quarta-feira, 12 de agosto de 2020

A urgência da reforma administrativa – Editorial | O Globo


A pandemia expôs o caráter perverso de um Estado transformado em máquina de gerar desigualdade

O novo coronavírus tem exposto sem piedade as mazelas dos países por onde se alastra. Ora são deficiências no sistema de saúde, ora nas condições de habitação. Ora o nacionalismo tacanho, ora a falta de espírito coletivo e cidadania. Aqui a ignorância, ali o obscurantismo. No Brasil, além de tudo isso, a pandemia desnudou o caráter perverso do nosso Estado, uma máquina de gerar desigualdades que provê serviços precários a quem mais precisa.

Para constatar tal fato, basta examinar o que aconteceu aos salários das mesmas ocupações nas esferas pública e privada. Pelos últimos dados disponíveis para 24 setores, analisados a pedido do GLOBO pelo economista Daniel Duque, os funcionários da iniciativa privada receberam em junho 21% a menos do que ganhavam antes da pandemia (e trabalharam 25% menos horas). Para servidores públicos, a redução salarial foi de apenas 3% — e a carga de trabalho, 29% menor.

A pandemia desnudou ainda nossa incapacidade atávica de encarar tais problemas com maturidade. Num país sem capacidade de investimento, em que faltam infraestrutura, energia, saneamento e transporte; segurança, saúde e educação de qualidade, o debate foi capturado por uma espécie de ira santa contra os mecanismos que garantem o equilíbrio fiscal.

Foi pelos ares a “regra de ouro”, dispositivo constitucional que impede o governo de contrair dívidas para pagar despesas correntes. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) virou letra morta, descumprida por 14 estados sob o beneplácito do Supremo, que anulou os dois dispositivos que permitiriam reduzir o dispêndio com pessoal. Uma campanha reúne políticos, economistas e oportunistas de todo tipo em favor do relaxamento do teto de gastos. A reforma administrativa, que traria um mínimo de racionalidade ao serviço público, foi adiada pela enésima vez. O presidente Jair Bolsonaro nem quer ouvir falar no assunto.

Em vez dela, romper o teto se tornou a obsessão dos que buscam uma saída conveniente para a falta de recursos para investir. É uma narrativa tão sedutora quanto estapafúrdia. A maior causa da escassez não é o teto, mas o crescimento galopante e inarredável dos gastos obrigatórios, que, em dez anos, saltaram de 75% para 94% do Orçamento. Se a reforma da Previdência conteve a explosão nas aposentadorias e benefícios, resta intocado o aumento das despesas com o funcionalismo. Com teto e tudo, os gastos do Estado não pararam de crescer e somaram 49% do PIB em 2019. De cada dois reais produzidos no ano passado, um foi tragado pela máquina.

Em três décadas, o funcionalismo brasileiro cresceu de 5,1 milhão para 11,4 milhões (18% da população ativa, segundo estudo do Instituto Millenium). Das três esferas de poder, a federal é aquela em que as despesas mais aumentam. Entre 2008 e 2019, enquanto os funcionários federais cresceram 11%, os gastos com eles subiram 125%. O Brasil gastou, em 2019, R$ 928 bilhões, ou 13,7% do PIB, no pagamento de seus empregados. Numa lista de 80 países com dados de 2018, fomos o sétimo que mais gastou

Gastamos com funcionalismo mais que Chile (6,9%), Peru (6,6%) ou Colômbia (6,4%). Mais que França (12,1%), Portugal (10,3%) ou Alemanha (7,5%). Gastamos mais que o dobro do que investimos em educação e três vezes e meia o que despendemos em saúde. Num país em que cem milhões vivem sem esgoto e 35 milhões não têm água potável, só os funcionários federais civis consomem 21 vezes os recursos investidos em saneamento.
As distorções não param por aí. A média salarial do setor público (R$ 6.219) foi, em 2019, 240% maior que a do setor privado (R$ 2.498). Um estudo do Banco Mundial estimou que, se as 30 ocupações mais comuns do funcionalismo recebessem remuneração equivalente à da iniciativa privada, haveria economia mensal de R$ 15 bilhões.

No serviço público federal, os salários médios para quem ingressa numa função de nível superior equivalem a quase o quádruplo dos pagos a funções que exigem a mesma competência no setor privado. Não é à toa que nos tornamos o país dos concurseiros. Dois terços dos funcionários federais estão entre os 10% com maior renda (em 2019, a média salarial foi de R$ 10,4 mil).

O problema se agrava em virtude da barafunda de três centenas de planos de carreira distintos, com 440 rubricas salariais para mais de 22 mil cargos ou funções e 131 mil postos com gratificações. Promoções são automáticas, por tempo de serviço, não mérito. Bônus por desempenho são concedidos a quase todos. Demissões inexistem. O Estado brasileiro ainda emprega operadores de linotipo e videocassete. Todas essas distorções — e não apenas os supersalários repletos de penduricalhos do Judiciário ou do Ministério Público — contribuem para a desigualdade.

Primeiro, por criar uma elite aferrada a privilégios, incapaz de resistir ao apelo corporativo. Segundo, por drenar recursos que deveriam ser destinados à prestação de serviços públicos melhores, que fazem falta justamente aos mais pobres. Os próprios servidores menos privilegiados e os mais competentes se sentem desvalorizados. Nas palavras da economista Ana Carla Abrão, é um “modelo que não deixa ninguém satisfeito e está quebrando o país”. Ao desnudar a desigualdade intrínseca a nosso setor público, a pandemia tornou ainda mais urgente a reforma administrativa.

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