segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Reflexão do dia – Enrico Berlinguer

“Uma sociedade nova, que garanta todas as liberdades individuais e coletivas, civis e religiosas, o caráter não ideológico do Estado, a possibilidade da existência de diversos partidos, o pluralismo na vida social, cultural e ideal”.


Enrico Berlinguer, no livro Democracia valor universal, pg. 43 – Fundação Astrojildo Pereira/ Contraponto, Rio de Janeiro, 2009

Ricardo Noblat:: Cadê meu panetone?

DEU EM O GLOBO

- Pois é... Arruda, agora, vai comer o panetone que o Diabo amassou. (De Túlio Otoni, jornalista mineiro, em seu twitter)

Pouco importa o que venha a fazer o governador José Roberto Arruda (DEM), do Distrito Federal. Pode ficar no cargo para evitar o risco de ser preso. Pode pedir licença. Se renunciar ao mandato tanto pior. Mas uma coisa é certa: o plano de se reeleger foi engolido pelo mensalão embolsado por ele e sua turma. Não tem pão? Vá comer panetone.

Esse, sim, é um mensalão digno de ser encarado como tal e tratado com deferência. Perto do mensalão de Arruda, o do PT denunciado pelo ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) não passou de um mensalinho. É razoável supor que o mensalão do PT movimentou mais grana. Ocorre que ele era federal. O novo mensalão é distrital. De resto, vista de longe, Brasília se limita à Esplanada dos Ministérios.

É por isso que a maioria dos brasileiros não dá bola para o que se passa dentro das quatro linhas da política brasiliense. A imprensa de fora só raramente – embora muitos dos seus jornalistas vivam aqui. Esqueça a imprensa local. O DNA dela é governista. No último sábado, por exemplo, os dois principais jornais da cidade operaram o prodígio de noticiar o mensalão de Arruda livrando a cara de... De quem mesmo? De Arruda.

A imagem inaugural do mensalão do PT foi aquela do funcionário da empresa Correios & Telégrafos recebendo uma gorjeta de R$ 3 mil. A do mensalão do DEM foi a do governador recebendo uma gorda quantia de dinheiro. A gorjeta foi paga por um ex-bicheiro interessado em fazer negócios com o Correios. O dinheiro foi entregue a Arruda pelo seu secretário de Relações Institucionais, Durval Barbosa.

Não há um único depoimento que incrimine Lula ou o vice-presidente José Alencar na denúncia aceita pelo Supremo Tribunal Federal (STF) contra os mensaleiros do PT. Fita de vídeo ou de áudio que flagre mensaleiros de alto coturno discutindo a partilha do “faz-me rir”? Não existe. Mesmo contra o ex-ministro José Dirceu, apontado como chefe da “organização criminosa”, há poucos indícios de fato consistentes.

Arruda também foi filmado conversando com Durval e com o chefe da Casa Civil do governo sobre a necessidade de unificar a forma de pagamento de propinas a secretários de Estados e deputados distritais. E outra vez foi filmado ouvindo Durval explicar que 40% do dinheiro arrecadado junto a quatro empresas da área de informática caberiam a ele, Arruda, 30% ao vice-governador Paulo Octavio e o resto ao demais beneficiados.

Há pontos em comum entre os dois mensalões. Primeiro: o dinheiro serviu para facilitar a aprovação na Câmara dos Deputados e na Câmara Legislativa do Distrito Federal de projetos dos governos Lula e Arruda. Segundo: os presidentes de ambas as Câmaras participaram do esquema. Terceiro: Lula chamou seu mensalão de Caixa 2. Arruda chamou o dele de ação meritória para a compra de panetones destinados a saciar a fome dos pobres.

Sempre se poderá dizer que os mensaleiros do PT demonstraram mais esperteza. Deixaram menos rastros capazes de mandá-los para a cadeia. Os mensaleiros distritais foram confiantes demais, relapsos demais e acreditaram em excesso que escapariam impunes. Produziram o mais bem documentado escândalo da história política recente do País. Coisa de deixar Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT, de queixo caído.

Os mensaleiros do PT tentaram se apossar da máquina do Estado, segundo a denúncia acolhida pelo STF. Os mensaleiros de Brasília, não – a máquina do Estado é deles desde que Joaquim Roriz chegou ao poder pela primeira vez. Ele governou quatro vezes. Em 2006, ajudou seu ex-pupilo Arruda a se eleger. Arruda herdou de Roriz parte dos seus auxiliares. Durval foi um. Afinal, por que mexer em time que estava ganhando?

O calendário gregoriano nada tem a ver com o calendário político. A se levar em conta o primeiro, o governo Arruda acabaria no dia 31 de dezembro de 2010. Com base no segundo, o governo acabou na semana passada.

Fernando Rodrigues:: O quase nanico Democratas

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

BRASÍLIA - O Democratas nasceu de uma costela do PDS (ex-Arena, esteio da ditadura militar). Ainda com o nome de PFL, o partido sempre se apresentou como uma das forças motrizes responsáveis pela volta do país à democracia.

Adversários dos "demos" pensam de forma diferente. A sigla só teve senso de oportunidade. Em 1984, com a ditadura atolada no brejo, o grupo saltou fora do barco. Aliou-se às forças emergentes. Manteve-se mais tempo no poder.

A fórmula pefelista deu certo por muitos anos, quase duas décadas. Forte em oligarquias estaduais, nos grotões do país, o partido foi ficando. Em Brasília, praticou o quanto pode a genuflexão aos poderosos, um a um. Serviu a José Sarney, Collor e FHC. Muitos até simpatizam com Lula.

Mas ninguém engana a todos o tempo todo. O PFL elegeu seis governadores em 1998. Caiu para quatro em 2002. Em 2006, ficou com apenas um: José Roberto Arruda, em Brasília, um ex-tucano renascido "demo" depois de ter caído em desgraça por causa de um escândalo anos antes -a violação do painel de votação do Senado.

Agora, Arruda entra em um buraco mais fundo. Há indícios claros de sua participação num esquema já chamado de mensalão do DEM em Brasília. É difícil haver explicação dentro da legalidade para a imagem do único governador "demo" recebendo um pacote de dinheiro, refestelado em um sofá, e respondendo: "Ah, ótimo".

No caso dos mensalões do PT e do PSDB, é bom lembrar, nunca apareceu imagem tão eloquente.

O Democratas encolhe a cada eleição. Foram 105 deputados eleitos em 1998. Uma queda para 84 em 2002. Só 65 em 2006. Hoje, prova do próprio veneno: a infidelidade partidária o desidratou e a bancada com meras 55 cadeiras.

