Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
domingo, 27 de dezembro de 2009
Reflexão do dia - Bruno Gravagnuolo
Tasso Jereissati :: A pressão sobre Aécio vai ser muito grande' - Entrevista
Senador diz que PSDB sonha com chapa puro-sangue e que janeiro é a hora de Serra ir para a rua como candidato
Para o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), com a desistência do governador de Minas, Aécio Neves, de disputar a Presidência da República, a candidatura do governador de São Paulo, José Serra, tem que estar na rua em janeiro. Informado da decisão do mineiro enquanto passava por um check-up anual nos Estados Unidos, Tasso classificou a atitude como um “gesto espetacular” porque força o partido a antecipar a decisão sobre a candidatura e buscar alianças. Aécio, segundo ele, será pressionado a aceitar compor com Serra a chapa puro-sangue
Isabela Martin
Fortaleza
O GLOBO: Como o senhor recebeu a notícia da desistência do governador Aécio Neves?
TASSO JEREISSATI: Havia uma expectativa que a gente entrasse o ano novo com uma solução.
O Aécio fez um gesto espetacular, ao mesmo tempo que foi bastante pragmático. As suas possibilidades concretas estavam numa prévia. E as prévias não se realizando, para o partido o melhor era ele tomar essa decisão. Agora em janeiro somos obrigados a tomar uma decisão junto com nosso candidato, que fatalmente será o Serra.
Serra já decidiu se será mesmo candidato? Ele está reticente ou é estratégia?
TASSO: Serra é uma pessoa que gosta de tomar decisões de última hora. Faz parte da sua personalidade. Mas o partido está exigindo agora em janeiro uma decisão. Em outras circunstancias não seria tão necessário. Mas Lula precipitou a campanha em mais de um ano. É difícil você ver uma foto do Lula hoje em que a Dilma não esteja como papagaio de pirata do lado.
‘Nem jeitão de candidata ela (Dilma) tem’
O senhor conversou com Serra depois da decisão de Aécio?
TASSO: Não. Mas para o Serra não ficou alternativa, é definir ou definir. Janeiro chegou, e chegou este momento.
Além do DEM, quais os outros partidos que podem compor uma aliança?
TASSO: Acho que pode vir ainda o PMDB.
Rachado.
TASSO: Rachado ele vai ficar. A definição da candidatura Ciro vai definir um quadro de maneira decisiva. Acho que o próprio PDT, diante de uma candidatura do Ciro ou não, ainda não tem uma definição muito clara. E essas definições vão também levar a que outros partidos, como o PMDB, revejam sua posição.
A chapa puro-sangue não torna mais difícil ampliar o arco de alianças?
TASSO: Fica. Mas, no caso do puro sangue sendo com Aécio, a perspectiva de ganhar fica maior ainda. Aécio é agregador. Fora isso, uma chapa que venha com perspectiva de vitória, nos dois estados mais populosos do Brasil, é uma candidatura que nasce muito forte.
Aécio considera isso?
TASSO: Ele colocou que vai ajudar no que puder. Mas a prioridade dele é eleger o governador de Minas. Diante do quadro, ele que se prepare porque vai sofrer uma pressão muito grande do partido e até de outros partidos para aceitar. Por isso que digo que muita água vai rolar. O partido todo sonha com isso.
Quais as chances de derrotar uma candidata que tem Lula como padrinho?
TASSO: A Dilma não é o Lula. O Lula é único porque as pessoas se identificam nele. Não é só por causa do Bolsa Família. Na época do mensalão, ouvi as pessoas do interior dizer: “ele pode até fazer, mas é um de nós”. A Dilma não é. Pelo contrário, nem jeitão de candidata ela tem. Ela não é simpática, não é simples, é arrogante, não tem boa comunicação, é prepotente, e não tem uma afinidade popular.
E o Serra tem?
TASSO: O Serra é governador de São Paulo, já foi prefeito, senador e candidato a presidente com excelente votação. Não confunda não ter afinidade popular com não ser sorridente, gaiato. É uma herança da história dele. A Dilma vai chegar só com o padrinho. O PAC é um fracasso. O discurso da Dilma só pode ser: “o Lula é o meu padrinho”. E daí?
O presidente Lula parece muito confiante de que fará seu sucessor.
TASSO : Lula descolou do chão. Tenho uma admiração por ele, pelo que representou.
Mas ele descolou. O Papa é coisinha na frente dele. Ele está dando aula para o (Barack) Obama e explicando até porque a terra não é redonda e dizendo que foi Freud que disse isso. Como diz a juventude, ele está se achando. Não é surpresa ele achar que onde tocar o dedo vai se iluminar
Boris Fausto:: Lula e os enigmas do futuro
Em meio a uma conversa despretensiosa, um amigo me pergunta: como você acredita que Lula e seu governo serão avaliados no futuro? Evitei dizer que assuntos do futuro se situam no campo das projeções dos cientistas políticos, enquanto os historiadores lidam com o passado. Preferi enfrentar a questão, embora a resposta seja difícil, na melhor das hipóteses.
Isso por duas razões principais, e a primeira é bastante óbvia. A carreira política do presidente Lula não está encerrada. Não só porque ele tem ainda um ano de mandato, às voltas com o triunfo, custe o que custar, da sua candidata a presidente. Depois, porque não se sabe quem vencerá as eleições, afora a possibilidade, ao menos hoje vista como muito possível, de que Lula volte a se candidatar, nas eleições de 2014.
A outra dificuldade da resposta é menos óbvia e tem que ver com a constatação de que não existe "um veredicto da história". Essa dama caprichosa flutua ao sabor das diversas interpretações, umas superando as outras e vice-versa, ao longo do tempo. Dois exemplos expressivos: Getúlio Vargas é lembrado, por um lado, como o pai dos trabalhadores, o ícone da industrialização, o doador da legislação trabalhista e, de outro, como o repressor das liberdades públicas, do direito de expressão e como introdutor da tortura de presos políticos.
Na Argentina, guardadas as diferenças, o mesmo acontece com o general Perón. Mais ainda, sua figura se projeta, retrospectivamente, no passado. O controvertido Juan Manuel de Rosas, que governou um país cuja unidade ainda não se realizara, em boa parte das décadas de 1830 e 1840, é visto como antecessor do nacionalismo personalista e do peronismo, tanto por peronistas como por liberais, mas com avaliações opostas. Assim, respectivamente, Rosas ganha as cores de um abominável caudilho ou de um notável precursor da construção da nacionalidade. É curioso notar, no caso de Getúlio, que a imagem positiva se impôs à negativa. Os aspectos condenáveis dos 15 anos do primeiro governo Vargas figuram em segundo plano, como evidenciam os textos publicados por ocasião dos 50 anos de seu suicídio.
