terça-feira, 29 de março de 2011

Reflexão do dia – Luiz Fux

A lei da Ficha Limpa é movida pelo melhor propósito de purificação da vida democrática. Acho a opinião pública muito importante, mas para nós, a Constituição é um santuário sagrado.

Luiz Fux, ministro do STF. Entrevista na Folha de S. Paulo, 28/3/2011

O que será o PSD?:: Merval Pereira

O prefeito paulistano, Gilberto Kassab, precisa definir de uma vez por todas por que deixou o Democratas para fundar o Partido Social Democrático (PSD). Se foi em busca de uma legenda que lhe dê espaço político para continuar uma carreira ascendente até o governo de São Paulo, será um projeto personalista de voo curto.

A tentativa de levar a indefinição da legenda às últimas consequências - "Não será um partido nem de direita nem de esquerda nem de centro, mas a favor do Brasil" - fará com que o novo partido surja enfraquecido, embora se anuncie que já tem uma bancada de 43 deputados federais saídos de diversas legendas, até mesmo da base governista.

O receio de assumir uma posição ideológica próxima de sua história política de centro-direita repete o mesmo erro do PFL e de seu sucessor, o Democratas, e retira do novo partido justamente a capacidade de representar um nicho eleitoral que, à falta de opções, votou em Serra e em Marina na eleição de 2010.

Não é isso o que a senadora Kátia Abreu está buscando quando se prepara para trocar o DEM pelo PSD, uma decisão que pode ser fundamental na sua carreira política.

Cogitada para ser candidata à Presidência da República pelo DEM, ou vice na chapa de Serra, a senadora de Tocantins foi vítima desta síndrome política brasileira: ninguém quer ser tachado de conservador, de direitista. Todos são, no máximo, de centro.

Até o senador Agripino Maia, novo presidente do DEM, assumiu negando que seja de direita, dizendo-se de centro-esquerda.

Nenhum político brasileiro se declara "de direita", mas a direita política está sempre presente nos governos formados a partir de 1985, quando Tancredo Neves se elegeu presidente da República numa aliança política antes impensável com os dissidentes do PDS, partido que dava sustentação à ditadura militar.

Pois se Kassab insistir no mesmo erro em que incorre o Democratas, antigo PFL, que tentou diversas vezes preencher esse espaço político e depois recuou, vai criar mais um partido que não se distinguirá dos demais e deixará de ser um contraponto a PT e PSDB, legendas de esquerda que dominam a política nacional há mais de 20 anos.

A senadora Kátia Abreu tem uma explicação simples para esse impasse: todos querem dizer que têm preocupação social e parecem convencidos de que esse sentimento é um monopólio da esquerda.

Como convencer o eleitorado de que essa dicotomia não funciona tão linearmente assim e que ser de direita, ou de centro-direita, não significa ser insensível às necessidades dos mais pobres?

No seu caso, a senadora, que é presidente da Confederação Nacional da Agricultura, tem uma tarefa a mais: demonstrar que o agronegócio reúne mais produtores de classe média e pobres do que grandes agricultores, apontados pelos adversários como vilões do meio ambiente.

Na presidência da CNA, a senadora Kátia Abreu está trabalhando com o governo para mudar o sistema de crédito agrícola, ampliando seu alcance, e tem um objetivo que, segundo ela, coincide com o do governo: promover a ascensão social da maioria dos agricultores, que, ao contrário do que se imagina, encontra-se nas classes C, D e E, e não tem acesso a financiamentos.

Dos cinco milhões de produtores agrícolas, apenas 5% estão nas classes A e B, ressalta Kátia Abreu. Ela vem conversando com o prefeito paulistano, Gilberto Kassab, a respeito do PSD, depois que se desencantou com a atuação do Democratas, especialmente o que chama de "ditadura partidária", que teria levado seu partido a ser dominado por grupos que não dão espaço a políticos independentes.

Uma das principais alterações que ela pretende apoiar, se for para o PSD, é a garantia de que os cargos serão escolhidos através de prévias partidárias, em todos os níveis, até mesmo a presidência da legenda, para a qual está sendo sondada mesmo antes da adesão formal.

A democracia interna seria um diferencial do novo partido, que poderia estimular a atuação partidária de cidadãos que hoje estão alienados da política.

Kátia Abreu está convencida de que existe um nicho eleitoral que o novo partido pode ocupar, representado pela nova classe média ascendente e por todos os anseios e necessidades que virão com ela.

Além do fato de que existe um eleitorado que não vota no PT, que atingiu 44% na última eleição presidencial.

Olhando o mapa da votação do segundo turno na eleição de 2010, Kátia Abreu enxerga bolsões azuis de oposição em áreas dominadas pelo vermelho do PT, como, por exemplo, na região conhecida como Mapito, que cobre os estados do Maranhão, do Piauí e de seu Tocantins.

Numa região dominada pelos votos governistas, produtores rurais que, na sua definição, não vivem das benesses governamentais querem uma candidatura alternativa para seguir produzindo alimentos.

Ela pretende se filiar ao PSD defendendo uma série de posturas liberais que colocariam o novo partido fora da base aliada governista e, mais ainda, longe do PSB, partido ao qual Kassab pretenderia se juntar ao final de um processo político que descaracterizasse uma burla à legislação eleitoral.

Nas conversas que vem tendo com Kassab, a senadora Kátia Abreu garante que essa possibilidade de fusão futura com um partido socialista está fora de cogitação.

A senadora de Tocantins acha que o novo partido não pode repetir o erro de PMDB e Democratas, que não lutaram por ter uma vida própria e tornaram-se satélites de PT e PSDB.

Uma das decisões a serem tomadas pode ser a de lançar uma candidatura própria à Presidência da República em 2014, mesmo que apenas para marcar posição. Não só por ser mulher, mas, sobretudo, por representar o espírito liberal do novo partido, seu nome seria uma escolha provável.

FONTE: O GLOBO

Desordem dos fatores:: Dora Kramer

O Poder Legislativo anda tão fragilizado e desmoralizado que determinadas propostas com teor de subtração flagrante de suas prerrogativas são feitas com naturalidade e até aceitas como perfeitamente lógicas.

Exemplo disso é a sugestão que o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso, pretende fazer à presidente Dilma Rousseff: o envio dos projetos aprovados no Congresso ao STF antes de sancionados pela Presidência da República, a fim de evitar o exame posterior da constitucionalidade da legislação.

Peluso se manifestou em função da polêmica suscitada pelo exame da Lei da Ficha Limpa e das consequências decorrentes do fato de a decisão ter ocorrido só após as eleições.

"Se houvesse consulta prévia ao STF a Lei da Ficha Limpa não teria gerado tanta discussão sobre sua constitucionalidade", argumentou Peluso ao anunciar, na sexta-feira, que iria apresentar a proposta de controle constitucional prévio à presidente.

Se não é de espantar - dado o papel de irrelevância que o próprio Congresso se impõe -, é de se lamentar a sem-cerimônia com que o presidente do Supremo aborda uma questão cujo conteúdo subtrai poderes do Legislativo e permite que o Judiciário exerça interferência prévia em decisões do Congresso.

Principalmente porque, a despeito de qualquer alteração dessa natureza necessitar de aprovação de três quintos dos parlamentares da Câmara e do Senado (quórum para emenda constitucional), Cezar Peluso achou por bem excluir o Parlamento da discussão, estabelecendo linha direta com o Executivo.

Pode ser um método mais prático, mas não é uma prática condizente com a repartição de Poderes ora em vigor na República. A menos que a proposta do presidente do STF inclua também a revisão desses preceitos, o que requereria uma ampla revisão da Constituição.

Há no Legislativo e no Executivo, instrumentos de controle de constitucionalidade que dispensam a criação do atalho proposto. As Comissões de Constituição e Justiça, no Congresso, e as assessorias da Advocacia-Geral da União, da Casa Civil e do Ministério da Justiça, no Executivo.

Se funcionam precariamente é uma questão que não se resolve fazendo do Supremo um órgão de consultoria permanente.

Vale lembrar, a propósito, que nem o STF está livre de cometer inconstitucionalidades em suas decisões administrativas.

A proposta enviada pelo próprio Peluso tempos atrás ao Congresso sobre a instituição de reajustes automáticos para os salários dos ministros é considerada por integrantes do tribunal como passível de contestação judicial.

Além disso, como pondera o senador Demóstenes Torres, as contestações constitucionais resultantes de leis aprovadas não são significativas a ponto de constituírem um problema institucional, até porque 80% da produção legislativa tem origem em projetos do Executivo. "Que não iria submetê-los ao crivo prévio do STF."