Em 2010, ressalvada uma ou outra exceção, os "demos" devem aumentar a sua insignificância.

Fernando de Barros e Silva:: Faroeste caboclo

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - Diante do vídeo que exibe José Roberto Arruda recebendo de um auxiliar maços gorduchos de notas, o secretário de Ordem Pública (?) do Distrito Federal explicou que a dinheirama se destinava à compra de panetones e cestas básicas. Esqueceu de acrescentar que o próprio governador as distribuiria, fantasiado de Papai Noel, sobrevoando Brasília de trenó.

O repertório de Arruda como canastrão se esgotou. O único governador do Democratas no país acabou politicamente. Os próprios Demos na prática já o rifaram ontem, em nota lacônica, diante das evidências devastadoras reunidas até agora pela PF. As revelações parecem suficientes para se deduzir que o governo do DF funcionava como fachada e QG de uma quadrilha que tinha (tem) o governador à testa.

Achaques a empresas, distribuição regular de propinas a parlamentares e aliados, divisão de dinheiro sujo entre membros do primeiro escalão da administração, milhões de reais envolvidos nos esquemas de rapinagem.

As investigações dão conta de que o esquema operava desde a gestão anterior, com o aval do governador Joaquim Roriz, o que precisa ser melhor apurado. Mas as relações entre os dois são antigas. Arruda foi secretário de Obras e chefe do Gabinete Civil de Roriz no início dos anos 90. Na era FHC, já no PSDB, ganhou uma importância que não tinha. Era líder do governo no Senado quando, em 2001, foi flagrado violando o painel de votação e renunciou para não ser cassado.

Arruda transformou seu recuo tático numa pantomima de arrependimento e autoflagelo. Sua volta à política -da qual nunca saiu- está marcada por esse ritual farsesco de conversão e vitória moral sobre si mesmo. Trata-se de um político pedestre, tipo espertalhão e vulgar, que soube inventar para si um enredo eficaz de sobrevivência.

"Reconhece a queda e não desanima, levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima". O grande samba de Paulo Vanzolini já não serve a Arruda. Se sacudir muito, ainda cai algum do seu bolso.

Pedro A. Ribeiro de Oliveira:: Democracia participativa

Sociólogo e professor da PUC-Minas
DEU NA TRIBUNA DE MINAS(JF)

Ao terminar seu governo, Itamar Franco tinha conquistado a admiração do povo. Sua Administração fez mais do que recuperar o velho fusca e inventar a “carta social”: ele construiu uma relação respeitosa entre o Poder Executivo e a sociedade civil, tendo colocado em prática o preceito constitucional de participação cidadã. Essa experiência pioneira de democracia participativa certamente desagradou aos “donos do poder”, que tomam as decisões nos bastidores e depois as fazem referendar por um Congresso submisso.

Tendo assumido a Presidência da República no final de 1992, em consequência do êxito do Movimento pela Ética na Política, Itamar Franco governou o Brasil até o final de 1994. Este foi o tempo que teve para tornar política de Estado a luta contra a fome e a miséria. Isso foi feito em sintonia com os setores organizados da sociedade - e não em lugar deles. Esta não foi tarefa fácil, porque a tradição populista de Vargas, a tática de cooptação do regime militar e o clientelismo revigorado pelo governo Sarney tornaram aqueles setores desconfiados de qualquer iniciativa governamental. “Era outra história” mostra como foi superada essa desconfiança: o Governo Itamar levou o combate à fome e à miséria do campo assistencial para o campo dos direitos de cidadania. Assim emerge a primeira experiência brasileira de democracia participativa em âmbito nacional.

Impotente diante do poder econômico que o havia escolhido vice-presidente numa chapa neoliberal, Itamar abdicou da política macroeconômica e concentrou sua (pouca) força política na implementação dos direitos constitucionais de cidadania, buscando na sociedade meios de pressão sobre o Congresso. Ao convidar integrantes da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida para partilharem as decisões na política social, Itamar criou uma tensão criativa entre Movimentos Sociais e Estado.

Denise Paiva - na época assessora de assuntos sociais da Presidência da República - colheu depoimentos que mostram os percalços e êxitos desse processo, coisa que não se pode esquecer. Para mim, a melhor lição do livro foi mostrar que é politicamente mais eficaz o apoio de Betinho do que de ACM ou Sarney - como fizeram seus sucessores...

Publicado em 29/11/2009

Ítalo Rodrigo Cordeiro:: Guevara: uma chama que ainda arde?

Fonte: Gramsci e o Brasil

Olivier Besancenot e Michael Löwy. Che Guevara: uma chama que continua ardendo. São Paulo: Ed. Unesp, 2009.

Há 50 anos uma revolução nacionalista e anti-imperialista triunfou em Cuba, inaugurando uma nova fase na história da esquerda latino-americana. Mesmo influenciando uma grande parcela da esquerda regional durante muitos anos, o guevarismo, alicerce teórico da revolução cubana, esgotou-se diante da inviabilidade de outra revolução na região baseada no modelo cubano. Com efeito, a palavra “revolução” desaparecia gradualmente da cultura política da esquerda latino-americana para dar lugar à perspectiva da democracia, num processo de autocrítica e renovação de importância decisiva para a sua viragem estratégica das últimas décadas.

Numa América Latina onde as esquerdas renovadas alcançaram o poder nos últimos anos por meios reconhecidamente democráticos, respeitando o processo eleitoral e as instituições, a esquerda inspirada no Che, incapaz de elaborar novos referenciais para interpelar os desafios do século XXI, mira o presente com os olhos presos no passado e volta à carga com a perspectiva de chegar mais fortalecida num possível retorno, em momento oportuno.

Parece não ser outro o sentido da edição deste Che Guevara de Michael Löwy e Olivier Besancenot, publicado no ano de 2009 pela editora da Unesp. Sem outra preocupação, o livro surge como um chamado para aqueles que ainda acreditam que a revolução constitui uma palavra de ordem rigorosamente adequada ao cenário político atual, não apenas na América Latina.

A figura de Che Guevara, modelo do guerrilheiro revolucionário latino-americano e terceiro-mundista por excelência, exerce ainda hoje uma grande atração entre os jovens da região.

No passado, muitos se imaginaram no lugar do próprio Che, assumindo o papel do aventureiro romântico que parte em uma jornada de formação que o levaria até Cuba. Como se sabe, após conhecer Fidel Castro e engajar-se em sua revolução, Che Guevara tornou-se um dos principais mitos não apenas da Cuba revolucionária como da própria esquerda revolucionarista.