Mas a pergunta de meu amigo abre caminho a outra abordagem: ela gira em torno das perspectivas da história imediata, voltada a um passado que é quase presente, e da história a ser escrita no futuro. Superada, nos dias de hoje, a questão da possibilidade de escrever a história do presente, convém lembrar as diferenças.
É verdade que quem vive ou viveu fatos muito recentes reflete nos escritos suas opiniões e mesmo suas paixões com maior intensidade. O historiador distanciado dos eventos tende a ser mais frio, mas dificilmente consegue introduzir em sua narrativa um elemento importante: o calor da hora. Outra diferença significativa é a inclinação do historiador do presente no sentido de ressaltar a trama da política cotidiana, enquanto o historiador do futuro tenderá a ignorar processos e fatos que para os contemporâneos são relevantes. Em certos casos, ele terá ainda a vantagem de poder pesquisar em arquivos hoje indisponíveis ou desconhecidos, como ocorreu, com alto rendimento, no caso da história da União Soviética.
A essa altura, vou ao tema da pergunta inicial lidando só com alguns aspectos mais significativos. No plano pessoal, o futuro deverá lembrar a extraordinária biografia de Lula, que já nos dias de hoje está a merecer uma análise equilibrada. Se os primeiros anos da biografia são conhecidos, quem se preocupará, no futuro, em responder a muitas questões que emergem quando a história de vida chega à fase adulta? Prevalecerá uma narrativa mítica ou outra que se preocupe em indagar como se deram as inflexões de sua carreira? Como um discurso com um verniz socialista - "verniz" porque seu conteúdo nunca foi explicitado - se converteu num extremado pragmatismo, para dizer o menos, que levou a alianças com Sarney, Collor, Renan Calheiros, Roberto Jefferson e tutti quanti, mas levou também à sensatez, no âmbito da política econômica e financeira?
Indo adiante, como serão vistos os dois mandatos sucessivos dos presidentes Fernando Henrique e Lula, que cobrem 16 anos da história brasileira? Esse tema, nos tempos atuais, é um instrumento da luta política desfechada pelo governo, mal refutado por uma oposição cujo fio parece perdido. Basta lembrar o rótulo da "herança maldita", aplicado a um conjunto de reformas institucionais e medidas legislativas que deram bases de sustentação ao governo Lula. Penso que esse aspecto e outros como, por exemplo, a continuidade dos programas de transferência de renda, apesar de suas diferenças, tenderão a ser ressaltados no futuro.
Em suma, a meu ver, a perspectiva de continuidade tenderá a prevalecer sobre a da ruptura, significando que muitos dos traços específicos do governo Lula e do petismo ficarão na sombra. Arrisco dizer que a ocupação de milhares de cargos de confiança, o mais das vezes segundo critérios partidários; o avanço da corrupção em níveis nunca antes alcançados; e o aviltamento da vida política serão temas considerados menos relevantes. Não afirmo, obviamente, que essa tendência seja positiva, apenas acredito que ela irá se impor.
Por último, quem sabe num futuro mais serenado acadêmicos e jornalistas se dedicarão a temas como o da emergência de uma nova elite, formada de sindicalistas, mas não só deles, que chegou aos vários escalões do poder no bojo da ascensão de Lula. Ou ainda se voltarão para a imagem do presidente, para o conteúdo de suas falas, em que a imensa capacidade de se identificar com a grande massa deixa em segundo plano as tiradas reveladoras de uma monumental ignorância.
Boris Fausto, historiador, presidente do Conselho Acadêmico do Grupo de Conjuntura Internacional (Gacint-USP), é autor, entre outros livros, de História do Brasil (Edusp)
Fernando Abruccio :: As lições de uma década boa para o Brasil
O lulismo e o legado de FHC não estão nem do lado do neoliberalismo nem do estatismo chavista
A primeira década do século XXI foi um período de boas colheitas do que fora plantado no passado recente e nas ações da Era Lula. As principais conquistas foram a consolidação da democracia, a estabilidade econômica, a maior inclusão social e o novo status geopolítico. Outras nos esperam no próximo decênio, com os megaeventos esportivos, o pré-sal e a janela demográfica positiva. Para que este processo virtuoso continue, duas coisas devem ser feitas concomitantemente.
A primeira é entender as razões dos sucessos atuais. A segunda é refletir sobre os obstáculos que impedem que o Brasil seja, definitivamente, o país do futuro.
Os bons resultados do presente começaram a ser plantados nas últimas duas décadas do século passado. O primeiro passo foi a Constituição de 1988. Tão vilipendiada logo após seu nascimento, ela, de fato, tinha alguns problemas, mas continha as bases para uma ordem democrática inédita no Brasil. Trouxe avanços não só no terreno das instituições, como alargou os direitos dos cidadãos, em termos de políticas públicas e de legislações protetoras.
A década de 1990 criou as bases da estabilidade econômica, com o fim da inflação crônica e das “torneirinhas” fiscais que tornavam descontrolado o gasto público. Também foram tomadas medidas para aumentar a competitividade da economia brasileira e sua integração internacional. Ainda foram corrigidas algumas incongruências da Constituição de 1988, por meio de reformas constitucionais patrocinadas pelo presidente Fernando Henrique Cardoso.
O novo século foi inaugurado politicamente com a vitória de Lula na disputa presidencial. Consolidava-se a democracia, pois todas as forças relevantes tinham tido sua chance de governar. Soma-se a isso o caráter simbólico da eleição de um ex-operário e retirante nordestino. Ela mostrava que era possível democratizar o acesso ao poder. Esse sinal de ascensão social num país marcado pela enorme desigualdade foi bem entendido por Lula, que deu prioridade à agenda de inclusão de milhares de brasileiros.
O sucesso de Lula pode ser medido hoje pelos resultados sociais e econômicos do país, particularmente se comparados ao passado de estagnação. Além disso, o melhor espelho para um país é a percepção externa sobre sua situação. Deixamos o incômodo clube da dívida para sermos alçados à arena dos que têm influência internacional. Isso é obra iniciada antes do governo petista, com a construção do Mercosul e de uma governabilidade política e econômica mais estável na Era FHC. Lula aproveitou esse alicerce e, afora arroubos de megalomania, ampliou o poder geopolítico brasileiro.