Na opinião do senador, o presidente do Supremo cria uma polêmica desnecessária. "Na questão da Ficha Limpa não podemos esquecer que o impasse só se prolongou porque o ministro Peluso se recusou a dar o voto de Minerva no empate. Não estaria, como argumentou, conferindo-se poder absoluto, mas cumprindo uma prerrogativa que lhe dá o regimento."

Cartório. Marina Silva sabia, evidentemente, com quem estava lidando ao entrar para o PV, presidido há dez anos por José Luiz Penna. Isso naquela ocasião. Agora que ele acaba de renovar o mandato mediante o controle da máquina, são 12 anos de presidência.

De ninguém com essa longevidade no poder pode-se dizer que tenha apreço pela democracia interna, que pressupõe alternância.

O grupo da ex-senadora, no entanto, pareceu apostar que o significativo cacife de 20 milhões de votos obtidos na eleição presidencial lhe daria força para renovar o partido.

De fato, seria uma consequência natural, caso não prevalecesse na política brasileira a mais absoluta desconexão entre a vida cotidiana dos partidos e os momentos eleitorais.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

O dilema do PSDB aos 90 dias de Dilma:: Raymundo Costa

Passou quase despercebido, mas Dilma Rousseff enviou um telegrama a José Serra no dia do aniversário do tucano, sábado retrasado. Para o PSDB, a presidente é uma surpresa incômoda. Está sendo difícil, para o partido, estabelecer uma linha de oposição. Ao contrário de Lula, a presidente não diz que DEM e PSDB são a encarnação do demônio e suas recentes ações na área fiscal, em boa medida, foram aquelas reclamadas pelo partido.

Dilma não saiu da campanha eleitoral propriamente feliz com Serra. Mas foi inteligente, de sua parte, enviar o telegrama. Ele é o tucano mais ouriçado no discurso de oposição que não teve na campanha. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ainda hoje a principal voz do PSDB, está encantado com os primeiros 90 dias de Dilma e não esconde isso dos correligionários.

Para os tucanos, não seria surpresa se FHC e Dilma conversarem em breve. Atento aos signos, observaram o brinde a Fernando Henrique no Itamaraty, no banquete oferecido a Barack Obama. O ex-presidente estava mais distante que José Sarney, presidente do Senado, por exemplo. Ela poderia ter sido formal. Foi cordial.

Lula tratava a oposição como o inimigo a ser "extirpado". Ela, até agora, tira de letra. Não deixou um flanco escancaradamente aberto para o PSDB bater. Um exemplo é a aparente falta de convicção de Dilma sobre o aperto a ser feito. Outro, contradições como o corte de R$ 50 bilhões do Orçamento seguido de aporte semelhante no BNDES, o que obviamente deve gerar aquecimento na economia.

Serra está imobilizado no PSDB porque não existe dentro do partido um movimento contra Dilma Rousseff, até o momento. Não há clima para oposição pessoal. Mesmo em São Paulo, onde é maior a radicalização PT x PSDB, é palpável, entre tucanos, o sentimento de que Dilma não é imune à critica, mas o partido deve evitar ataques à pessoa da presidente da República. As pesquisas comprovam que ela entrou em redutos tradicionais do PSDB paulistano. Os Jardins estão muito satisfeitos, sobretudo, com a conduta de Dilma.

O mundo do PSDB se define no fim de maio, na convenção dos tucanos para eleger a nova direção do partido. Serra faz todos os movimentos possíveis para ser o presidente, substituindo a Sérgio Guerra, ex-senador e atual deputado por Pernambuco, com quem se desentendeu na eleição de 2010. Mas suas articulações não encontram a repercussão esperada nem em São Paulo, a não ser no grupo mais próximo ao qual sempre esteve ligado.

É pouco o tempo decorrido desde a eleição presidencial de 2010 para uma avaliação precisa, mas é evidente Serra sofreu uma derrota que não foi apenas eleitoral. Também foi política, porque saiu do pleito sem bandeiras e estigmatizado por flertar com um discurso que não compõe com a história de um líder forjado na esquerda estudantil.

Por mais que pesquisas posteriores indicassem que a proposta de salário mínimo de R$ 600 tenha sido a mais bem compreendida entre os eleitores, ela pouco ou nada tinha a ver com o fiscalista Serra. Soava demagogia. Serra também nunca foi carola. Mas sua campanha foi um tal de beijar santa e nenhuma hesitação em assumir o discurso antiaborto mais primitivo, quando ele pareceu conveniente em termos de dividendos eleitorais.

Uma das regras básicas de candidatos a presidente é a fidelidade aos princípios. É clássico o exemplo de Winston Churchill, que passou anos no ostracismo advertindo os ingleses sobre o perigo representado pela Alemanha. Só foi ouvido quando o ventou virou e a história o encontrou na mesma posição.

O mínimo que se esperava de Serra na campanha eleitoral de 2010 era uma boa proposta de governo. Ele sempre foi considerado um grande gestor. Mas nem sequer apresentou um programa econômico. Irritava-se quando era cobrado pelos jornalistas. Serra também não queria medir forças com a popularidade de Lula e tratou o então presidente como um estadista. Achava que entre Dilma e ele venceria vence o melhor currículo.

A obstinação de Serra agora é ser presidente do PSDB. Os tucanos conhecem muito bem a tenacidade de Serra. Mas desta vez quem se opõe ao ex-governador de São Paulo conta que o senador Aécio Neves enfrente o colega paulista, provavelmente apoiando a recondução do deputado Sérgio Guerra a presidente. Mas com a persistência de Serra, pode ser que os tucanos tenham que recorrer a um terceiro nome, para não parecer que o paulista, hoje isolado, tenha sofrido uma derrota acachapante.

Atualmente já não há abundância de nomes que havia no PSDB no fim dos anos 80 - Mário Covas, José Richa, Franco Montoro, FHC, José Serra, Euclides Scalco, Tasso Jereissati, entre outros. FHC, ainda hoje o guru, já avisou que não tem mais idade para essas coisas.

Para os tucanos, o ideal seria que Serra fosse candidato a prefeito em 2012, principalmente se o candidato do PT fosse escolhido entre a senadora Marta Suplicy e o ministro Aloizio Mercadante (Ciência e Tecnologia). Serra não gosta nem de ouvir falar do assunto. Sabe que é fim de carreira, e em seus cálculos ainda está a Presidência da República. No momento, ele precisa avançar uma posição, e é neste movimento que está integralmente empenhado.

O PSDB e Aécio Neves não devem subestimar o colega tucano. Sua capacidade para intervir no jogo partidário ainda é efetiva, apesar do isolamento. Já se especula com certa naturalidade, em setores do PSDB, a hipótese sobre a qual o ex-governador evita cogitações - que ele venha a se candidatar ao Planalto pelo PSD, o partido que está sendo criado por Gilberto Kassab.

Sabe-se que Kassab já falou sobre isso com Serra, trata-se de uma porta aberta que o tucano não fechou. É o que no PSDB passou a ser chamado de "bomba atômica", uma espécie de aviso a Aécio Neves sobre o que ele, Serra, pode fazer caso não seja presidente do PSDB. Do ponto de vista de hoje, acredita-se que Serra pode entrar na corrida presidencial de 2014 à frente de Aécio nas pesquisas, devido ao "recall" que tem das eleições passadas.

"Recall", aliás, que deve se tornar um problema para Serra, assim que começarem a ser feitas as pesquisas em relação à sucessão na Prefeitura de São Paulo. Se quiser ser candidato ao lugar de Kassab, ele terá todo o apoio dos tucanos. Mas ele não quer. Quer ser presidente.

Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

A classe média veio para ficar:: Wilson Figueiredo

A astúcia de que a oposição se valeu para derrotar o último governo militar na eleição indireta foi um feito impossível de evitar: um ato de traição eleitoral em condições fatais. O ciclo de governos militares se encerrou por exaustão, confinamento social, perda de confiança política e esvaziamento de representatividade. Mas tudo isso não explica o baixo custo da transição e dos percalços da primeira fase, antes da volta triunfal da eleição direta. A classe média foi decisiva e, graças ao princípio da maioria absoluta trazido pela nova Constituição, não mais se ouviu qualquer dúvida sobre resultado de eleição presidencial. Já se passaram 26 anos de uma democracia credenciada ao permanente aperfeiçoamento.