É precisamente isso que se repõe com essa publicação, na qual fica clara uma leitura anacrônica fundamentada num marxismo ortodoxo, que, ao se apropriar da imagem do guerrilheiro argentino, e exaltá-la, não tem outra intenção a não ser desqualificar os avanços dos sistemas políticos que arduamente estão sendo construídos no continente, para atualizar o guevarismo no inicio desse novo século. O Che reaparece aqui como um ícone que emerge para sustentar uma “justa” crítica à economia de mercado, sempre vista como “feroz e brutal”, independentemente de quaisquer outras considerações. Como a exposição desses argumentos aparece de maneira bastante viciada (para dizer o mínimo), tudo soa como uma vazia propaganda ideológica, fora do seu tempo e, consequentemente, fora da realidade.

Esbravejando palavras de ordem, afirmando constantemente a origem marxista de Che Guevara e a coerência entre suas palavras e seus atos, entre o pensamento e a ação, Michael Löwy e Olivier Besancenot buscam resgatar na imagem de Che Guevara o espírito de uma cultura revolucionária adormecida há 20 anos em razão da queda do muro de Berlim, do fim da União Soviética e do definhamento/isolamento político dos cubanos.

Nessa análise do cenário político mundial, Michael Löwy e Olivier Besancenot colocam de um lado o capitalismo e o imperialismo, eternos inimigos da “revolução”, e, do outro, os explorados e oprimidos, guiados pela classe operária. Che Guevara surge como a chama, a fonte de inspiração para uma nova geração que (pasmem!) deve buscar no fuzil a expressão material “da desconfiança dos oprimidos para com o Estado e as classes dominantes” (p. 99). Não se sabe ainda de onde Löwy e Besancenot extraíram a ideia de que a via política de Che rompe com o pacifismo da esquerda latino-americana, sem necessariamente flertar com o aventureirismo e o militarismo (p. 56), símbolos incontestes do guevarismo.

De qualquer modo, segundo os autores, para atenuar os arroubos violentos intrínsecos ao seu pensamento político, Che Guevara proporia o controle da violência para lidar com as ambiguidades humanas, reflexo de todos aqueles que lutam contra as “correntes que os prendem”, que enfrentam hoje não mais a ditadura militar, mas a ditadura do dinheiro.

Questionando-se sobre a ausência de uma teoria sobre a democracia no pensamento de Che, Löwy e Besancenot enfatizam que a “atitude” do guerrilheiro argentino por si só comprovaria que o Che era favorável ao debate livre e ao respeito à pluralidade de opiniões. Os autores nos lembram a todo momento que Che Guevara era um pensador livre das amarras do stalinismo, vinculando-o ao primeiro período do marxismo latino-americano, marcado pelos “grandes ancestrais” do início do século XX, como os marxistas Julio Antonio Mella e José Carlos Mariátegui. Desse modo, o guerrilheiro argentino preservaria uma pureza ideológica que o habilitaria como o símbolo revolucionário do novo século.

Nessa perspectiva, governantes latino-americanos como Evo Morales, na Bolívia, e Hugo Chávez, na Venezuela, surgiriam como representantes legítimos da herança guevarista no século XXI. O “carismático” líder venezuelano, segundo Löwy e Besancenot, seria o herdeiro natural das correntes de esquerda em seu país, influenciadas pelo guevarismo na década de 1960. Retomando os movimentos bolivariano e socialista na Venezuela, Hugo Chávez, segundo os autores, encarnaria o desejo de mudança reivindicado pelas novas gerações de militantes guevaristas, tornando-se um contraponto aos governos de centro-esquerda existentes na América Latina, “convertidos à social-democracia” (p. 102).

Na mesma linha, o importante para Löwy e Besancenot é demonstrar que as manifestações sociais do século XXI — como os fóruns sociais e os protestos contra as instituições financeiras internacionais e a guerra imperialista no Oriente Médio, por exemplo —, somadas a lideranças políticas supostamente de esquerda, atualizam o combate comum contra a dominação imperialista a partir do momento em que criticam a “globalização capitalista” e buscam um novo paradigma de civilização, pautado no socialismo humanista de Che Guevara.

Em suma, Michael Löwy e Olivier Besancenot se apropriam da imagem de Che Guevara para justificar um ideal comunista romântico presente apenas em suas cabeças e dissociado da realidade atual. Nessa leitura vale tudo, inclusive afirmar que Che reconhecia a importância da classe operária como vanguarda do movimento revolucionário, como instrumento primordial para derrotar o capitalismo, quando se sabe, por meio do próprio Che Guevara, que ao campesinato estava reservado o lugar da verdadeira classe que guiaria o processo revolucionário e concretizaria, no espírito do guerrilheiro camponês, a verdadeira revolução.

Como nesse livro tudo é possível, os autores chegam a afirmar que a ideia segundo a qual a Cordilheira dos Andes poderia se tornar a Sierra Maestra da América Latina nada teria de absurda. Logo, Che Guevara encarnaria a esperança dessas novas gerações de mudar o mundo por todos os meios necessários, entre eles a luta armada. A mensagem transmitida pelos autores busca alcançar uma parcela da esquerda que se põe, de maneira obscurantista, contra o fortalecimento das instituições e a necessária linha de composições políticas que permitam aos governos regionais consolidar a democracia em seus países, apoiados por uma ampla maioria.

Em suma, mobilizando um personagem já ultrapassado como orientação para a ação, o livro de Michael Löwy e Olivier Besancenot visa contribuir tão somente com a desqualificação das várias esquerdas que na América Latina mantêm como eixo central de suas preocupações a manutenção do pluripartidarismo do regime democrático e a incorporação social ampliada. Ao invés de buscar respostas para os novos desafios enfrentados pelos países latino-americanos, o livro preocupa-se apenas em atualizar os velhos mantras da esquerda revolucionarista há muito tempo em desuso, mas nunca devidamente sepultados.

Ítalo Rodrigo Xavier Cordeiro é mestrando de História na Unesp/Franca.

Fábio Wanderley Reis:: Sociologia da polícia democrática?