A primeira década do século XXI foi a melhor desde os anos 1970, com a vantagem de ter sido construída num cenário de democracia política e redução das desigualdades. Lula foi o governante na maior parte desse período. O ponto interessante é saber como ele alcançou esse resultado. De um lado, a resposta está na mistura de continuidade de políticas que estavam dando certo com inovações focadas na inclusão social. De outro, na combinação de ações estatais, privadas e da sociedade como forma de resolver os problemas da ação coletiva. Nossa sorte é que o lulismo e grande parte do legado de FHC não estão nem do lado do neoliberalismo nem do estatismo chavista.
O próximo decênio tem tudo para ser melhor do que o atual se mantivermos os acertos e encontrarmos os caminhos das agendas certas. Cinco são os temas que poderão fazer a diferença: modernização da gestão pública, fazendo mais e melhores políticas sem aumentar a carga tributária (talvez até racionalizando-a); investimento em qualidade educacional, melhorando o perfil da mão de obra e dotando a população de condições apropriadas para o exercício da cidadania; melhoria da infraestrutura para dinamizar a economia, com respeito ao meio ambiente; revolução na governança das grandes áreas metropolitanas brasileiras; e ampliação da democratização, aperfeiçoando as instituições e iniciando a renovação da (boa) elite política.
A década passada deve ser comemorada. Mas o caminho para o futuro dependerá de não nos contentarmos com os avanços obtidos até agora.
Fernando Abruccio é doutor em Ciência Política pela USP, professor da Fundação Getúlio Vargas (SP) e escreve quinzenalmente em ÉPOCA
José de Souza Martins :: Nas urnas, o confronto de mentalidades
O social do PT não é igual ao do PSDB
Esta passagem de ano, no plano político, tem características particulares porque ocorre simultaneamente ao calendário da renovação cíclica do poder pela manifestação eleitoral da vontade popular. Na passagem de 2002 para 2003 tivemos, pela primeira vez, a chegada de um ex-proletário à Presidência da República, revestido da aura do profetismo popular, em torno dele laboriosamente construída ao longo de anos pelos especialistas no assunto. Vivemos o esplendor do momento inaugural de um fato verdadeiramente novo na história política da República. Porém, na passagem de 2009 para 2010, o que temos é o oposto, o País vencido pelo cansaço que há em tudo que era supostamente novo e se revelou melancolicamente velho e pouco criativo.
O governo Lula chega ao seu último ano com significativa lista de débitos políticos em relação às promessas de discurso, ao necessário e ao esperado por seus constituintes mais exigentes e radicais. Sua reforma agrária não só ficou muito aquém do que dele esperavam fiéis apoiadores, como o MST e a Pastoral da Terra: ficou aquém da consistente reforma agrária de Raul Jungmann no governo FHC. Jungmann enfrentou a grilagem e decretou a anulação de títulos correspondentes a algumas dezenas de milhões de hectares de terra sem lastro legal. As vacilações do governo Lula em relação à demarcação das terras indígenas trouxeram sua política indigenista para um patamar muito inferior aos de governos anteriores. Sua atitude em relação à questão dos mortos, dos torturados e perseguidos políticos desdiz sua condição de indenizado por ter sido ameno prisioneiro da ditadura, e é imenso o recuo nesse débito político e moral do Estado brasileiro. As figuras expressivas e representativas que têm abandonado o governo e o PT nestes sete anos do lulismo são os melhores indícios de recuos históricos do presidente e do partido.
Antes das eleições de 2002, na Carta ao Povo Brasileiro, o PT deu sua guinada para a direita, para viabilizar a chegada ao poder, comprometendo-se com a dominância de uma economia que equivocadamente combatera até então. Em 2009, para continuar no poder, em face das dúvidas de seu eleitorado mais fiel, articula sua guinada para a esquerda. Um partido bifronte, de esquerda e de direita, conforme a circunstância e conforme o público. Esse é outro dos problemáticos legados ao ano eleitoral de 2010, bem diferente de 2002.
Ao mesmo tempo, o outro partido de perfil ideológico consistente, o PSDB, reluta em explicitar sua social-democracia, em reconhecer e expor abertamente suas contribuições modernizadoras da política nessa linha ideológica. O partido se fecha aos ganhos e acertos sociais do governo FHC em face das tradições do atraso, clientelismo e populismo. Neste final de era, uma coisa é clara quanto aos dois partidos que se defrontam: a política social do PT é preferentemente dirigida a pessoas com cara social e individual precisa. É o caso não só do Bolsa-Família, que passou a ter essa característica no governo Lula, mas também o do ProUni, para incrementar o acesso dos jovens às escolas superiores privadas. Já a política social do PSDB é dirigida a categorias sociais abstratas, em função de necessidades sociais e coletivas e não primeiramente em função de necessidades pessoais. Foi assim nas políticas de FHC reproduzidas e personalizadas por Lula. Está sendo assim nas políticas sociais de Serra em São Paulo, como é o caso da vital expansão do transporte de massa, metrô e trem, é assim na sua política de valorização da educação por meio da valorização do educador e foi assim nas orientações que adotou quando ministro da Saúde. Uma orientação modernamente social no confronto com a orientação pré-moderna e personalista da política social de Lula.
Resta saber como o eleitorado receberá essa diferença em 2010 e qual será sua opção final. A orientação do governo do PT é claramente em direção à mentalidade dos pobres e desvalidos, na geralmente falsa pressuposição de que são dependentes de tutela e paternalismo. A do PSDB é claramente em direção à mentalidade da classe média, na pressuposição que também pode ser falsa de que seus membros pensam com a própria cabeça e tomam suas decisões políticas com base na avaliação consciente e racional das funções e ações do Estado.
O legado político para 2010 será, portanto, o do confronto e da disputa entre essas duas mentalidades e seus implícitos projetos de poder e só secundariamente entre partidos e nomes. Na última década e meia a classe média cresceu, até com as políticas do PT, a escolarização se difundiu, a ansiedade messiânica teve forte redução, o que favoreceu a mentalidade mais representada pelo PSDB. No entanto, o governo Lula criou mecanismos de institucionalização da pobreza, de que o Bolsa-Família é o principal e mais invisível instrumento. Nesse plano, a mentalidade que preside e decide é a mentalidade messiânica que ainda tem forte papel na política brasileira.