Ainda falta a interpretação acadêmica da virada, por uma sequência identificada, desde a ruptura com a República Velha, em 1930, até a Constituição de 1988. No longo percurso de meio século se encontram, de maneira mais nítida, os indícios da participação potencial da classe média, por onde se formou e se encaminhou a visão democrática de mais longo prazo e que, na versão atual, se mantém intocável. Ganhará tempo quem quiser identificar, desde então, um conjunto de valores e aspirações numa visão política dispersa e fragmentada em ações. Nesse espaço não será difícil reconhecer o papel da classe média já naquele Brasil com 30 milhões de habitantes e 80% de analfabetos, e identificar, no processo político, a ascensão dessa parcela social que responde politicamente por uma presença atuante e já cortejada a céu aberto.

Nos anos 20, quando a República não se aguentava no padrão histórico tradicional e a juventude militar passou da discussão à ação, a denominação de classe média pouco ou nada dizia. Prevalecia uma visão gerada na parcela superior da sociedade e outra, dividida entre o conformismo e a revolta, na parte de baixo. Faltava o sal da modernidade, representado pela classe média. O prestígio político dos coronéis referidos e obedecidos pelo comando político municipal exprimia a realidade rural. A indústria não passava de utopia numa sociedade de valores e hábitos rurais. O máximo que se poderia admitir como indicio de futura classe média era a parcela do funcionalismo público, militares, bancários, comerciários e prestadores de serviços que só iriam ter peso com o advento da sociedade de consumo, na sequência e como consequência da Segunda Guerra.

Não por acaso, foi também em 1945 que o Brasil trocou o Estado Novo por um regime constitucional (sem abrir mão da deposição do presidente) e ampliou o espaço em que as aspirações sociais e o nacionalismo tiveram função educativa de natureza política e, paralelamente, se desenhou a sociedade de consumo como um conceito de vida. Era a classe média que rompia o conformismo e preenchia na sociedade uma atuação que se incorporou à política. A própria retórica parlamentar se renovou com a troca das referências clássicas pelos bens de consumo durável (que, aliás, querem dizer o contrário).

A cabeça dos cidadãos englobados por essa nuvem passou pelas modificações que a atualizaram em relação ao mundo do qual o Brasil fazia parte sem saber. A classe média e a democracia tiveram muito a ver uma com a outra, mas sem se darem conta do teor político desse relacionamento. Faltava o gosto pela representatividade política. Faltava democracia mesmo. Governos, partidos e políticos estavam de olho apenas nas parcelas consideradas mais carentes da sociedade (mais fáceis de se contentarem com menos benefícios) e celeiros mais fartos de votos.

É a inserção da classe média na vida política ativa, como exercício de cidadania e parcela crescente do eleitorado na era do consumo, que pode explicar muito do que aconteceu desde 1930 até o fim do século 20. E, já agora, ser a base definitiva da democracia que se cansou de vir ao Brasil como visitante.
Wilson Figueiredo escreve nesta coluna aos sábados e terças-feiras.
FONTE: JORNAL DO BRASIL

Entre Brasília e Vanuatu :: Jairo Nicolau

Convido o leitor a fazer um teste: pergunte a um amigo se ele conhece a regra para a eleição de deputados e vereadores no Brasil. Sei que a pergunta pode soar tão estranha para alguns como se lhes fosse pedido para explicar como os pontos são computados em uma partida de beisebol.

Até onde eu sei, nenhuma pesquisa avaliou o conhecimento que os eleitores têm sobre o sistema eleitoral em vigor no Brasil. Mas, pela minha experiência em fazer esta pergunta em diversas audiências, imagino que o seu interlocutor dirá que não sabe ou, alternativamente, dirá que os mais votados são eleitos; ou seja, numa eleição para deputado federal no Rio de Janeiro, elegem-se os 46 nomes mais votados do estado. Quase ninguém responderá que temos um sistema de representação proporcional e que o mais importante é saber quantos votos cada partido obteve nas eleições.

Sei que é um tema muito específico, mas a desinformação sobre ele é muito grande. Minha sugestão é que a forma de votação no Brasil contribui para essa confusão. No dia da eleição somos convidados a votar em uma lista de nomes para diversos cargos. Se os cargos mais importantes para os eleitores (presidente, governador, prefeito e senador) são eleitos pelo voto majoritário, por que não aconteceria o mesmo com vereadores e deputados? Daí a surpresa de um eleitor do Tiririca, ao saber que seus votos ajudaram a eleger deputados do PT e do PCdoB, partidos que concorreram coligados.

A representação proporcional, na versão que conhecemos, está em vigor no Brasil desde 1945. A meu juízo ela foi fundamental para a democratização do país, pois deu espaço no Legislativo a vozes emergentes (do PT às novas lideranças pentecostais), serviu para renovar a política brasileira e conferiu aos partidos representação aproximada a seu peso eleitoral. Claro que a representação proporcional deve ser aperfeiçoada e existem excelentes ideias em debate no Congresso para fazê-la.

A visão predominante entre os eleitores, de que os deputados são eleitos por um sistema de maioria, recebeu recentemente um nome prosaico: distritão. Além disso, passou a ser defendida por alguns políticos como opção para o Brasil. O principal argumento é que ele é simples e mais democrático, pois garante a eleição dos mais votados no estado, independentemente dos partidos.

O deputado tem razão em um aspecto: o sistema é simples. Mas está longe de ser o mais democrático. Entre os 88 países considerados livres (Freedom House, 2010), o distritão está em vigor em apenas um: Vanuatu. Uma ilha do Pacífico, com apenas 208 mil e que utiliza este sistema há poucas eleições.

Se a experiência de Vanuatu com o distritão não nos ajuda muito, temos bons estudos sobre o Japão - país que utilizou este sistema por mais tempo (1948- 1993). O antigo sistema eleitoral do Japão foi responsabilizado por muitos dos problemas que afetaram o sistema político e levaram a uma grave crise institucional em 1992: clientelismo extremo, dificuldade de os partidos coordenarem os candidatos nas campanhas e corrupção eleitoral.

É sempre difícil antever efeitos de novas regras eleitorais. Mas dois parecem inevitáveis, caso este sistema seja adotado no Brasil: enfraquecimento dos partidos e aumento do custo das campanhas.

Os partidos passariam a servir como organizações apenas para selecionar nomes para a disputa, e as eleições passariam a ser uma corrida entre centenas de candidatos; é interessante lembrar que um candidato com votação expressiva não transfere seus votos para outro nome do partido. Em uma disputa tão personalizada e competitiva entre nomes é bastante provável que as campanhas se tornem muito mais caras do que as que são feitas hoje em dia.

Boa parte do debate sobre reforma eleitoral feito no Brasil nos últimos anos se concentrou na discussão de como tornar os partidos mais fortes e as eleições mais baratas. Se me perguntassem a respeito de um sistema eleitoral no qual eu teria certeza de que isso não aconteceria, não teria dúvida nenhuma em dizer: distritão.

Jairo Nicolau é cientista político e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
FONTE: O GLOBO

Paraguai, ata ou desata:: Eliane Cantanhêde

Quase ninguém percebeu, mas o almoço para Barack Obama no Itamaraty serviu também a um outro propósito: articular a aprovação do projeto que triplica a remuneração (de US$ 3 para US$ 9 por megawatt/hora) que o Brasil paga ao Paraguai pelo excedente de energia de Itaipu.

A senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR), mulher do ministro Paulo Bernardo (Comunicações), foi de mesa em mesa, ou melhor, de líder partidário em líder partidário, fazendo um apelo nesse sentido. E, ontem, telefonou para o vice Michel Temer pedindo os votos do PMDB.

O projeto é resultado de um acordo de setembro de 2009 entre os presidentes Lula e Lugo. Foi apresentado ao Congresso em novembro daquele ano e, apesar de tramitar em "regime de urgência", só vai ser votado no plenário da Câmara amanhã. Se passar, vai ao Senado, onde ainda será submetido à Comissão de Relações Exteriores antes de chegar ao plenário.

O Paraguai é tão pequeno e pobre quanto estratégico para o Brasil. Tem uma fronteira complicada, abriga mais de 300 mil brasiguaios e é alvo da cobiça de outros países, mais ou menos ostensiva. Já imaginou se cai de vez nas garras da China, dos EUA, dos árabes ou da Venezuela? E se servir de base militar para algum deles?

A questão é considerada importante pelo governo, que teme três adversários na votação de amanhã: a oposição, porque é oposição; governistas que não deram sustos no salário mínimo e podem achar que agora é hora; e, enfim, discursos preconceituosos sobre o Paraguai.

Enquanto isso, Dilma não conseguiu visitar os vizinhos antes de todos os demais, como gostaria. Ela já foi à Argentina, mas embarcou ontem para Portugal sem ter ido ao Paraguai porque a diplomacia desaconselhou.