DEU NO VALOR ECONÔMICO

A Secretaria de Defesa Social de Minas Gerais promoveu na semana passada o I Seminário Internacional sobre Qualidade da Atuação do Sistema de Defesa Social. O foco foi a preocupação, num mundo em que o desafio de preservar a segurança apresenta complicados aspectos novos, com como garanti-la de maneira a um tempo efetiva e democrática. Com a presença de especialistas acadêmicos brasileiros e estrangeiros de diversos países e de experientes e destacadas figuras ligadas à aparelhagem civil e militar de segurança de diferentes Estados do país, as apresentações se estenderam de temas como o papel e as funções da polícia numa sociedade democrática, ou o novo e difundido sentimento de insegurança de raízes domésticas e internacionais e suas consequências para o estado de direito, até o exame de recomendações como a de uma polícia de raízes "comunitárias" e da questão de como regular o uso da força.

Uma perspectiva brasileira a respeito do tema geral, que eu mesmo elaborei brevemente como participante da mesa de encerramento, sugere a relevância de uma sociologia política algo mais ampla do Brasil como referência comparativa de interesse para eventual "sociologia da polícia democrática". Ela se esboça com alguns dados de pesquisas executadas anos atrás no país. Quando se consideram as disposições da população quanto à ideia de democracia tomada com ênfase em sua dimensão político-eleitoral, os dados mostram que, não obstante a correlação positiva geral entre o apoio à democracia e o nível de escolaridade ou de sofisticação intelectual das pessoas, as opiniões favoráveis à democracia são mais frequentes dos que as que se opõem a ela nos diversos níveis de escolaridade e sofisticação. O apoio à democracia, como mostram pesquisas do Latinobarômetro, é em geral mais baixo no Brasil do que em vários países hispanoamericanos; mas isso não impede que o caráter convencional adquirido pela ideia da democracia política e eleitoral leve a que ela se difunda também entre nós.

Se tomamos, porém, a dimensão "liberal" que se supõe associada à ideia de democracia, e na qual se trata dos direitos civis mais diretamente relevantes para questões de segurança e da atuação policial, as coisas são diferentes - e é especialmente revelador que a pesquisa remetia explicitamente, aqui, a temas dramáticos como o linchamento de bandidos, a ação dos "esquadrões da morte" e o recurso à tortura pela polícia. Neste aspecto, não só encontramos, entre as pessoas educadas e sofisticadas, apoio significativamente menor às posições democráticas (em favor da garantia igualitária dos direitos civis para todos) do que o que se tem para a democracia eleitoral; encontramos também, nos estratos populacionais menos educados e sofisticados, maiores proporções de gente pronta a manifestar reservas à garantia dos direitos civis - ou seja, os integrantes desses estratos se mostram amplamente dispostos, com algumas qualificações, a apoiar a tortura, os esquadrões da morte, os linchamentos...

Como se encontram sobretudo nos estratos populares as vítimas da violência criminosa, cabe ligar essa disposição, em parte, à ideia de que garantir os direitos civis resultaria em "proteger bandidos". Mas essa interpretação se ajusta mal ao fato de que estão aí também as vítimas da violência que vem da própria polícia, como resultado quer da corrupção de setores dela pela proximidade e eventual articulação com o mundo do crime violento, quer do mero uso inepto e abusivo da força. De todo modo, ao menos parte da explicação para o padrão geral revelado provavelmente se deve a que, ao contrário do que ocorre com a democracia eleitoral, em nossa sociedade de forte tradição elitista a ideia de direitos civis a serem assegurados igualmente para todos está longe de ser uma ideia convencional e de enraizamento profundo na sociedade. E os mecanismos perversos em jogo permitiriam supor que o fato mesmo de haver reservas importantes aos direitos civis nas camadas mais favorecidas e educadas é talvez parte da explicação para sua penetração nos estratos populares: um certo efeito de "casta" operaria aqui, favorecendo a que as ideias "convencionais" numa sociedade desigual e elitista tendam a ser as ideias elitistas.

Isso não pode senão complicar a consideração da questão de "que fazer". A dinâmica econômica e demográfica aumenta em plano mundial a violência urbana, e a insegurança intensificada no pós-11 de setembro torna mais difícil manter o uso da força em limites compatíveis com a garantia dos direitos civis mesmo nos países de tradição liberal. Alguns desses fatores se conjugam, em nosso caso, com condições estruturais e de psicologia social próprias que representam pesado lastro negativo a ser tido em conta. Não é aceitável, naturalmente, a máxima de que nenhum esforço tópico tenha legitimidade ou valha a pena enquanto não se fizer a transformação radical da sociedade como tal - transformação que, por outro lado, inegavelmente se acha em andamento em processos profundos em grande parte independentes da vontade de quem quer que seja. É indispensável o esforço de engenharia organizacional e institucional-legal orientado pela meta de uma polícia regulada e contida, mas capaz de agir com eficácia como força repressora - e uma ponderação importante é a da necessária atenção para a reforma da Justiça, que a torne mais presente e estreite os limites em que "chamar a polícia" nos exporá fatalmente aos inconvenientes e riscos do uso da força. Mas é bom estar prevenido: o peso de nosso legado, combinado às inevitáveis turbulências da dinâmica em que ele eventualmente venha a superar-se, parece reservar-nos um amplo futuro de violência e insegurança.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da UniversidadeFederal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

Carlos Lessa:: Venceríamos todos...

DEU NO VALOR ECONÔMICO

É insólito o ministro falar da necessidade de uma desvalorização cambial de 34%

Dia 18 deste mês, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, proclamou que, "se o dólar no Brasil estivesse a R$ 2,60, venceríamos todos". Prosseguiu afirmando que, assim, "a indústria nacional poderia enfrentar a concorrência dos chineses e coreanos" e enfatizou: "a indústria brasileira tem muita competência e capacidade, mas nós temos uma desvantagem cambial".

Concordo inteiramente com o ministro, pois após a crise, o yuan chinês se valorizou apenas 3% em relação ao dólar, enquanto o real brasileiro se valorizou quase 30% (um primeiro lugar altamente negativo). Porém, fiquei perplexo: é insólito para o mercado de capitais e financeiro atrelado ao câmbio flutuante um ministro da Fazenda falar da necessidade de uma desvalorização cambial de 34%, mas praticamente nada aconteceu. Essa é outra surpresa.

De duas, uma: ou "o mercado" não escuta a Fazenda ou teria acontecido outra notícia neutralizando a declaração. Creio que a última hipótese ocorreu, pois no mesmo dia, Mário Torós abandonou a diretoria do Banco Central e o dr. Meirelles disse que, a pedido de Lula, ficará no cargo até o fim de 2010. Se alguém tinha qualquer dúvida sobre quem comanda "o mercado", percebeu que vivemos sob o Império do CMN e do Presidente Meirelles: no mesmo dia, correu a notícia de que os membros do CMN escolheram o substituto do demissionário Torós. Nada de novo no Quartel de Abrantes?