José de Souza Martins, Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Entre outros livros, autor de A Sociedade Vista do Abismo (Vozes)
José Murilo de Carvalho:: Entre a república e a democracia
Sem instituições sólidas e respeitadas, a política de inclusão social e econômica não bastará ao Brasil
Passada a moda da cidadania, veio a da república. Como no primeiro caso, não se sabe bem o que se quer dizer com a segunda palavra. Mas a nova moda sugere um pequeno exercício de interpretação da vida política do País mediante um contraste entre república e democracia.
República é forma de governo, mas também valores e um modo de governar, que é o que me interessa aqui. O coração da república está na própria palavra, coisa pública. Desde sua criação pelos romanos, ela significa igualdade civil e governo voltado para o interesse coletivo. Montesquieu a caracterizou como governo de cidadãos virtuosos. Entre nós, frei Caneca foi quem melhor a formulou.
A democracia, por seu lado, desde as origens gregas, sempre teve a ver com o governo da massa. Esse governo não precisa coincidir com bom governo. Daí que república não é o mesmo que democracia. Havia escravos nas repúblicas romana, norte-americana e latino-americanas. A democracia, na verdade, foi vista até a metade do século 19 como fator de corrupção da república.
Quando a democracia foi domesticada pela representação, tornou-se compatível com a república. Esta passou, então, a poder ser democratizada, seja politicamente pela extensão da participação a todos os cidadãos, seja, mais tarde, socialmente, pela inclusão social de todos. Juntar bom governo e inclusão política e social passou a ser um ideal dos países ocidentais. Cada país perseguiu à sua maneira esse objetivo.
A República proclamada em 1889 no Brasil estava longe de ser democrática. Ela sobreviveu 41 anos sem povo e sem preocupação social. Como avanço democrático trouxe só a extinção do voto censitário, mantendo a exclusão dos analfabetos, que eram 85% da população. Até 1930, a participação eleitoral nas eleições presidenciais não passou de 5% da população. Era uma República patrícia e oligárquica, em que não havia lugar para povo, em que o bem comum era o bem de poucos, embora não faltasse honestidade aos governantes. Ouviram-se logo vozes dizendo que aquela não era a República dos sonhos dos propagandistas. Em nossos termos, dizia-se que era preciso democratizar a República.
Em 1930, houve uma ruptura na República. Além de um violento processo de urbanização, que fez do Brasil, em 50 anos, um país urbano, teve início a democratização política da República com a entrada em cena do povo. A Constituição de 1946 tornou o alistamento e o voto obrigatórios para todos. A participação eleitoral de 5% da população subiu para 70% ao final do século. Os 2,6 milhões de eleitores de 1934 viraram 130 milhões em 2009, dos quais 40 milhões começaram a votar durante a ditadura. A democratização da participação escancarou também o acesso ao fechado clube da elite política. Zé da Silva começou a votar e a ser votado.
Começou também a democratização social da República. O Estado Novo promulgou a CLT e ampliou a legislação social. A ditadura militar ampliou a Previdência. Nos últimos 15 anos, sob a democracia política, a inclusão ampliou-se no campo da educação fundamental e da assistência às camadas mais pobres da população.
Diante de tantos avanços, poder-se-ia concluir que já temos uma República democrática, um bom governo numa sociedade igual e includente.
A conclusão seria precipitada. Passo por cima dos problemas referentes à inclusão social, que têm a ver com a manutenção da desigualdade, a má qualidade da educação fundamental e o restrito alcance do ensino médio. No que tange à prática política, a entrada rápida e massiva do povo no sistema eleitoral foi feita em boa parte durante a ditadura. Mais ainda, o grande déficit educacional e os altos níveis de pobreza ainda prendem a maior parte dos eleitores dentro do círculo de ferro da pobreza. O grau de informação e de liberdade de escolha desse eleitorado é reduzido e ele fica vulnerável a apelos populistas, paternalistas, clientelistas. Seu voto é racional, mas obrigatoriamente preso às necessidades imediatas.
Nossas instituições políticas, sobretudo as representativas, não contam com o respeito dos cidadãos. O fato de o problema não ser só nosso não significa que não constitua uma fraqueza da República. Destaco apenas dois pontos. O primeiro consiste no fato de que nossos políticos, muitos deles formados durante a ditadura, exibem reiterado desrespeito ao cargo e aos dinheiros públicos. Não por acaso, as pesquisas de opinião os colocam sempre nas posições mais baixas (20%) da escala de confiabilidade.
O segundo tem a ver com a relação entre Legislativo e Executivo. Nossa República escolheu ser presidencial. Desde o início, implantou-se um presidencialismo imperial que se sobrepõe ao Legislativo e, no limite, o reduz a mero intermediário entre eleitor e governo. A principal dificuldade dos presidentes consiste em formar maiorias parlamentares. Eles a resolvem negociando favores e benesses.
A igualdade de todos perante a lei, requisito republicano, é ainda letra morta da Constituição.
Desde 1988 várias propostas de reforma já foram feitas para corrigir as falhas do sistema, sobretudo no campo eleitoral e partidário. Ironicamente, o momento positivo que vivemos tem bloqueado o debate das reformas. O que vemos é um presidente popular, um Executivo hegemônico, um Congresso desmoralizado, partidos que abandonaram programas em troca de um pragmatismo radical voltado para cálculos eleitorais.
Tudo isso pode ser democrático, mas não é republicano. A democracia avançou mais rápido do que a República. Pode-se argumentar que essa é nossa originalidade, construir uma democracia sem República. A preocupação com o bom governo, eficiente, transparente e virtuoso, seria, nessa perspectiva, moralismo udenista. Nosso método original de inclusão seria o iberismo estatocêntrico e patrimonialista.
Parece-me, no entanto, que valores e práticas republicanas são essenciais para a consolidação da democracia. Não se trata de udenismo. Trata-se de civismo, de valorização do interesse coletivo e do bom governo, sem os quais não se garante a eficácia e a respeitabilidade das instituições. Sem instituições sólidas e respeitadas, nossa República ibérica permanecerá vulnerável aos ventos das crises econômicas e políticas. Valores e práticas republicanos não são apenas meio, mas também fim.