Fazer o que lá? E dizer o quê? Que o Brasil não consegue aprovar um acordo fundamental para eles depois de um ano e meio de promessas vazias?

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

Pó na estrada:: Fernando de Barros e Silva

Às vezes, a gente até pensa que não, mas o Brasil ainda existe. Apesar do "Bric" e da "nova classe média", o velho país segue muito parecido consigo mesmo.

Exagero retórico? Veja a reportagem exibida anteontem pelo programa "Fantástico", da Globo. A cocaína corre solta pelas estradas brasileiras. É vendida por frentistas em postos de gasolina de maneira quase escancarada. Em alguns deles, aceita-se até cartão de crédito.

Os repórteres viajaram num caminhão durante três semanas. Percorreram quase 10 mil km, de Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, até Natal, no Rio Grande do Norte. As imagens flagradas acabam sendo tão chocantes quanto monótonas.

Repete-se pelos Estados, à beira das estradas, o mesmo comércio desimpedido de drogas. Nos pontos de parada, prostitutas mirins oferecem "programa" por R$ 10 e pedras de crack por outros R$ 10 aos motoristas fatigados.

O consumo de anfetaminas parece ser regra, e não exceção, entre caminhoneiros que, no mais das vezes, cometem barbaridades atrás de premiações por desempenho. Alguém controla isso de verdade?

Em 2010, houve 7.798 acidentes envolvendo caminhões nas estradas federais -média de 21 por dia.

A reportagem cruza 11 Estados e passa por mais de 70 postos da Polícia Federal Rodoviária (PFR), sem que o caminhão sofresse uma única vistoria. Mas é achacada por um policial -coisa miúda, de R$ 15, o que soa quase como uma singela homenagem a uma tradição nacional.

Ontem à tarde, o diretor-geral da PFR rodou do cargo, depois de oito anos. A corporação, com 9.000 homens, vinha ameaçando greve e reclama das condições de trabalho. Pelas imagens exibidas na TV, razões para estar em crise não faltam.

Postos da PFR totalmente abandonados, cemitérios de carros dilapidados (que deveriam ir à leilão), drogas e acidentes em profusão, corrupção, ausência de fiscalização -o que se vê na boleia deste Brasilzão é uma sucessão de descalabros.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

Resultados da visita de Obama :: Rubens Barbosa

Pelas perspectivas que promete abrir no médio e no longo prazos, a recente visita do presidente Barack Obama ao Brasil, embora no contexto das incertezas e instabilidades globais, poderá ser um marco no relacionamento Brasil-EUA.

Essas relações apresentam três desafios a serem enfrentados e superados para que os entendimentos se possam desenvolver de maneira pragmática e positiva: de que forma conectar interesses comuns, como modificar as percepções de Washington em relação ao Brasil e como definir o que o nosso país quer da relação com os EUA.

Os governos de Brasília e Washington, depois de um período de tensão que durou a maior parte do governo Lula, gerada por motivações ideológicas antiamericanas e por desencontros na política externa e comercial, decidiram inaugurar uma nova etapa nas parcerias bilaterais, deixando para trás as dificuldades dos últimos anos.

A visita de Obama, centrada em temas econômicos e comerciais, ressaltou o reconhecimento, pelos EUA, da nova importância global do Brasil nas áreas de meio ambiente, comércio e energia, com o estabelecimento de parcerias globais e acordos significativos. A graduação do Brasil na área política ainda não ocorreu, como evidenciado pela manifestação de apreço, mas não de apoio à pretensão brasileira de se tornar membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, pela percepção de que o País é ainda um parceiro relutante.

O comunicado conjunto, firmado pelos dois mandatários e divulgado ao final da visita, apresenta um roteiro para uma nova parceria global e bilateral, e não uma aliança estratégica, que pressupõe uma lenta construção entre iguais.

A presidente Dilma Rousseff observou que, no passado, o relacionamento esteve muitas vezes encoberto por uma retórica vazia que fugia do que estava realmente em jogo. Nesse sentido, a viagem foi marcada por uma visão pragmática, e não ideológica, propiciando resultados, embora ainda no campo das intenções.

Cabe ressaltar que os presidentes tomaram a decisão de elevar ao nível presidencial o diálogo em algumas áreas prioritárias, como parceria global, econômica, financeira e energética. Dez acordos foram assinados com vista a explorar novas possibilidades de cooperação nas áreas de comércio, educação, inovação, infraestrutura, transporte aéreo, espacial, grandes eventos esportivos, biocombustível para aviação.

Desses documentos, quatro merecem ser ressaltados:

O Acordo-Quadro Bilateral para a Cooperação sobre os Usos Pacíficos do Espaço Exterior e o anúncio do início de negociações de acordo para proteger tecnologia de operação de lançamento;

o Acordo de Comércio e Cooperação Econômica (Teca), cujo objetivo principal é facilitar o acesso de produtos dos EUA e do Brasil aos mercados dos dois países, além de criar mecanismos para examinar dificuldades nas questões comerciais e de investimento, avaliar barreiras fitossanitárias, simplificar processos alfandegários e harmonizar normas técnicas;

o acordo de cooperação em terceiros países, sobretudo africanos, nas áreas de educação, segurança alimentar, agricultura, nutrição, saúde e fortalecimento institucional; e o acordo de biocombustível para a aviação.

Nos encontros Dilma-Obama foram lançadas as bases em que as relações deverão evoluir nos próximos anos, e que poderão beneficiar os governos e o setor privado. O mundo não cessa de mudar e, no melhor interesse dos dois países, foram mencionadas parcerias em áreas que, se de fato vierem a ocorrer, propiciarão uma mudança na qualidade do relacionamento bilateral, com ganhos concretos para ambos os lados.

O desafio de conectar os interesses dos dois países, aludido anteriormente, começou a ser respondido. Alguns exemplos podem ser mencionados. O governo norte-americano está interessado em se tornar um cliente importante do petróleo produzido no pré-sal e o governo brasileiro poderá levar adiante o programa espacial, reconstruindo a Base de Alcântara, com a colaboração de empresas dos EUA. Grandes projetos de infraestrutura, atraindo investimentos de empresas norte-americanas, poderão ajudar o Brasil a cumprir os prazos para as obras da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos. O Pentágono, o maior comprador de querosene de aviação do mundo, busca segurança energética com a produção de biocombustível para a aviação, o que abrirá grandes oportunidades para o setor privado brasileiro.

Do ponto de vista da política externa brasileira, a visita marcou diferenças em relação à atitude do governo anterior, segundo se depreende dos discursos e do comunicado conjunto emitido ao final da visita. Desapareceram as restrições ideológicas e foram ressaltadas as oportunidades das parcerias com os EUA, inclusive na área espacial, com salvaguardas tecnológicas. A contribuição do Brasil para a paz no Oriente Médio e outras regiões será dada sem voluntarismos. O Irã tem de demonstrar a natureza exclusivamente pacífica de seus programas nucleares. O respeito aos direitos humanos e à democracia deve ser mantido até mesmo no contexto de movimentos e transições democráticos, referência indireta à Líbia. Foram ressaltado o compromisso com a Organização dos Estados Americanos (OEA) e saudados os esforços empreendidos para torná-la mais transparente e eficiente. A Unasul e o Mercosul foram tratados no último capítulo do comunicado. Dificilmente referências dessa natureza poderiam ser encontradas em comunicados conjuntos com os EUA nos últimos cinco ou seis anos.

De certa maneira, as decisões tomadas durante a visita de Obama retomam o tom e o espírito dos entendimentos mantidos em junho de 2003, quando da primeira visita do presidente Lula a Washington, ao buscar projetos de interesse comum e avançar na mudança da percepção em relação ao Brasil, diferenciando-o no contexto latino-americano.

Foi Embaixador em Washington

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Risco de inflação:: Míriam Leitão

O álcool enfrenta aumento de consumo; redução de investimentos por causa da crise de 2008; e competição com preços do açúcar, que quase dobraram em um ano. O café sofre os efeitos da mudança climática: calor e concentração de chuva estão atingindo a produção na Colômbia. Por vários casos assim é que o economista José Roberto Mendonça de Barros acha que a inflação não vai cair.

No governo, há quem acredite que a inflação é só sazonal porque normalmente é assim quando é de alimentos. Mas, desta vez, ela está mais duradoura. Mesmo que alguns produtos tenham caído de preço, a queda não é suficiente, e há vários fatores que tornam certas pressões mais permanentes. E nem toda a inflação é de produtos com base agrícola.