Obviamente, por trás da declaração de Mantega está sua inequívoca preocupação com a atrofia das exportações de produtos manufaturados e a explosão de gastos pouco prioritários, como no turismo. Deve prevalecer a preocupação com a brutal perda financeira que o Brasil tem ao comprar dólares que afluem em busca dos juros a 8,75% a.a. e são aplicados, pelo BC, em Títulos do Tesouro americano, que rendem cerca de 1% a.a. O ministro da Fazenda sabe que, nessa absurda operação, o Brasil perde mais que os gastos federais em Saúde e Educação. Sabe, também, que num mundo em crise o Brasil é o paraíso dos aplicadores de capitais de curto prazo, atraídos pelos juros reais que o BC paga, pela ausência de tributação, pela cláusula cambial e pela facilidade de retorno. Essa cadeia de felicidade para os especuladores se realimenta, pois o afluxo de dólares valoriza o real e aumenta os ganhos especulativos dos pioneiros da cadeia. O coro que apresenta o Brasil como "uma ilha de felicidade no oceano da crise mundial" reforça a atratividade da aplicação suicida dos dólares afluentes. Quero crer que o ministro Mantega não aprova essa política do Presidente Meirelles, mas tem que agüentar a versão tupiniquim da Doença Holandesa e perceber a atrofia da renda da agropecuária e o desestímulo à atividade industrial.

Imaginei que, nas catacumbas da política econômica, alguma alquimia estivesse sendo desenhada. Alguns sinais já haviam sido emitidos: a aplicação do IOF de 2% aos capitais estrangeiros afluentes (um modesto ensaio de freio), o boato de que os brasileiros poderiam manter contas em dólar em bancos no Brasil (remuneradas a 8,75%? ), e o rumor cada vez mais insistente de que o BC estaria avaliando a possibilidade de os bancos que operam no Brasil poderem fazer operações de derivativos a partir daqui. Desatar as regras de estruturação e derivativos a partir do Brasil "seria uma simplificação burocrática" e soaria como avant première de que o Brasil estaria dissolvendo qualquer "amarra cambial", estaria dissolvida qualquer "pérfida reminiscência de uma passada situação de escassez de moeda estrangeira". Estaria em estudo a autorização para que fundos multimercados possam aplicar recursos no exterior - afinal de contas, as exportadoras já mantêm mais de US$ 10 bilhões no exterior! Houve a elevação da nota do Moody´s e estaríamos vivendo a "era da fartura de dólares".

A idéia da superação da crise e de que a nau brasileira navegará com as velas enfunadas em um oceano esplêndido é a mais espetacular invenção tupiniquim. Sem esgotar sinais, apenas citando alguns veiculados pela mídia no último mês, vejamos a qualidade da meteorologia futurística do BC e da onda esfuziante de autocongratulações pré-sucessórias do Governo: todos os analistas americanos falam da ameaça de uma bolha de cartões de crédito, deploram o "empobrecimento" das famílias americanas, sinalizam debilidades estruturais nas entidades financeiras (nas últimas semanas, a CIT, maior financiadora de varejo, vacilou), o FCC esgotou sua possibilidade de apoiar agentes financeiros norte-americanos vacilantes etc.

A Europa ainda em recessão, do Japão não vêm boas notícias. A China é exceção, porém é uma economia fechada à especulação internacional, mantém o yuan sintonizado com o dólar e está realizando um gigantesco investimento público em infraestrutura (o contrário do Brasil). No G-2, a atrofia norte-americana abre caminho para uma neo geopolítica chinesa, vitoriosa na Ásia, fortemente instalada na África subsaariana e em rápida penetração no Cone Sul do continente americano.

Agora Dubai pré-anuncia um calote; o Dubai World pediu uma moratória de seis meses. Dubai deve US$ 80 bilhões e anunciou o fechamento de seu mercado financeiro. Nesse país, um mar de areia sobre um leito de petróleo, estourou uma bolha imobiliária e seus hotéis imaginosos estão vazios. Espero que não prospere, com alicerce no Pré-Sal, um trem-bala-bolha equivalente à torre hoteleira instalada em águas salgadas com mais de 20 andares formatados com inspiração de velas.

O mar tempestuoso da crise mundial poderá fazer da "nau brasileira" a repetição da sinistra caricatura que o governo FHC fez da lancha travestida de caravela, que enguiçou antes de chegar a Coroa Vermelha para replicar as naus cabralinas. O Brasil do Presidente Meirelles e do Ministro Mantega parece estar sendo preparado para mergulhar, sem bóia, num mar tempestuoso.

Em tempo: Os depósitos de exportadores brasileiros no exterior não evidenciam retenção de dólares; pelas alquimias do sistema financeiro e pelas facilidades dos anonimatos dos paraísos fiscais, é sabido que uma parcela substancial dos "capitais estrangeiros" de curto prazo pertencem, de fato, a brasileiros que se sentem mais confortáveis tendo fantasia de estrangeiro. Desconheço o tamanho da diáspora de dólares de brasileiros que retornam travestidos em busca dos juros do Presidente Meirelles. Na Argentina, o governo estima que estão no exterior US$ 90 bilhões de dólares de argentinos. Com a abertura cambial total, sem salvaguardas e com uma pseudo-ingenuidade, nada mais fácil que operar transmutações financeiras alquímicas e desfrutar ganhos de arbitragem. Sai de vez o povo brasileiro e, parafreaseando João Ubaldo, "Viva o BC brasileiro" e sua constelação de clientes!

Carlos Lessa é professor emérito de economia brasileira da UFRJ.

Luiz Carlos Bresser-Pereira:: Aquecimento global e equidade

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Os governos usam critérios distintos de metas de emissão quando as estabelecem e não há garantia de que as cumpram

À MEDIDA que se aproxima a conferência sobre o aquecimento global de Copenhague, aumenta a preocupação sobre a possibilidade de seu fracasso. Nesse clima, Thomas Stocker, presidente do Grupo de Especialistas sobre o Aquecimento Global, manifestou-se em recente entrevista ao "Monde" (24.11.2009) sua indignação contra os "negacionistas" financiados por empresas de petróleo e de mineração que buscam pôr em dúvida as evidências científicas sobre o fenômeno.