Acoplar República e democracia é particularmente importante no momento em que o País retoma o velho sonho de grande império. Para realizar esse sonho é preciso respeitabilidade externa, que não se consegue apenas com crescimento econômico e inclusão social. São necessárias também instituições políticas sólidas e padrões internacionais de moralidade pública.
A República precisa da democracia para se legitimar, a democracia precisa da República para se consolidar. O equilíbrio entre as duas está no coração de nosso problema político hoje.
José Murilo de Carvalho, Historiador, membro da Academia Brasileira de Letras e autor de A Construção da Ordem / Teatro de Sombras (Civilização Brasileira)
Miriam Leitão:: Força de cada um
O Brasil vai crescer em 2010, e isso ajudará a candidata do governo Dilma Rousseff. Um ambiente de crescimento com inflação baixa é o ideal para um governista. O candidato José Serra será favorecido pela experiência em cargos públicos e por resultados de São Paulo. Marina Silva tem um discurso coerente com novos tempos. Ciro Gomes tem recall de outras disputas.
Cada candidato tem suas vantagens e armas e com elas entrará na disputa de 2010. Ciro Gomes está afastado de cargo executivo há vários anos, tem tido baixa visibilidade e mesmo assim tem um desempenho acima do que se poderia esperar de um candidato nessas condições.
Marina Silva, dos quatro, é, de longe, a mais carismática.
Candidata há menos tempo, de um partido pequeno, sem estrutura, sem capilaridade, mesmo assim aparece bem nas pesquisas.
Compare-se a maciça propaganda feita pelo governo para Dilma Rousseff com as poucas chances de aparecer que tem a candidata Marina Silva e se verá que a diferença entre elas não é tão grande. Marina poderá crescer se conseguir usar a capilaridade dos movimentos sociais. A parte do movimento social que não foi capturada pela farta distribuição de dinheiro público do governo Lula tem muito mais afinidade com a história e o projeto de Marina.
José Serra tem a inequívoca vantagem de estar na frente nas pesquisas e tem também uma máquina poderosa: a do maior estado da Federação. Ele tem uma série de obras para inaugurar numa área que é um entroncamento de melhora da qualidade de vida, redução das emissões de carbono em São Paulo e aumento da produtividade: a transformação do transporte público na maior cidade do país. Com um transporte mais racional, com a mistura de novas linhas do metrô, dos Veículos Leves sob Trilhos, e aumento da malha de trens, o governo José Serra está iniciando um projeto que pode revolucionar a vida do paulistano. Serra tem a desvantagem de deixar uma obra aberta. Grande parte do projeto está para ser terminada em 2011 e 2012.
Por decisão tomada pelo presidente Lula, o país começou a campanha eleitoral mais cedo. Cedo demais. Lula tem feito uma campanha abusiva para a sua candidata, sabedor que a fragilidade dela é ser uma estreante em campanha eleitoral.
Lula disse que Dilma vai inaugurar obras até o limite legal. Isso mostra que a lei é falha: ao não fixar regras para o período da pré-campanha, a lei se deixa burlar.
Dos quatro candidatos competitivos até o momento, Dilma é a única neste noviciado na política eleitoral.
Não tem natural talento para o palanque. Aparece sempre como um anexo do presidente, e quando fala é um discurso áspero, repetitivo, com palavras e conceitos estranhos ao mundo dos palanques.
Dilma será favorecida pelo ambiente de conforto econômico criado pelo crescimento com inflação baixa. Esse ambiente favoreceria mesmo é o presidente Lula, se ele estivesse disputando a reeleição. É bem mais incerto quando o candidato é outra pessoa.
Não é tarefa trivial transferir votos. Lula terá que provar que votar em Dilma é como se fosse votar nele.
O eleitor tem sua própria forma de pensar, que desafia os analistas. Veja-se, por exemplo, o que aconteceu, pela pesquisa Datafolha, entre agosto e dezembro.
Em agosto, Heloísa Helena estava na pesquisa de intenção de votos com 12% das preferências. Ela desistiu, e seu partido se inclina por Marina Silva. Heloísa Helena, que saiu do PT em conflito, não fez qualquer gesto em direção a Dilma Rousseff. Mas com sua saída da pesquisa, Dilma cresceu seis pontos, Marina, cinco pontos, e José Serra, um ponto.
As obras do PAC são uma vantagem que será explorada por Dilma. Algumas dessas obras são controversas, outras estão muito atrasadas, mas várias delas trarão dividendos eleitorais para o governo. No setor de energia, que ela controla diretamente, Dilma tem que torcer para um ano bom, de muita água nos reservatórios, e sem raios em Itaberá.
Porque se houver um novo apagão, ela certamente ficará com o ônus do evento.
Ciro Gomes pode construir uma espécie de terceira via, encarnando um candidato que não seja nem anti-Lula, nem o candidato oficial. Vai investir contra José Serra, de quem genuinamente não gosta, e esperar a bênção de Lula, em caso de fraco desempenho ou algum imprevisto na candidatura de Dilma Rousseff.
Ciro terá maiores chances se tiver aprendido a conter seus impulsos que produziram gafes notórias em outras campanhas. No cenário em que ele não disputa, José Serra é o beneficiado.
Em Copenhague, Marina Silva foi abordada algumas vezes por jornalistas estrangeiros.
Uma jornalista perguntou a ela se era verdade que três candidatos presidenciais brasileiros estavam ali, na COP-15, e se isso era prova da importância que o Brasil dá à questão climática.
Ela respondeu que a sociedade brasileira está empurrando governo e candidatos para a busca de um crescimento em equilíbrio com o meio ambiente: — Eu acho ótimo que os três estejam aqui, mas evidentemente eu estou nesta causa há trinta anos.
A causa ambiental não é mais um gueto. Espalhou-se por todas as áreas e é a única base para um projeto do século XXI. Marina tem a inegável vantagem de estar neste caminho há mais tempo e ter uma intimidade com todas as nuances dessa vasta questão, onde os recém-chegados podem derrapar. Às vezes, explicitamente, como no ato falho de Dilma.
O ano começará com quatro bons candidatos em campo.
Cada um tem sua força e suas fragilidades. A luta entre eles atravessará 2010 e definirá o rumo dos próximos anos. No comando, estará o eleitor, e seu voto.