- Estou muito preocupado com a inflação porque é o segundo janeiro consecutivo em que o índice de dispersão é de mais de 70% no IPCA (percentual de preços que subiram num índice). Serviços estão com alta forte e vão continuar assim porque refletem a pressão do mercado de trabalho. O resultado é que está havendo uma reindexação. Toda discussão de reajuste de preço começa em 6% - disse José Roberto, da consultoria MB Associados.

O Brasil está importando álcool e gasolina. Esse é o período da entressafra da cana-de-açúcar. Mas não é só por isso:

- Falta cana também, e há um bom motivo para produzir mais açúcar: os preços subiram. As usinas de álcool estão ainda se recuperando da crise de 2008. Muita gente foi apanhada no contrapé com investimentos fortes, endividamento alto. Houve consolidação, redução da produção, atraso no pagamento de fornecedores. Tem produtor de cana que ficou oito meses esperando para receber e não teve capital para ampliar o canavial. O açúcar subiu, e houve aumento da demanda por cana. Tudo isso afetou diretamente a produção de álcool. Além disso, há muito mais carro na rua absorvendo combustível.

Outra fonte de demanda por álcool é a alcoolquímica, segundo José Roberto. Alguns produtos como plástico e solventes começam a ser feitos com base em álcool, para a redução das emissões de gases de efeito estufa. Ele acha que esse processo está só no começo e que novos produtos verdes vão surgir para substituir produtos da petroquímica.

Até recentemente, o único alimento importante que não havia tido aumento significativo de preço tinha sido o arroz. Mas aí houve o terremoto e tsunami no Japão:

- A área onde aconteceu o terremoto produz 40% da produção de arroz do Japão. Ela foi destruída, a água está contaminada. Isso afetará os preços.

Nos últimos anos, houve aumento forte de grãos e carne. Subiram trigo, milho e soja que, junto com a carne, formam a parte mais importante da alimentação. Ainda que tenha havido uma pequena queda de commodities como efeito de crise internacional, eles estão em níveis elevados. Leite também teve aumento forte no mundo. Há produtos que já sentem o efeito direto das mudanças climáticas, então devem continuar com preço alto:

- O café é o exemplo perfeito disso. Há falta de café de qualidade no mundo. Na Colômbia, por exemplo, as áreas produtoras enfrentaram um aumento médio de temperatura de meio grau a um grau centígrado nos últimos 20 anos em comparação com o período anterior. Houve também uma concentração da precipitação. Essa temperatura e a concentração das chuvas fizeram aparecer por lá pragas novas que estão destruindo o café. Uma dessas pragas é a nossa conhecida ferrugem. Dificilmente o preço do café cai a curto prazo.

Claro que continuará a haver oscilação. Em abril, acaba a entressafra da cana-de-açúcar. Os preços oscilam na safra e entressafra, mas não caem aos níveis em que estavam antes da escalada.

Hoje, os preços que não estão subindo são os chamados "tradables", produtos que podem ser importados. E não estão subindo por causa do câmbio. O problema é que a queda do dólar tem outros efeitos negativos para a economia, e o governo luta contra esse fenômeno com medidas como a que anunciou ontem, o aumento do IOF a 6,38% sobre compras de cartão de crédito no exterior. No ano passado, só de gastos na conta turismo foram US$10 bilhões de déficit. A medida é necessária. Mas pode não surtir nenhum efeito, exceto o aumento da arrecadação. E se surtir efeito elevando o dólar, a inflação terá mais um ponto de pressão:

- A inflação de serviços, não há sinal de que vá cair a curto prazo. Nós estamos prevendo, aqui na MB, uma inflação de 9,2% nesses preços. Serviços é o "non-tradable" clássico; não dá para segurar preço importando e a pressão vem do mercado de trabalho muito aquecido e do aumento da indexação.

Esta semana, o Banco Central vai divulgar o Relatório de Inflação, que sai trimestralmente, e os analistas poderão tirar dúvidas sobre qual é a estratégia do BC para enfrentar tantas pressões ao mesmo tempo. Ontem, o relatório Focus do Banco Central, baseado em previsões do mercado financeiro e das consultorias, elevou de novo a previsão de inflação deste ano, para 6%, e do ano que vem. A dúvida é se o BC vai aceitar mais inflação este ano e lutar para convergir para a meta de 4,5% apenas em 2012.

FONTE: O GLOBO

Esvaziamento do MST:: Celso Ming

O Estadão de ontem publicou matéria de Roldão Arruda e José Maria Tomazela sobre o esvaziamento do Movimento dos Sem-Terra (MST). Os acampamentos e os militantes estão rareando e é cada vez mais difícil recrutar gente para invadir propriedades.

Os dirigentes do movimento têm duas explicações: (1) o Bolsa Família acomodou os militantes, que agora se contentam com a cesta básica em vez de enfrentar as agruras da lona dos acampamentos; e (2) o aumento do emprego no Brasil, especialmente na construção civil, empurrou muita gente para o mercado de trabalho.

Esse diagnóstico diz muita coisa. Diz, por exemplo, que esse caldo de pobreza em que o MST sempre buscou seus integrantes não se trata com distribuição de terras, mas com políticas de renda, cuja melhor resposta é o Programa Bolsa Família, e não com assentamentos burros e sem futuro. E diz, também, que sem-terra não quer terra, mas, sim, emprego. E isso se resolve com crescimento, não com fatiamento de propriedades.

Há anos, o MST vai perdendo foco. Para disfarçar o esvaziamento, seus dirigentes perpetram barbeiragens tanto ideológicas como programáticas. Tentam, de um lado, responder com a pregação de um socialismo esclerosado, sem contexto histórico. E, de outro, com a adoção de práticas ambientalistas radicais em nada relacionadas com a questão agrária.

Na última década, não se limitaram a invadir propriedades improdutivas. O MST patrocinou centenas de atos que pouco se diferenciam do puro vandalismo. Invadiram e destruíram plantações de eucalipto, cana-de-açúcar, laranjais e canteiros de pesquisas agronômicas, sob a alegação de que essas culturas agridem o meio ambiente ou que, em vez de alimentos, produzem commodities para os mercados - como se a silvicultura e as culturas do algodão e da cana fossem distorções neoliberais. Enfim, comportaram-se como se sua principal função não fosse a distribuição de terras a quem supostamente delas necessita, mas servir de massa de manobra de grupos fundamentalistas.

Outros fatores ajudam nesse processo de definhamento do MST. Um deles é o crescimento do agronegócio, que só acidentalmente tem a ver com a ação de grandes capitais na agropecuária. Está ligado ao maior uso de tecnologia de produção de sementes, de preparo de terra, de plantio, de irrigação, de colheita, de armazenagem e a práticas financeiras modernas, que seguem a trajetória das cotações das commodities, operam no mercado futuro e trabalham com hedge. E tem a ver com a integração da agropecuária às cadeias produtivas e aos mercados de consumo, seja o produtor uma grande empresa agroindustrial ou uma mera unidade familiar. É esse conjunto que está determinando o fracasso de tantos assentamentos.

Em todo o caso, uma é função social de determinadas instituições e outra pode ser a função real. Na cabeça dos fundadores e dos dirigentes, o MST canaliza energias para a reforma agrária e para a ocupação não predatória da terra. Na prática, foi e continua sendo um movimento conservador. Sua principal função não foi além de conter e dar certa disciplina às massas carentes das grandes periferias urbanas para que não criem problemas ao desenvolvimento do País.

FONTE: O ESTADO DE S.PAULO

Entrevista: Ministro Luiz Fux

'Debaixo da toga de juiz também bate um coração', diz Fux

Vera Magalhães e Márcio Falcão

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, 57, não aceita ser responsabilizado pelo voto decisivo que anulou a aplicação da Lei da Ficha Limpa nas eleições de 2010.

Juiz de carreira, ele disse que procurou argumentos jurídicos para tentar validar a regra na última eleição, mas não encontrou. "Debaixo da toga de um magistrado também bate um coração de homem", disse, ao explicar que tenta sempre equilibrar "razão e sensibilidade" ao julgar. "Procuro sempre esse equilíbrio, e acho que tenho conseguido''.

A seguir, os principais trechos da entrevista concedida em sua casa, na sexta.

Folha - Como o sr. se sentiu desempatando uma questão tão controversa como a da validade da Lei da Ficha Limpa em 2010?