Estas, entretanto, não deixam margem para dúvida: no último século, as temperaturas médias aumentaram mais de 0,7C, os oceanos aumentaram de nível em 17 cm, 10% das coberturas glaciais foram perdidas, e o teor de sal das águas dos oceanos aumentou. Não creio no fracasso da conferência como um todo, embora não seja possível esperar que os países ricos venham a se comprometer a reduzir as emissões de gases no nível necessário.

A meta relativamente consensual entre os especialistas é a de uma redução global das emissões de 80% em 2050 em relação ao nível de 1990. A União Europeia, que está mais avançada nessa questão, pretende cumprir essa meta, aumentar em 30% a eficiência energética e aumentar para 60% a percentagem de energias renováveis.

Os Estados Unidos, afinal, comprometeram-se em baixar em 17% as emissões em 2020 com base em 2005, enquanto a China fala em 40% a 45% de redução de emissões também em 2020, mas por unidade de PIB (Produto Interno Bruto): ao invés de aumentar em três vezes sua emissão, aumentará em duas vezes.

Entre os países em desenvolvimento, o Brasil se mostrou disposto a estabelecer uma meta de redução de 80% do desmatamento na Amazônia e, mais amplamente, de reduzir de 36,1% a 38,9% suas emissões de gás carbônico até 2020 -uma meta ambiciosa, mas que não impedirá o desenvolvimento do país.

A conferência não deve fracassar porque os negacionistas e aqueles que supõem que o problema possa ser simplesmente resolvido por novas tecnologias menos poluidoras ou mais econômicas de energia não representam o pensamento dominante.

Existe no mundo uma verdadeira preocupação com o problema. Mas os governos não estão ainda em condições de estabelecer metas definitivas. Usam critérios distintos quando as estabelecem e não há garantias de que as cumpram. Por outro lado, a questão da equidade no estabelecimento de metas para os países ricos e os países em desenvolvimento continua confusa.

Nesse ponto, a proposta que me pareceu mais interessante é a de estabelecer o máximo de emissões per capita que o mundo possa suportar e definir esse valor como a meta para cada país. Ao contrário do que foi feito em Kyoto, não se procuraria apurar responsabilidades pelas emissões passadas, mas se estabeleceria uma espécie de "direito de emissão" igual para todos.

Uma meta que implicaria custos mais elevados para os países ricos, mas não deixaria de manter os demais países responsáveis pelo problema que é de todos. Para estabelecer essa meta, será necessário considerar as projeções demográficas que supõem a estabilização da população mundial em torno de 2050. Não sei qual deverá ser essa meta per capita, mas, além de haver nela um princípio básico de equidade (não há nada que justifique que ricos emitam mais gases que os pobres), ela seria clara e simples tanto para ser definida e ajustada quanto para ser monitorada.

Luiz Carlos Bresser-Pereira, 75, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Globalização e Competição".

Fantasma da crise ameaça país

DEU EM O GLOBO

Risco de nova depressão mundial preocupa governo e põe em xeque crescimento previsto para 2010

Patrícia Duarte e Lino Rodrigues

Aluz amarela já acendeu para a equipe econômica sobre 2010, ano que pode não ser um mar de rosas, como o governo vem defendendo. A economia brasileira, aquecida, já atinge níveis pré-crise em vários setores - conforme mostrou reportagem do GLOBO publicada na edição de ontem - e tem tudo pra crescer 5% ou mais no ano vem, porém existe um fantasma que pode se concretizar e jogar água na fervura: uma nova depressão nos Estados Unidos. É aquilo que os economistas chamam de "recuperação em W". Ou seja, a economia, depois de uma crise, começa a crescer novamente mas sofre um novo recuo para, só depois, expandir-se com mais força.

Os sinais de que isso pode ocorrer com os americanos já começaram a ser dados pelo próprio presidente Barack Obama, que citou recentemente o risco de ocorrer o "W". Ele é alimentado, por exemplo, pelas dúvidas sobre a solidez do sistema financeiro e sobre como a economia dos EUA reagirá quando os incentivos oficiais à recuperação - à compra de veículos e imóveis, por exemplo - forem retirados.

Além dos EUA, a Europa também começa a dar sinais de que pode passar um novo movimento de depressão em 2010. O presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Márcio Pochmann, participou na semana passada de seminários na Noruega e na Itália e diz que um dos temas recorrentes era a "recuperação em W". O tropeço pode vir, argumenta ele, porque os investimentos produtivos ainda não estão totalmente fortalecidos, e os governos, por causa da turbulência no fim de 2008, já não têm fôlego para injetar muitos recursos.

- Países como China, Índia e Brasil vão sentir esse movimento, mas menos, porque os mercados internos estão muito mais fortes - acredita.

Mercado interno como amortecedor

O vice-presidente de desenvolvimento econômico e de gestão do Banco Mundial, Otaviano Canuto, também alertou para um novo mergulho na recessão se as economias avançadas não superarem alguns obstáculos deixados pela crise global, como a herança fiscal, o endividamento financeiro das famílias americanas e o encolhimento do crédito.

- Se a economia desaba, inclusive na China, os preços de commodities também desabam, e isso afeta o Brasil. Não há como imaginar que alguém escape - disse.

Como destacou um importante integrante da equipe econômica, estas ameaças não podem ser ignoradas. É preciso ficar de olhos abertos, já que o Brasil estará crescendo com força e, eventualmente, terá de encarar um mercado mundial muito menos comprador e líquido de recursos para crédito. O setor produtivo também já está atento, mas otimista.

A fonte enumera, entretanto, as armas que o país já tem pra enfrentar um novo soluço: reservas elevadas - cerca de US$230 bilhões, que poderão chegar a US$270 bilhões se o Banco Central (BC) continuar comprando dólares no ritmo atual; avaliações de risco baixas, sobretudo pelos graus de investimento já concedidos; e contas fiscais sob controle.

Além disso, acrescentou, há todo o arsenal preparado com o primeiro round da crise, no ano passado. Ou seja, toda a legislação e resoluções que inundaram o país com crédito do fim de 2008 até o início de 2009, como reduções de compulsórios e leilões de dólares com compromisso de recompra. A fonte ressaltou ainda que, mesmo com as reduções do compulsórios bancários, ainda há um estoque elevado - acima de R$100 bilhões em espécie - e que, em 2010, pode chegar a R$180 bilhões.

- Não foi nada fácil montar todas aquelas medidas. Passávamos a madrugada avaliando a legislação. Agora, tudo já está pronto - contou a fonte.

Durante a semana passada, o presidente do BC, Henrique Meirelles, tocou no assunto. Mas ele defendeu que, se houver nova retração nos Estados Unidos, o Brasil sentirá menos os reflexos.