Um acervo à espera de reavaliação
Escritor, jornalista e diplomata brasileiro ainda é pouco publicado e estudado e aguarda a edição completa de sua obra
Daniel Piza
Numa carta de 31 de maio de 1883, Joaquim Nabuco (1849- 1910) escreveu que tinha prometido fazer da vida um protesto contra a escravidão, "nada querendo dela, esperando como os escravos o meu dia". O dia da Abolição veio, quase cinco anos depois, e daqui a quatro dias o que vem é o Ano Joaquim Nabuco, uma série de eventos e lançamentos para celebrar o escritor, jornalista, advogado, diplomata e líder mais hábil e vistoso da campanha abolicionista. Cem anos depois de sua morte, ele ainda é um personagem pouco publicado e pouco estudado em contraste com sua importância - ou com a de outros recentes homenageados, Machado de Assis (2008) e Euclides da Cunha (2009), dois amigos e companheiros da Academia Brasileira de Letras.
Nabuco ainda está à espera do dia em que toda sua obra estará integralmente disponível nas livrarias. A carta citada, por exemplo, permanece inédita em livro (leia nas págs. 6 e 7) e foi encontrada pelo Estado ao lado de muitas outras nos arquivos da Fundação Joaquim Nabuco (Funaj), no Recife, responsável pela programação do ano. É endereçada ao Dr. Ubaldino Amaral, que havia criticado o fato de Nabuco não viver no Brasil àquela altura, depois de ter deflagrado - na companhia de André Rebouças, José do Patrocínio e outros - o movimento pela Abolição em 1880, com a fundação da Sociedade Abolicionista Brasileira. Nabuco explica a Amaral que estava no exterior "trabalhando para viver" e propagando suas ideias, elaborando inclusive os textos do livro que vai intitular Abolicionismo. Também reafirma a importância de manter sua independência política e financeira, em nome da causa maior.
Outra carta inédita que a Funaj digitaliza no momento, de 15 de fevereiro de 1888, ano em que a Lei Áurea é finalmente assinada pela princesa Isabel, confirma o papel de Nabuco na articulação internacional do movimento: ali ele conta ao senador francês Victor Schoelcher que havia estado pessoalmente com o Papa Leão XIII e que contava com a opinião pública francesa para pressionar o Brasil a decretar o fim da escravidão. Como sempre em Nabuco, as cartas são muito interessantes porque investidas de sua determinação histórica e de sua prosa estilosa. "A nação quer se purgar de sua vergonha e de seu crime", escreve ao parlamentar francês. E associa a Abolição brasileira de 1888 à Revolução Francesa de 1789: para Nabuco, o fim da escravidão não era apenas a extinção de uma segregação racial, mas também a oportunidade de dar aos brasileiros os princípios de cidadania.
Pouco depois, porém, seus medos recrudescem. Em outra carta inédita, de 2 de janeiro de 1889, Nabuco, que se diz um "liberal monárquico", critica os republicanos por seu ódio racial, pois "falam abertamente em matar negros como se matam cães" e parecem querer uma guerra civil no Brasil pós-abolição. Nabuco, em realidade, esperava que a princesa Isabel levasse o Brasil para o Terceiro Reinado, sucedendo a D. Pedro II, e não admitia que os brasileiros pudessem querer a república em lugar da monarquia. De fato, os primeiros anos da República pareceriam confirmar parte de seus receios, pelo autoritarismo militar; ao mesmo tempo, não trouxeram esse velho temor dos conservadores brasileiros, a guerra civil e o esfacelamento do país em distintas nações, como havia ocorrido nos vizinhos que adotaram o regime.
O quarto documento obtido nos arquivos pernambucanos é um manuscrito de um discurso feito na Argentina. Não está datado, mas é certamente posterior a 1888, porque nele Nabuco se refere à vitória sobre o "feudalismo escravista" e afirma que a causa abolicionista faz parte de uma utopia, a "paz americana", celebrando assim o ânimo futurista do Novo Mundo. Aqui já temos o estado de espírito do Nabuco tardio, que, graças ao Barão do Rio Branco, se reconciliou com o governo e assumiu a vaga de diplomata em Washington em 1905. Também se reconciliou com suas raízes religiosas, que datam de sua infância no Engenho de Massangana, em Cabo de Santo Agostinho, a 48 km do Recife, engenho que está em reforma para o ano comemorativo e foi visitado pelo Estado.
Das mais de 700 cartas escritas por Nabuco, cerca de 450 foram coligidas por sua filha Carolina e publicadas em dois dos 14 volumes de suas Obras Completas (não tão completas assim), publicadas pela Ipê em 1949. Entre outros volumes de cartas de Nabuco estão as que trocou com Machado de Assis, prefaciadas por Graça Aranha (recentemente reeditadas pela editora Topbooks), e com os abolicionistas britânicos, organizadas por Leslie Bethell (mesma editora).
Yoshiaki Nakano :: 2010
Para emergentes como o Brasil, o dinamismo terá de se localizar na expansão do mercado doméstico
O ano de 2010 deverá ficar na história econômica mundial como início de uma nova era ou do verdadeiro início do século 21.
A grande crise do sistema financeiro norte-americano de 2007-2009 marcará o fim de um longo ciclo de expansão econômica mundial marcada pela hegemonia absoluta dos EUA e pela globalização financeira.
Essa crise já trouxe mudanças profundas tanto na configuração política como na economia global. É verdade que mudanças estão ainda em gestação, mas algumas tendências são visíveis, de forma que podemos fazer pelo menos duas conjecturas do quadro global a partir de 2010.
Em primeiro lugar, a mudança na governança global é visível com a constituição do G20, em substituição ao G7. É importante lembrar que o G20 era um fórum de ministros de Fazenda. Com a crise financeira, a reunião do G20, em outubro passado, transformou-se em fórum maior de chefes de Estado das 20 nações mais importantes do planeta. A participação do presidente dos Estados Unidos nessa reunião representou simbolicamente o fim do unilateralismo e da hegemonia absoluta norte-americana e o reconhecimento da "cidadania política mundial" de países emergentes como a Índia, o Brasil e a África do Sul.
Essa mudança na governança global terá consequências mais profundas na América Latina e no Brasil do que na Ásia. Está surgindo o novo desenvolvimentismo nacional, em que alguns emergentes terão espaço para traçar autonomamente o seu destino, ainda que num mundo cada vez mais integrado e globalizado. De fato, o Brasil nesse novo quadro do G20 está tendo que descobrir e definir pragmaticamente os seus interesses nacionais, na medida em que tem de negociar de igual para igual com nações desenvolvidas que sabem muito bem defender os seus.