Luiz Fux - Eu não desempatei nada. Apenas aderi à posição majoritária do Supremo, que era no sentido de não permitir que a lei valesse para as eleições do mesmo ano. Os votos foram de acordo com o artigo 16 da Constituição, que é um artigo de uma clareza meridiana. Uma coisa tão simples que às vezes um leigo sozinho, lendo o dispositivo, vai chegar à mesma conclusão que eu. O artigo 16 diz que a lei que altera o processo eleitoral não se aplica na eleição que ocorra até um ano de sua vigência.

Alguns ministros, como Joaquim Barbosa, entenderam que era o caso de decidir entre o artigo 16, que trata da anualidade e preserva direitos individuais, e o princípio da moralidade, que tem maior impacto social.

Eu tenho uma visão técnica sobre esse tema. Esse principio da anualidade eleitoral é transindividual, porque refere-se à universalidade dos eleitores e à universalidade dos candidatos. Aqui não está em jogo interesse individual ou coletivo. Aqui está em jogo princípio transindividual.

Como corte constitucional, o STF deve fazer distinção entre o que deve prevalecer: os direitos individuais ou os direitos da sociedade?

A Constituição não legitima julgamentos subjetivos. Senão, partimos para aquela máxima de "cada cabeça, uma sentença", e não vamos ter uma definição do que é lícito e o que é ilícito. A população só tem segurança jurídica a partir do momento em que o magistrado se baseia ou na lei ou na Constituição. É claro que essas leis, essas regras constitucionais, precisam ser interpretadas, mas a interpretação só se opera quando há uma dubiedade na lei.

Alguns ministros apontaram outras inconsistências na Ficha Limpa. O sr. acha que, no futuro, o STF pode derrubar a lei?

Nós julgamos a questão do artigo 16, que tornou absolutamente indiferente a análise das demais questões. Não houve ninguém que tivesse declarado a lei inconstitucional. Por isso eu afirmei, e isso foi derivado de uma aspiração humana, que fiquei impressionado com os propósitos da lei, fiquei empenhado em tentar construir uma solução. Tanto assim que não consegui dormir, acordei às 3h da manhã e levei seis horas para montar o voto. A partir do julgamento, a única conclusão a que se pode chegar é que ela se aplica a partir de 2012.

Mas quando o ministro Cezar Peluso diz que nem as ditaduras ousaram fazer uma lei retroagir para punir crimes, ele não está dando mote para que a lei seja questionada?

Uma coisa é a anterioridade, prevista no artigo 16, e outra é você falar em retroatividade. Às vezes há um impulso de se confundir as coisas. Se a lei pode ser aplicada aos crimes anteriores não foi objeto de debate. Acredito que isso foi uma manifestação isolada diante do clima que se criou diante da judicialidade do argumento, isso acontece muito em colegiado.

Mas pessoalmente o sr. vê problema nisso?


Hoje não vejo problema. Mais tarde poderão surgir novas demandas? Poderão surgir. Até por isso não posso me pronunciar agora, mas eu digo que a lei vale para 2012. A lei da Ficha Limpa é movida pelo melhor propósito de purificação da vida democrática. Acho a opinião pública muito importante, mas para nós, a Constituição é um santuário sagrado.

E a repercussão do seu voto?

As opiniões estão divididas. Você vê juristas dizendo que não tinha outra saída e outros dizendo que a lei foi votada às pressas e por isso não se pôde reapurar os aspectos de sua legalidade.

O Judiciário não demora demais em responder a essas demandas?

Aqui entra em cena outra questão sobre a qual já fui muito indagado, que é a judicialização da política. Aqui não há a judicialização da política: há a politização de questões levadas ao Judiciário. Por que não resolveram isso lá entre as próprias instituições? Como a Constituição garante que todo cidadão lesado pode entrar na Justiça, todos aqueles que se sentiram prejudicados pela lei entraram em juízo. Veja quantas esferas: passam pela primeira instância, TRE, vão ao TSE e ainda cabe recurso ao STF. Eu sou defensor da eliminação do número de recursos. É preciso que a população se satisfaça.

O atraso nesse caso foi agravado pela demora na escolha do novo ministro do STF. O sr. é a favor do atual critério de escolha dos ministros?

A única alteração que eu faria, talvez até pela visão da carreira, é que eu acho que parte das vagas do Supremo deveria ser destinada a juízes de carreira, que tenham experiência na atividade de julgar, tenham percepção de que esses recursos demoram.

O sr. defende mandato fixo para ministro?

Me perguntaram sobre essa ideia e acho boa. Um ministro que passa 10 anos em um tribunal superior já deu sua contribuição ao país. Isso é mais de dar contribuição do que fazer biografia.

O sr. vai poder ficar quase 13 anos. Pretende sair antes?

Aí a gente vai ter que valer da frase de que o futuro a Deus pertence. Eu não sei se vou tão longe. Acho que é uma ideia legítima você contribuir com seu país por 10 anos e depois você permitir que outros possam ocupar.

Essa divisão que houve nesse julgamento tende a se repetir?


Eu entendo o seguinte: mesmo os magistrados mais experientes têm um grau de intelectualidade muito avançado, não merecem a pecha de conservadores. O voto do ministro Gilmar Mendes é um voto baseado em doutrinas recentes. São homens de todos os tempos, e os mais novos também têm posições ponderáveis. Não tem grupo, nem deve se imaginar isso. Até porque o Supremo visa a fazer Justiça à luz da lei e da Constituição. Não é um tribunal de justiçamento. Nós temos um respeito sagrado pela Constituição, até porque iniciativas populares podem levar a soluções contra o próprio povo.

O STF tem pela frente casos polêmicos, como a extradição de Cesare Battisti. Qual sua posição sobre o caso?

Uma tese sub judicie não pode ser adiantada sob pena de criar um paradoxo e eu ficar impedido de julgar.

A extradição virou uma disputa entre a questão política e o entendimento do tribunal?


Acho que a questão que se vai colocar é a seguinte: se o ato do presidente é um ato vinculado à decisão do Supremo ou é um ato discricionário. Tem sistemas jurídicos de todos os gostos. Tem sistema que avalia apenas se estão presentes as condições de extradição. A discussão é saber qual é o sistema brasileiro. Será que é aquele que entende que o Poder Judiciário só avalia e tem que cumprir, ou é que o Poder Judiciário é impositivo, e cabe apenas ao presidente cumprir? Vai depender do teor da decisão.

Há na pauta outros casos de grande repercussão social, como a permissão ou não de aborto de anencéfalos e a união homoafetiva. Como o sr. se posiciona nesses casos?

No Supremo, você aplica regra bíblica de a cada dia uma agonia. Por exemplo, a lei da Ficha Limpa foi incluída na sexta à noite na pauta. Essas coisas são divulgadas muito em cima da hora.

E em relação à Adin contra a fixação do salário mínimo por decreto? O sr. acha que existe choque entre Poderes?

Eu acho que é uma coisa mais formal. Saber se a política podia ser fixada por lei e depois o detalhamento por decreto. Acho que vai ser só isso.

Mas o sr. nesse ponto também pretende ser estritamente técnico?

Eu julgo sempre de acordo com a minha consciência, e acho que estou fazendo o melhor. Eu sou humano. Se eu errar, vou errar pelo entendimento. Eu sou sensível aos direitos fundamentais da pessoa humana.

Outra polêmica posta é sobre os limites de atuação do CNJ. O sr. acha que o ministro Cezar Peluso adotou uma postura mais corporativista que a anterior?

O ministro Peluso é um juiz de carreira que exerce a presidência. E o ministro não tem a história de um homem corporativista. Tem a história de um homem firme, que quando tem de aplicar uma punição severa não se furta a isso. Ele só não vai permitir a condenação de uma pessoa em bases infundadas.

Mas qual o sr. acha que deve ser o limite de atuação do CNJ?

Temos uma regra constitucional. O CNJ foi uma grande inovação em relação ao controle externo, mas de vez em quando tem tido histórico de questionamentos quanto à sua atuação, de desvios da função. É isso que temos de analisar.

Neste ano ou no próximo os srs. vão se deparar com o maior julgamento da história do STF, que é o do mensalão. O sr. acha que o Supremo é a corte adequada para julgar questões penais?

Juiz tem de julgar de tudo. Outro questionamento, o da prerrogativa de foro, tem um pressuposto correto, porque o ente público, dependendo da função que ele exerça, está sempre sendo questionado. Não seria razoável ele ser julgado cada hora num lugar.

Mas existe o outro lado dessa questão, que é o fato de o Supremo demorar demais para se manifestar em questões penais. Até hoje há apenas três casos de condenação.


