Vídeos e fotografias feitos pelos próprios estudantes que a assediavam e apupavam mostram um cenário que era também de linchamento físico. A moça escapou por pouco. O episódio expôs as muitas contradições não resolvidas na situação social da emblemática classe operária do subúrbio paulistano, em particular a da histórica região industrial do ABC. Os filhos do proletariado dos dourados tempos políticos das assembleias sindicais do Estádio da Vila Euclides não herdaram da geração de seus pais uma sociedade tolerante e democrática. Seus pais se limitaram às reivindicações salariais e de poder.

A intelectualidade acadêmica dos anos finais da ditadura militar rejubilara-se com o surgimento do que foi chamado de "novo sindicalismo". Uma enxurrada de conceitos e de interpretações imputou à classe operária regional, de carne e osso, as virtudes da classe operária filosófica, como a definiu Agnes Heller em outro contexto, de análises feitas em outros países e outras circunstâncias. De modo geral, as análises que enveredaram pelo equívoco de uma interpretação baseada no pressuposto da luta de classes deixaram de lado as complexas mediações, culturais, sociais e históricas, das determinações que fizeram da classe operária da região industrial uma classe operária historicamente singular e até relativamente diversa da dos manuais de ciência política, conservadora e corporativa.

O proletariado regional, no passado relativamente recente, ganhara corpo e vida na cultura conservadora e conformista do trabalhismo de Vargas. Excepcionalmente, o Partido Comunista, já na ilegalidade, elegera prefeito e maioria dos vereadores da região, em 1947, cassados minutos antes da posse. Região majoritariamente católica, com a criação da diocese e a nomeação do primeiro bispo, dom Jorge Marcos de Oliveira, em 1954, propôs-se a Igreja a criar lideranças operárias e as condições de surgimento de um partido laboral alternativo, fundado nas premissas da Ação Católica e do anticapitalismo de Pio XI. Teve êxito, com a ascensão sindical de Lula e o surgimento do PT, ambos, a seu modo, consubstanciando os valores da tradição conservadora, familística e religiosa do operariado regional.

O tumulto na Uniban teve como protagonistas justamente os herdeiros do problemático legado dessa tradição e de insuficiências dela decorrentes. A ascensão social do operariado do ABC é óbvia em toda aquela região. Mas um operariado que, se demonstrou competência na adesão ao capitalismo e na ambição de poder, não demonstrou a menor competência para criar as bases sociais da ressocialização de seus filhos para a sociedade moderna, aberta e democrática. O mercado de serviços educacionais tratou de suprir essa carência, com a disseminação de escolas de terceiro ciclo, movidas pelo lucro, que se propõem a qualificar para as eventuais oportunidades de trabalho, mas não têm condições nem o propósito de ressocializar para os desafios e os embates da vida cotidiana. O novo sindicalismo e o novo partido não criaram nem um novo modo de vida nem uma nova cultura centrada nos valores da emancipação do homem de suas pobrezas, a maior das quais é a pobreza de esperança, mesmo na prosperidade material que a região alcançou.

As origens culturais reacionárias dessa geração já se manifestaram antes no surgimento dos chamados Carecas do ABC e sua prática racista. Carlos Reichenbach, inspirado nos fatos relativos à ação desse grupo, produziu um excelente filme - Garotas do ABC -, de 2004, que é justamente um retrato da crise de gerações que vem alcançando profundamente as famílias operárias e de certo modo antecipa ocorrências como a de agora. Não podemos nos esquecer de acontecimento de motivação semelhante, conservadora, em 2008, na Escola Amadeu Amaral, no bairro do Belenzinho, envolvendo uma adolescente, que culminou em briga e na depredação da escola. Nesses vários casos, a concepção que os regeu foi a do linchamento.

A prática do linchamento tem sido em todas as partes forma violenta de ação conservadora, no sentido de enquadrar e até cancelar a presença dos diferentes e dos inovadores, como a moça da Uniban, para restaurar a ordem conformista, supostamente por eles ameaçada. A região que mais lincha e ameaça de linchamento no Brasil é justamente a região metropolitana de São Paulo, a do subúrbio e dos bairros operários. A motivação tem sido a punição para restabelecimento ou imposição da ordem onde surgem indícios de ruptura e de violação dos valores do autoritário conservadorismo popular, como no caso dessa saia curta. Um conservadorismo autodefensivo, é bom que se diga, em face dos efeitos desagregadores da modernização e da transformação social.

Os estudantes entrevistados pela mídia expuseram sua censura conservadora e intolerante à moça e sua censura à própria mídia pela visibilidade que deu à ocorrência, pelo que entendem ser a estigmatização da escola, o que os estigmatizaria como personagens vicários da instituição. A culpa não seria de quem agiu violentamente, mas de quem divulgou a violência, concepção que é outra expressão de intolerância. E todos os grupos que foram para a porta da escola protestar em favor dos direitos da moça foram rechaçados com gritos de "cala a boca" e "cai fora". Resta saber o que pensam os estudantes da Uniban da nudez de solidariedade dos estudantes da UnB, completamente distantes desse mundo operário, refugiados nas ilusões da classe média e de seus privilégios de estudantes de escola pública e gratuita.

Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Dentre outros livros, autor de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)