O setor produtivo também não aposta que haverá uma nova turbulência originada pelos americanos, mas, se isso ocorrer, o mercado interno brasileiro servirá de amortecedor. Para o presidente da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), Eduardo Eugênio, até mesmo os investidores estrangeiros enxergam o enorme mercado do Brasil.

Exportador teme protecionismo

Além disso, ressaltou ele, o mercado chinês também pode ser uma das saídas, já que o crescimento naquela região continuará forte, podendo absorver produtos brasileiros. Eugênio diz ainda que, atualmente, o mercado de crédito está bastante forte e dificilmente o setor produtivo vai sofrer com a falta de liquidez.

- Se houver esse recuo (nos EUA), o "W" será bem manco. Com uma perninha de depressão - aposta.

Os exportadores estão menos otimistas, embora confiantes. Para o vice-presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, o governo americano, para estimular sua atividade econômica, pode adotar ações que atingirão em cheio o comércio mundial. Entre elas, medidas protecionistas ou subsídios para estimular as exportações dos produtos locais.

- Cerca de 70% das nossas exportações são commodities e, caso o preço caia, teremos problemas na balança comercial. Para o Brasil crescer 5% em 2010, como prevê o governo, as exportações terão que avançar pelo menos 15%. Não temos controle sobre o preço nem sobre o volume que exportamos - disse.

O senador Aloizio Mercadante (PT-SP), um dos conselheiros econômicos do presidente Lula, também enxerga que a solução do Brasil é focar no seu mercado interno.

- O ritmo de crescimento da economia americana é importante para o resto do mundo, porque o rabo não abana o cachorro. É difícil que o mundo consiga se recuperar sem os Estados Unidos. Havia um consumismo sustentado por padrões que já não existem. O ajuste americano vai ser doloroso e delicado.

Colaborou Vivian Oswald

Eleição em Honduras tem poucos incidentes

DEU EM O GLOBO

Hondurenhos aguardam resultado sobre grau de comparecimento às urnas, que legitimará ou não a votação

Flávio Freire

TEGUCIGALPA. Apesar do clima militarizado nas ruas das principais cidades de Honduras, a eleição presidencial registrou menos incidentes do que era esperado por conta da crise política que divide o país há cinco meses. As Forças Armadas teriam registrado conflito apenas na cidade de San Pedro Sula, onde soldados do Exército lançaram bombas de gás lacrimogêneo sobre manifestantes contrários ao pleito. O resultado mais esperado não é o vencedor da eleção, e sim o grau de comparecimento às urnas, que legitimará ou não a votação realizada pelo governo interino e contestada por parte da comunidade internacional.

Grupos de resistência e de direitos humanos denunciaram ontem a ação da polícia contra manifestantes nas 24 horas que antecederam a eleição. Um rapaz teria sido morto por soldados e outros 30, presos. Um toque de recolher teria sido comandado ontem por grupos de oposição ao governo. Sob pretexto de evitar embates com militares, o grupo pretendia, principalmente, desidratar o processo eleitoral.

Zelaya pode pedir asilo em outro país da América Latina

Durante todo o dia, a grande preocupação dos hondurenhos era obter informações a respeito dos índices de comparecimento às urnas. A participação de uma maioria de eleitores na votação ou uma forte abstenção definiria o vitorioso da queda de braço entre o presidente deposto Manuel Zelaya - que boicotou o pleito desde sua expulsão do país até a obtenção de asilo na embaixada brasileira, onde permanece há mais de dois meses - e o presidente interino Roberto Micheletti, que reuniu em torno de seu governo aliados ao golpe de Estado.

Zelaya passou o dia recebendo telefonemas de seguidores que informavam sobre o número de eleitores que teriam ido às urnas em diferentes cidades. Ao GLOBO, o presidente deposto disse que não tem mais interesse em ser restituído até 27 de janeiro, quando assume o novo mandatário.

- Essa é uma decisão que deveria ter sido tomada antes da eleição - disse ele.

Especula-se que o presidente deposto já estaria analisando a possibilidade de pedir asilo em algum outro país da América Latina. Ele nega. Ainda assim, o clima não é de euforia entre seus apoiadores.

- Eu diria que o clima na embaixada é de um otimismo contido - informou o ministro-chefe da embaixada, Francisco Catunda, dando sinais de que o grupo zelayista se preocupava ainda ontem com a demanda eleitoral.

Às 15h, faltando duas horas para o fim da votação, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) prorrogou o prazo por mais uma hora por conta da "intensa" quantidade de eleitores nas ruas. Entre os zelayistas, a medida foi considerada uma manobra orquestrada pelo governo interino para "empurrar" hondurenhos indecisos às urnas.

- Todas as instituições foram cooptadas por este governo. Isso (a prorrogação) é uma prova de que eles (o governo) estão desesperados para tentar legitimar esta farsa - argumentou o líder da Frente de Resistência Contra o Golpe de Estado, Rafael Alegria.

Em Tegucigalpa, no entanto, a maior parte das escolas e centros universitários onde foi realizada a eleição não teve movimento intenso. O GLOBO percorreu seis postos de votação.

Num deles, onde o portão foi aberto às 7h15m, já não havia mais eleitores pouco depois das 8h. Na maioria das cidades do interior, onde havia apenas um local para se depositar o voto, houve filas toda a manhã.

No fim da tarde, antes do encerramento, a capital hondurenha começou a ser palco de carreatas dos dois candidatos com maiores chances de vitória: Porfírio Pepe Lobo, do Partido Nacional, e Elvin Santos, do Partido Nacional.

Brasil se divide sobre eleições em Honduras

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Ministros e assessores começaram a defender que o presidente Lula recue e reconheça as eleições de Honduras. Eles avaliam que o Brasil já fez o possível para defender o retorno ao poder do presidente deposto Manuel Zelaya.

Eleição de Honduras divide o governo Lula

Setores políticos abrem divergência com o diplomático e começam a defender reconhecimento do pleito de ontem

Enquanto chanceler Celso Amorim ironiza a votação, tese de que Brasil já fez o que podia para defender volta de Zelaya ganha força


Kennedy AlencarDa Sucursal De BrasíliaEliane Cantanhêde Colunista Da Folha
Apesar do tom contundente do Itamaraty e da área diplomática do Planalto, setores políticos do próprio governo já começam a defender que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recue tacitamente e adote o reconhecimento gradual do resultado das eleições de ontem em Honduras.

Conforme a Folha apurou, ministros e assessores avaliam que a eleição é a porta de saída para a crise, criando uma situação de fato e a perspectiva de um novo governo escolhido por voto direto.