Isso é uma realidade inafastável, inocultável. Mas hoje o fato de você ter juízes para produzir provas, fazer a oitiva de testemunhas, agiliza muito. Pelo tamanho do processo, pela quantidade de réus, o ministro Joaquim Barbosa está tendo uma presteza enorme. Acredito que vai haver uma distribuição com muita antecedência do relatório, para que todos nós possamos fazer juízo de valor e emitir um julgamento justo.

Em 2007, quando o STF decidiu receber a denúncia no caso do mensalão, o ministro Ricardo Lewandowski fez um desabafo dizendo que o Supremo julgou "com a faca no pescoço''. No julgamento, isso deve voltar, com parte da opinião pública pressionando pela condenação; e de outro, os acusados e os aliados tentando negar qualquer delito. Como equilibrar isso?

E você acha que eu não julguei o Ficha Limpa com a faca no pescoço? Eu acho que os ministros vão se equilibrar no fio dessa navalha no seguinte sentido: o processo penal determina que seja apurada a autoria e a materialidade. Esse é o papel do Supremo: à luz dos autos verificar se houve autoria e materialidade dos delitos apontados. Discussão política é inaceitável. Eu não vou entrar nessa seara. Discussão política comigo não vai ter. Não vou nem impugnar politicamente nada nem acatar nada politicamente. Vou me ater aos autos e à lei e à jurisprudência.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO, 28/3/2011

Gorbatchov, o devido valor::Pável Palájtchenko

Já é uma banalidade afirmar que Gorbatchov é venerado mundo afora e até hoje não foi devidamente levado em conta na Rússia. Quando se interessam saber sua posição sobre o assunto, ele responde que não pode guardar ressentimento, e, além disso, pode compreender as razões para tal comportamento. A transição para a democracia levou milhões de cidadãos russos a sofrerem grandes privações. Gorbatchov não nega também sua responsabilidade no caso, reconhecendo os erros e fracassos do período da perestroika.

Todavia, é impossível explicar a grande diferença como Gorbatchov é recebido na Rússia e no resto do mundo sem tomar em consideração as particularidades do caráter nacional russo e da história do país.

Quando Gorbatchov chegou ao poder todos queriam mudanças. Mas a maioria esmagadora não fazia ideia quais haviam ser essas mudanças. Dominavam as tradicionais esperanças russas do “bom senhor” e do “bom tsar”. Quase todas medidas do líder significavam um novo início.
Não se pode dizer que Gorbatchovnão teve alternativa. Naquele período, os altos funcionários do Partido Comunista gostavam da chamada “ideologia de sombra” que reunia em si os elementos do nacionalismo russo e da geopolítica imperial. Seria ainda mais evidente a necessidade de reforçar a disciplina o que levaria gradualmente a uma “Ceausescusação”, referente ao ditador comunista romeno, do regime soviético.

Aprovada pelo Politburo conservativo do comitê central do Partido, a escolha de Gorbatchov não foi a mais evidente. Ela pretendia que a perestroika não fosse apenas aprovada por unanimidade, mas sim apoiada pelo povo. Inicialmente, o estadista tentou pôr esse plano em prática nos limites do sistema já existente.

Mas, passados dois ou três anos, chegou à ideia da democratização. Também fez com que ela fosse aprovada pelo Politburo. Pouco tempo depois, verificou-se que esse não estava pronto para mudanças dolorosas, surpresas e instabilidade - fatores inevitáveis.

A maior parte do povo também não estava pronto para tudo isso. Recebendo cada vez mais liberdade, o povo depositava esperanças não nas suas próprias forças, mas na mão firme e no líder decisivo. Foi esse o motivo da ascensão radical da popularidade de Iéltsin e da rejeição de Gorbatchov, conservada até hoje.

É paradoxal que a parcela mais ativa e instruída da sociedade tenha sido a primeira a abandonar Gorbatchov e aderir a nacionalistas nas repúblicas e a Iéltsin na Rússia. Os intelectuais, aos quais a liberdade vinda de cima trouxe as maiores e mais instantâneas vantagens, aproveitaram-na para organizar uma grande festa da desobediência.

Na agitação desta festa, os novos líderes admitiram sem hesitações que a União Soviética fosse extemporaneamente dissolvida. A medidafoi prematura porque a democracia não tinha se tornado uma instituição política, social ou econômica em nenhuma das repúblicas. Passados vinte anos ficou claro que a disssolução da União Soviética não acelerou, mas sim freou o processo de formação dessas instituições, gerando regimes de democracia limitada. Mas são poucos os que se atrevem a reconhecê-lo. E, se para os cidadãos das ex-repúblicas as privações das últimas duas décadas são compensadas pelos sentimentos nacionais gerados na conquista da independência, na Rússia não é assim: aqui, a dissolução da União Soviética significa a derrota da grande Pátria.
Na busca por um culpado, as mais diferentes pessoas apontam o dedo para Gorbatchov - tanto os comunistas que no Soviete Supremo votaram nos acordos de Belovejskaia Puscha, como os radicais que apoiaram tudo o que enfraquecia o poder soviético, e os cidadãos comuns que não se preocuparam muito quando seu país deixou de existir. Alguns o acusam de não ter usado força para reprimir o separatismo, outros (eu mesmo o senti) afirmam que a URSS poderia ser conservada se depois da tentativa de golpe do GKCP (Comitê Estatal de Emergência), em 1991, Gorbatchov tivesse transferido o poder a Iéltsin, e outros ainda simplesmente sentem antipatia pelo homem.
Todos, porém, gozam dos direitos e liberdades obtidos nos anos da perestroika. A liberdade de imprensa, de expressão, a abertura das fronteiras (nos limites definidos pelas autoridades) e a liberdade de reunião são recebidas como um presente pelo qual ninguém precisa agradecer - e pode até ser repudiado, como fez o escritor Soljenítsin, declarando que “tudo foi arruinado pela glasnost de Gorbatchov”.

Soljenítsin não foi o único a não notar a contradição entre as demandas impacientes do início dos anos 90 e a repreensão que caiu sobre Gorbatchov após sua saída do poder. Essa mesma partida salvou o país de problemas ainda mais graves, mas, uma vez mais, não foi devidamente apreciada pelo povo e pela elite, para os quais as personalidades mais notáveis da história russa são Ivan, o Terrível, Piotr I e Stálin, e não Aleksandr II, o qual libertou os servos. Essas afirmações não pretendem de maneira alguma censurar o povo. A História nos fez desse modo. A mentalidade e as particularidades nacionais modificam-se muito mais rápido que a cultura material. Mas não se pode começar a estudar um problema se não nos damos conta de sua existência. A enorme diferença constatada na recepção de Gorbatchov na Rússia e na maioria dos outros países é, sem dúvida, um problema. Não um problema para Gorbatchov, mas para a Rússia. E colaboração do restante mundo na valorização de seu papel na história seria um grande passo para a integração da Rússia na comunidade internacional.

Isso, porém, não pode se dar de forma independente. A Rússia deve fazer um esforço mais para passar à democracia real. E seu sucesso não é garantido. Um líder que se atrevee a fazê-lo enfrentará muitas dificuldades, mas sua estrada será mais fácil que aquela inciada por Gorbatchov, com transformações de um gênero que ainda não foi bem compreendido por nenhum de nós. Estamos buscando um caminho para a democracia junto com dezenas de outros países e milhões de pessoas. Quando alcançarmos este objetivo, aí sim, poderemos dar o devido valor a quem nos deu essa chance.

Pável Palájtchenko foi tradutor de Mikhail Gorbatchov e do ministro das relações exteriores Eduaard Shevardnadze

FONTE : GAZETA RUSSA, 5/3/2011

Dilma põe em dúvida a promessa de erradicar miséria até fim do mandato

Julia Duailibi e Marcelo Portela

A presidente Dilma Rousseff (PT) admitiu ontem, pela primeira vez, que os quatro anos de seu mandato podem não ser suficientes para erradicar a miséria no País. O combate à miséria foi uma das principais promessas de Dilma durante a campanha eleitoral e consta em documento intitulado Diretrizes do governo da presidente Dilma Rousseff divulgado no site da Presidência: "Erradicar a pobreza absoluta e prosseguir reduzindo as desigualdades". Essa mesma meta consta na cartilha feita por Dilma durante a campanha eleitoral, com 13 compromissos.

"Temos um grande compromisso, que é acabar com a miséria no nosso Brasil. Posso não conseguir acabar nos meus quatro anos, mas eu vou insistir tanto nisso, que esse objetivo de acabar com a miséria vai ficar selado nas nossas consciências", afirmou a presidente, em Belo Horizonte, ao participar do lançamento do programa Rede Cegonha, de atendimento gestantes,

Dilma Rousseff também minimizou ontem críticas que ela própria fizera ao sistema público de saúde, na semana passada.