A segunda grande mudança está ocorrendo na dinâmica da economia global. O superendividamento do consumidor norte-americano, que se traduzia num enorme deficit em transações correntes e num desequilíbrio global, está na raiz da atual crise. Isso está provocando grandes ajustes, com aumento da taxa de poupança e redução do deficit.
O colossal socorro do governo norte-americano aos bancos está se convertendo num crescimento explosivo da sua dívida pública, enfraquecendo o dólar como moeda de reserva. Tudo isso deverá romper com a estrutura dinâmica da economia mundial, em que os EUA estão deixando de ser o centro dinâmico global como consumidores e importadores em última instância. Além disso, como a única saída sustentável para a recuperação do emprego está no aumento das exportações, os EUA estão depreciando o dólar e promovendo uma "guerra cambial" contra o resto do mundo.
Por outro lado, em 2010 a China ultrapassará o Japão, constituindo-se na segunda maior e mais dinâmica economia mundial. Mas, ao atrelar o yuan ao dólar, a China também promove a "guerra cambial". Nesse quadro, o dinamismo para os demais países emergentes como o Brasil terá de se localizar na expansão do mercado doméstico e nas exportações de commodities para a China, que está configurando uma nova divisão internacional do trabalho.
Yoshiaki Nakano, 65, diretor da Escola de Economia de São Paulo, da FGV (Fundação Getulio Vargas), foi secretário da Fazenda do Estado de São Paulo no governo Mario Covas (1995-2001).
Rodolfo Hoffmann :: Desafio de uma geração - Entrevista
Trazer a desigualdade a níveis de Primeiro Mundo levaria 20 anos, diz especialista
Estudioso da desigualdade de renda e no campo há mais de 40 anos, com pós-doutorado na Universidade de Yale e da Califórnia, o professor do Instituto de Economia da Unicamp e da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP, Rodolfo Hoffmann fez as contas e constatou que a desigualdade brasileira só chegará a níveis razoáveis em, no mínimo 20 anos, tomando por base o ritmo mais intenso da melhoria na distribuição de renda de 2001 a 2008. Para ele, uma reforma da Previdência seria mais eficiente no combate à má distribuição de renda do que a reforma agrária, mas ele frisa que é a favor dela.
Citado na bibliografia dos maiores especialistas de desigualdade no Brasil, o também econometrista Hoffmann identificou um erro do IBGE no cálculo da desigualdade no campo. Na época, o censo agropecuário, divulgado pelo IBGE em setembro, mostrara alta na desigualdade na ocupação da terra. O estudioso, mesmo sem os dados originais que geraram as tabelas da pesquisa, acertou o cálculo e o IBGE soltou uma errata. Na verdade, a desigualdade tinha ficado estagnada.
Cássia Almeida
O GLOBO: Quais os fatores que explicam a queda da desigualdade de renda que vem desde 2001?
RODOLFO HOFFMANN: Os dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), realizada anualmente pelo IBGE, mostram uma queda sistemática da desigualdade da distribuição da renda domiciliar per capita no Brasil desde 2001. No mercado de trabalho, observa-se que há clara tendência de queda desde 1995. O crescimento real do salário mínimo a partir de 1996 certamente contribuiu para isso. De 1999 a 2008 o valor real do mínimo aumentou 61%. Além de condicionar as remunerações mais baixas no mercado de trabalho, é o piso das aposentadorias e é, também, o valor do BPC (Benefício de Prestação Continuada), paga aos idosos de famílias pobres. Não há dúvida de que a criação e expansão dos programas de transferências de renda, como o Bolsa Escola e, depois, o Bolsa Família, contribuíram para a redução da pobreza e da desigualdade. O crescimento da escolaridade das pessoas ocupadas e a menor diferença entre rendas de moradores das capitais e do interior, ou de áreas urbanas e áreas rurais também influenciaram. Em caráter mais especulativo, podemos perguntar até que ponto essas mudanças no ambiente sócio-econômico são consequências de longo prazo da redemocratização do país e da estabilidade monetária.
Qual o papel da redemocratização e da estabilidade monetária na queda da desigualdade?
HOFFMANN: Hoje, quando um economista analise a mudança na distribuição da renda no Brasil entre 2001 e 2008, é razoável que ele considere apenas os fatores que afetam o mercado de trabalho e as transferências governamentais, pois não houve, nesse período, uma modificação drástica no sistema político. Parece-me óbvio que isso não se aplica à análise do aumento da desigualdade entre 1960 e 1970, constatada por meio da comparação dos dados dos Censos Demográficos realizados nesses dois anos, pois ocorreu o golpe militar em 1964 e uma radicalização do processo em 1968. Eu mesmo fui preso de maneira totalmente arbitrária em abril de 1964, apenas por ser considerado um estudante “subversivo”.
Permaneci preso por 50 dias e posso testemunhar que os demais presos “políticos” em Piracicaba eram todos líderes sindicais. Na medida em que essa repressão aos sindicatos ocorreu em todo o país, é claro que isso reduziu o poder de barganha dos trabalhadores e contribuiu para aumentar a desigualdade da distribuição da renda. É certo que mecanismos de mercado e a escassez de mão de obra mais qualificada contribuíram para o aumento da desigualdade durante o período de rápido crescimento econômico na década de 60, mas é inegável o papel relevante da repressão aos movimentos sindicais, da falta de liberdade, da censura... A abertura não causou uma imediata redução na desigualdade, que se caracteriza por certa inércia. Mas a redemocratização foi essencial para as mudanças que ocorreram posteriormente. A inflação elevada, até meados de 1994, prejudica particularmente grupos pobres da população, contribuindo para aumentar a desigualdade.
Quando teremos um Índice de Gini razoável?
HOFFMANN: Apesar da queda recente, o Brasil continua se caracterizando por apresentar elevado grau de desigualdade na distribuição da renda. Entre 2001 e 2008 o índice de Gini (mede a desigualdade e quanto mais próxima de zero melhor a distribuição) da renda domiciliar per capita caiu de 0,594 para 0,544 ou 0,050 em sete anos. Se considerarmos como “razoável” um índice de Gini igual a 0,4, será preciso manter esse ritmo por mais 20 anos para alcançar a meta.
Com um Gini de 0,4 chegaríamos ao patamar de desigualdade de quais países?
HOFFMANN: No relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008, publicado pela ONU, o Brasil consta com índice de Gini a 0,570, com dados de 2004. Para os Estados Unidos o índice, em 2000, é 0,408. Na América do Sul temos a Argentina com 0,513, o Chile com 0,549 e o Uruguai com 0,449. O índice é 0,326 no Canadá, 0,327 na França, 0,385 em Portugal, 0,250 na Suécia e 0,249 no Japão.
O senhor acredita que a queda da desigualdade é sustentável ou corremos o risco de ver a concentração aumentar novamente?
HOFFMANN: Existe o risco de interrupção e até de reversão da redução da desigualdade. Como cidadão, tendo a ser otimista e quero acreditar que é difícil que ocorram mudanças políticas e econômicas que levem a um aumento da desigualdade. Por outro lado, a continuidade do processo de redução de desigualdade depende, em parte, de mudanças na legislação que afetam grupos com interesses corporativistas e forte poder de lobby sobre o legislativo.
Como chegamos a esse patamar tão alto de desigualdade no Brasil?
HOFFMANN: Ele foi sendo estabelecido ao longo de sua história, desde a distribuição de terras na forma de sesmarias, antes da Independência. Não houve uma “revolução” que abalasse os poderes conservadores. A proclamação da independência foi feita pelo próprio filho do rei. A abolição da escravidão e a proclamação da República também foram feitas com o consentimento dos poderes dominantes.
Como seria possível reduzir essa desigualdade tão alta no campo? O agronegócio tem contribuído para piorar essa situação?
HOFFMANN: Utilizando os dados da Pnad de 2008, verifica-se que a distribuição da renda de todos os trabalhos das pessoas ocupadas no Brasil tem média de R$ 1.036 (em reais de setembro de 2008) e índice de Gini a 0,521. Para os ocupados na agropecuária esses valores são R$ 615 e 0,531. Verifica-se, portanto, que a desigualdade é relativamente elevada no setor. Mas é incorreto pensar que as rendas agrícolas têm efeito importante no sentido de aumentar a desigualdade no país. A remuneração média na agropecuária é relativamente baixa, correspondendo a 63% da remuneração média na indústria e a 54% no setor de serviços. Os ocupados na agropecuária representam apenas 11% do total de pessoas ocupadas e auferem 7% do total da remuneração das pessoas ocupadas. Como o total dos rendimentos de aposentadorias e pensões corresponde ao dobro do valor da remuneração dos ocupados na agropecuária, posso afirmar que uma reforma do sistema previdenciário tem maior potencial de reduzir a desigualdade da distribuição da renda do que a reforma agrária. Isso não implica em ser contrário à reforma agrária. Considero importante facilitar o acesso à terra a quem possa cultivá-la. Não me parece que o agronegócio seja intrinsecamente pior do que empresas de outros setores. É óbvio que a fiscalização das relações trabalhistas é mais difícil na área rural. Essa fiscalização melhorou e precisa ser intensificada.
Por que a reforma da previdência teria mais efeito do que a reforma agrária?
HOFFMANN: O maior efeito potencial se deve ao fato de envolver uma parcela maior da renda, que contribui mais intensamente para a desigualdade. De acordo a Pnad de 2008, a renda de aposentadorias e pensões representava 18% da renda total declarada, ao passo que a renda dos ocupados na agropecuária corresponde a 7%. Essa relação mudou muito nas últimas quatro décadas, e vai continuar mudando. Isso não significa que a reforma agrária deva ser descartada. Trata-se, apenas, de reconhecer que sua importância relativa não é a mesma de 40 anos atrás.
Como aumentar a velocidade da queda da desigualdade no Brasil?
HOFFMANN: O imposto sobre a renda é o único imposto importante que é claramente progressivo (incide sobre os relativamente ricos). Mas a participação do imposto sobre a renda no total de tributos no Brasil é relativamente pequena, em comparação com países desenvolvidos. Isso faz com que o sistema tributário brasileiro contribua pouco para reduzir a desigualdade. Para tornar o sistema mais progressivo é necessário aumentar o peso relativo do imposto sobre a renda e reduzir a importância dos impostos indiretos, como os sobre o consumo, que são regressivos. Uma maneira de caracterizar a elevada desigualdade da distribuição da renda no Brasil é constatar que os 10% mais ricos ficam com 43% da renda total, conforme dados sobre a renda domiciliar per capita fornecidos pela Pnad. Adotando uma linha de pobreza de R$ 200 per capita, verifica-se que há 52 milhões de pobres, correspondendo a 28% da população. Para elevar a renda dessas pessoas ao nível da linha de pobreza, bastaria transferir para elas um montante que corresponde a 4% da renda total declarada, ou 10% da renda dos 10% mais ricos. Fazer “transferências” no computador é relativamente fácil. Mas é claro que está muito longe de ser fácil desenvolver um processo político que leve a essas transferências.
Há necessidade de melhorar a qualidade do ensino. Apenas trabalhadores bem qualificados obterão, no futuro, bons rendimentos. Creio que o aumento da remuneração dos professores não é suficiente, sendo necessário criar estruturas que incentivem o esforço e desempenho dos bons professores.
Quais governos avançaram mais no combate à desigualdade?
HOFFMANN: É evidente que tanto o governo Fernando Henrique como o governo Lula realizaram políticas que contribuíram para a redução da desigualdade. É difícil afirmar qual dos dois contribuiu mais, pois há modificações cujos efeitos só se manifestam alguns anos depois, como é o caso das melhorias no ensino básico feitas no governo FHC. Simplesmente comparar a redução no índice de Gini de 1995 a 2002 com a redução de 2002 a 2009 não é um procedimento apropriado. Os programas de transferência de renda têm, obviamente, um efeito imediato sobre a distribuição de renda. Eles tiveram início no governo FHC, mas o governo Lula foi o responsável pela sua audaciosa expansão. Uma decisão correta, em minha opinião. Mas não devemos esquecer que as transferências, incluindo a Bolsa Família e o BPC (Benefício de Prestação Continuada) explicam apenas cerca de 20% da redução da desigualdade na última década. Há certo grau de continuidade nos dois governos, e espero que o próximo governo continue contribuindo para reduzir o elevado nível de desigualdade existente no país.
“Uma reforma do sistema previdenciário tem maior potencial de reduzir a desigualdade do que a reforma agrária"
“O sistema tributário brasileiro contribui pouco para reduzir a desigualdade"