Nessa avaliação, o governo Lula já fez tudo o que poderia fazer para defender a volta ao poder do presidente deposto Manuel Zelaya e para ratificar uma posição pela democracia e contra qualquer golpe de Estado na região, num movimento integrado por todos os países das Américas e também pela União Europeia. Agora, é hora de deixar a situação se resolver por gravidade.

Apesar disso, a área diplomática, liderada pelo chanceler Celso Amorim e pelo assessor especial da Presidência, Marco Aurélio Garcia, mantinha ontem mesmo a resistência a reconhecer os resultados do pleito, sob a alegação de que, como Zelaya não foi reconduzido ao cargo, a eleição é ilegítima e sem valor.

Em Genebra, Amorim foi irônico em conversa com jornalistas brasileiros: "Estou mais interessado no resultado do jogo do Real Madrid, porque essa eleição não é legítima".

Quanto à permanência do presidente deposto Manuel Zelaya na Embaixada do Brasil em Tegucigalpa, ele afirmou que o presidente não está lá como "hóspede", como já fora dito antes pela diplomacia brasileira. "Ele está lá abrigado sob nossa proteção. O fato em si foi reconhecido pela ONU e pede a proteção da embaixada e das pessoas sob sua proteção", afirmou, citando parecer do organismo no início da crise. O reconhecimento ou não do resultado da eleição de Honduras jogou o Brasil e os Estados Unidos em lados opostos.

O governo Lula bateu pé contra a legitimação internacional da eleição, já o de Barack Obama concluiu que não havia condições reais para a recondução de Zelaya e que a única forma de tirar o país da crise e do isolamento seria apoiar o eleito, abrindo uma porta para um recomeço institucional.

Do lado do Brasil, estão Venezuela, Bolívia e Equador, por exemplo. Do lado americano, a Colômbia, o Peru e mais recentemente a Costa Rica, que teve papel de destaque nas tentativas de acordo entre o governo deposto de Zelaya e o governo golpista de Roberto Micheletti.

A questão poderá parar na OEA (Organização dos Estados Americanos), caso o Brasil se mantenha irredutível e liderando a corrente contra a eleição. Neste caso, seriam necessários dois terços dos votos para expulsar Honduras do organismo, de onde já está suspenso desde o golpe de Estado. A questão de Honduras é um dos pontos de divergência entre o Brasil e os EUA e foi o centro do telefonema de uma hora de duração entre Amorim e a secretária de Estado americana, Hillary Clinton, na quinta-feira passada.

Colaborou Luciana Coelho, de Genebra

Ex-guerrilheiro no poder

DEU EM O GLOBO

O ex-guerrilheiro tupamaro José Mujica foi eleito ontem presidente do Uruguai, batendo nas urnas o ex-presidente Luis Alberto Lacalle, da direita. Segundo as pesquisas de boca de urna, Mujica teve pouco mais de 50% dos votos. Ele já anunciou que quer maior aproximação com o Mercosul.

Ex-guerrilheiro no poder

Boca de urna aponta o tupamaro José "Pepe" Mujica como presidente eleito do Uruguai

Janaína Figueiredo

Aos 74 anos, o uruguaio José "Pepe" Mujica se tornou ontem o primeiro ex-guerrilheiro da América do Sul a eleger-se presidente de seu país. Segundo pesquisas de boca de urna, o candidato da esquerdista Frente Ampla, no poder desde 2005, venceu o segundo turno da eleição com mais de 50% dos votos. Segundo empresas de consultoria, Mujica teve entre 50,1% e 51,4% dos votos, contra números que variam entre 44,4% e 46,2% do ex-presidente e candidato do Partido Blanco (ou Nacional) Luis Alberto Lacalle (1990-1995), que, à noite, reconheceu a derrota.

Mujica comemorou a vitória num discurso realizado sob um temporal. O presidente eleito reagiu com bom humor à forte chuva.

- Sabe de uma coisa, povo? O mundo está de pernas para o ar. Vocês deveriam estar aqui (no palanque), e nós aí embaixo, aplaudindo - disse ele. - Elegemos um governo que não é dono da verdade e precisa de todos. Custou-me uma vida entender que o poder está nas massas.

O presidente eleito, que nos anos 60 e 70 militou no Movimento de Libertação Nacional Tupamaros, planeja uma política econômica que dê garantias aos investidores, o aprofundamento da integração do Uruguai no Mercosul e no continente, o combate à pobreza (que atinge 20% dos uruguaios) e algumas propostas polêmicas, como a permissão do trabalho de crianças com mais de 10 anos. Ele também defende processos judiciais sobre violações dos direitos humanos cometidas durante a última ditadura (1973-1985), apesar de a maioria dos uruguaios ter votado pela manutenção da Lei de Caducidade (a anistia aos militares uruguaios, aprovada na década de 80) no referendo de 25 de outubro passado.

- Vamos respeitar a decisão do povo, mas temos de esclarecer que mesmo com a lei vigente, existindo vontade política, existirá margem para esclarecer muitas coisas - assegurou ele.

Mujica, o presidente eleito mais velho do país, também poderia promover a descriminalização do aborto, medida defendida pelo MPP, facção liderada por ele na Frente Ampla. No governo do atual presidente, o esquerdista Tabaré Vázquez, a descriminalização foi aprovada pelo Congresso, mas vetada pelo Executivo.

Sistema de saúde não poderia recusar abortos

Segundo Mujica, o assunto deve voltar a ser discutido. Na visão dele e de sua mulher, a senadora eleita Lucia Topolanksy, o sistema de saúde deve atender mulheres que queiram abortar e tentar evitar essa decisão, mas não podem proibi-las, já que isso provocaria a morte de grávidas que recorrem a clínicas ilegais.

A defesa de Mujica de um "trabalho infantil digno" também despertou preocupação em alguns setores. Para ele, a participação de crianças com mais de 10 anos em trabalhos familiares "é mais digna do que ver como nossos menores são obrigados a estar nas ruas mendigando".

Ontem, Mujica prometeu diálogo e até participação da oposição em seu governo. Votou cedo e foi para sua chácara. Encerrada a votação, reuniu-se com colaboradores no hotel NH Columbia, onde recebeu a visita de Vázquez.

Para o atual presidente, o Uruguai deu um exemplo de civilidade e democracia aos países da região, sobretudo a Honduras, que realizou, para Vázquez, uma "eleição ilegítima", cujo resultado não será reconhecido pelos uruguaios.