Em seu discurso de posse, em janeiro, Dilma afirmou que a erradicação da miséria seria a prioridade da sua gestão. "Lutarei firme e decididamente para acabar com a miséria no nosso País", afirmou em fevereiro.

De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 2009, o número de pobres (com renda per capita mensal de até R$ 140) no País caiu quase pela metade, entre 2003 e 2009, passando de 30,4 milhões para 17 milhões. Economistas do próprio governo já diziam ser pouco provável diminuir o número para zero em quatro anos.

"Salto". Apesar de admitir que talvez não consiga extinguir a miséria no seu governo, Dilma disse achar que o Brasil dará um "salto maior ainda" que o visto nos dois mandatos do ex-presidente Lula (2003-2010). Os avanços, segundo a presidente, serão consequência da "herança" positiva recebida do antecessor.

Depois de ter feito, na semana passada, críticas indiretas ao Sistema Único de Saúde (SUS), o qual já havia dito ser "incompleto" e ter "falhas", a presidente afirmou ontem que não se pode ficar "parado, de braços cruzados, olhando para o SUS e falando que ele é bom". "Agora temos de fazer um esforço para estar à altura do desafio que aqueles que lançaram o SUS, nos anos 80, tiveram o compromisso com o Brasil. Temos de transformar cada vez mais, a cada dia, o nosso SUS em um grande e em um ótimo sistema de saúde."

Dilma disse ainda ser importante criticar: "Nós estamos abertos a escutar críticas. Sabemos que só quem escuta pode melhorar. Aqueles que acham que atingiram o mundo perfeito nunca melhoram, nunca dão um passo". O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, acompanhou a presidente durante a viagem.

Cegonha e creche. Para a presidente, o SUS deve operar com qualidade para que o programa Rede Cegonha funcione - segundo o Ministério da Saúde serão investidos R$ 9,4 bilhões até 2014 em atendimentos que vão do pré-natal até os dois anos de vida do bebê. O programa, também uma promessa de campanha, foi anunciado como contraponto ao Mãe Paulistana, implantado em São Paulo na gestão de José Serra (PSDB), derrotado por Dilma em 2010.

Durante o seu discurso, de 25 minutos, a presidente quase cometeu uma gafe. Chegou a dizer que "creche não é só um depósito de criança". Ao perceber a falha, consertou: "Não é só um depósito de criança porque nunca foi." "Uma creche que é um depósito de crianças é uma distorção que nós não podemos permitir."

Vale-táxi. O governo prometeu ontem que vai pagar táxi para gestantes atendidas pela rede pública. O vale-táxi é um dos pontos previstos no programa Rede Cegonha, lançado ontem. Segundo o ministro Padilha, o Transporte Seguro terá investimentos de R$ 262,6 milhões, o que representa 2,79% da verba prevista para o Rede Cegonha.

O que Dilma disse

4 de julho de 2010

"O objetivo é superar a pobreza por meio da garantia do acesso e da oferta de oportunidades a indivíduos e famílias para a sua inclusão produtiva na sociedade" (Diretrizes do Programa de Governo entregue ao TSE)

16 de setembro de 2010

"Meu objetivo e meu compromisso é erradicar a pobreza extrema. Não é uma proposta de tecnocrata; é baseada em valores humanos e éticos"

(em almoço com empresários na Associação Comercial do Rio de Janeiro)

25 de outubro de 2010

"Erradicar a pobreza absoluta e prosseguir reduzindo as desigualdades"

(Um dos 13 compromissos da campanha de Dilma)

lº de janeiro de 2011

"A luta mais obstinada do meu governo será pela erradicação da pobreza extrema e a criação de oportunidades para todos.

Não vou descansar enquanto houver brasileiros sem alimentos na mesa ... E este é o sonho que vou perseguir"

(Discurso de posse)

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Operários mantêm greve em Santo Antônio

Parte dos operários da usina decide não voltar sem um reajuste salarial; em Mato Grosso do Sul, usina São Domingos também está paralisada

Gabriela Cabral

O impasse entre o sindicato de trabalhadores e o consórcio responsável pela construção da usina de Santo Antônio prolonga a greve no canteiro de obras, que já passa de uma semana. O Sindicato dos Trabalhadores da Indústria da Construção Civil de Rondônia (Sticcero) realizou assembleias domingo e ontem pela manhã para elaboração de uma pauta de reivindicações.

A pauta prevê reajuste salarial de 30%, a ser discutido em reuniões que antecedem o novo acordo coletivo da categoria. O sindicato também anunciou o retorno às obras ontem. Porém, segundo o presidente do Sticcero, Raimundo Soares, uma parte dos operários não aceitou voltar ao trabalho até que seja concedido um reajuste salarial. O desentendimento evidencia a pouca representatividade do sindicato da categoria, que deve incorrer de multa de R$ 50 mil por dia parado.

A paralisação das duas obras, em Jirau e Santo Antônio, começou quando um grupo de trabalhadores incendiou alojamentos no canteiro de obras de Jirau.

Segundo o secretário de Políticas Sociais da Confederação Nacional de Sindicatos da Construção e da Madeira da CUT (Conticom), Luiz Carlos José de Queiroz, o Sticcero ainda trabalha para filiar os trabalhadores dos dois empreendimentos, já que muitos são de fora do Estado.

"A grande rotatividade é característica do setor da construção civil, mas estamos conscientizando os trabalhadores sobre a importância de se filiar ao sindicato que possa ter voz nas discussões", disse, enfatizando que muitos não participaram do acordo coletivo do ano passado.

Queiroz disse ainda que as investigações sobre o incidente que deixou o canteiro de obras de Jirau parcialmente destruído estão a cargo dos órgãos competentes, mas o sindicato também está verificando as condições dos trabalhadores alojados e o pagamento de seus pertences.

São Domingos. Forças policiais e o Ministério Público do Trabalho estão contornando os incidentes ocorridos na construção da Hidrelétrica São Domingos, em Mato Grosso do Sul. As ações foram iniciadas na sexta-feira, um dia depois que os operários da obra, em Água Clara, a 60 km do centro da cidade, na região leste do Estado, promoveram quebra-quebra e incêndios no canteiro de obras.

A Polícia Militar mantém policiamento ostensivo no local, e na delegacia de polícia civil o delegado de Água Clara, Nilson Fonseca Martins, continua apurando o caso. Desde o dia da confusão, cinco operários estão presos, acusados de serem os responsáveis diretos pela rebelião. Segundo os depoimentos no inquérito policial, um deles entrou fumando no refeitório, foi repreendido, não gostou e cuspiu na cara do segurança, autor da repreensão.

O segurança reagiu ameaçando usar o cassetete, mas de repente foi dominado "por um monte de homens". O que foi considerado "pequeno incidente" tornou-se a destruição de todo o canteiro de obras. Pelo menos 800 homens estavam trabalhando no local e 80 deles foram levados para a Delegacia de Água Clara.

A maioria dos detidos reafirmou queixas antigas, algumas desde 2009, quando as obras foram iniciadas. "Alimentação de péssima qualidade, salários atrasados e alojamento que mais parece um muquifo", foram as reclamações mais repetidas. As queixas foram encaminhados ao Ministério Público do Trabalho.

Todo o episódio resultou na paralisação temporária da obra, onde apenas 300 empregados permanecem. O reinicio completo da construção ocorrerá na medida em que novos alojamentos forem construídos. Segundo calcula a Eletrosul, proprietária da futura usina, deverá ocorrer um atraso de dois a três meses na entrega da obra, marcada para 2012.

PARA LEMBRAR

Há duas semanas, o canteiro de obras da Hidrelétrica de Jirau, no Rio Madeira, foi totalmente destruído supostamente por um grupo de trabalhadores da construtora Camargo Corrêa. Dias depois, a Hidrelétrica de Santo Antônio, também em construção no Madeira, paralisou preventivamente as operações.

As duas usinas fazem parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e a tensão que tomou conta dessas obras levantou importante questão sobre as condições de trabalho a que são submetidos os milhares de trabalhadores contratados pelos consórcios responsáveis pelas obras

A violência em Jirau obrigou o governo a intervir com a presença de homens da Força Nacional de Segurança e da Polícia Federal.

O Planalto acusou as construtoras das usinas de tratar de forma ultrapassada e autoritária os operários. Apenas na usina hidrelétrica de Jirau trabalham mais de 22 mil homens.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO