A pandemia expôs o caráter perverso de um Estado transformado em máquina de gerar desigualdade
O
novo coronavírus tem exposto sem piedade as mazelas dos países por onde se
alastra. Ora são deficiências no sistema de saúde, ora nas condições de
habitação. Ora o nacionalismo tacanho, ora a falta de espírito coletivo e
cidadania. Aqui a ignorância, ali o obscurantismo. No Brasil, além de tudo
isso, a pandemia desnudou o caráter perverso do nosso Estado, uma máquina de
gerar desigualdades que provê serviços precários a quem mais precisa.
Para
constatar tal fato, basta examinar o que aconteceu aos salários das mesmas
ocupações nas esferas pública e privada. Pelos últimos dados disponíveis para
24 setores, analisados a pedido do GLOBO pelo economista Daniel Duque, os
funcionários da iniciativa privada receberam em junho 21% a menos do que
ganhavam antes da pandemia (e trabalharam 25% menos horas). Para servidores
públicos, a redução salarial foi de apenas 3% — e a carga de trabalho, 29%
menor.
A
pandemia desnudou ainda nossa incapacidade atávica de encarar tais problemas
com maturidade. Num país sem capacidade de investimento, em que faltam
infraestrutura, energia, saneamento e transporte; segurança, saúde e educação
de qualidade, o debate foi capturado por uma espécie de ira santa contra os
mecanismos que garantem o equilíbrio fiscal.
Foi
pelos ares a “regra de ouro”, dispositivo constitucional que impede o governo
de contrair dívidas para pagar despesas correntes. A Lei de Responsabilidade
Fiscal (LRF) virou letra morta, descumprida por 14 estados sob o beneplácito do
Supremo, que anulou os dois dispositivos que permitiriam reduzir o dispêndio
com pessoal. Uma campanha reúne políticos, economistas e oportunistas de todo
tipo em favor do relaxamento do teto de gastos. A reforma administrativa, que
traria um mínimo de racionalidade ao serviço público, foi adiada pela enésima
vez. O presidente Jair Bolsonaro nem quer ouvir falar no assunto.
Em
vez dela, romper o teto se tornou a obsessão dos que buscam uma saída
conveniente para a falta de recursos para investir. É uma narrativa tão
sedutora quanto estapafúrdia. A maior causa da escassez não é o teto, mas o
crescimento galopante e inarredável dos gastos obrigatórios, que, em dez anos,
saltaram de 75% para 94% do Orçamento. Se a reforma da Previdência conteve a
explosão nas aposentadorias e benefícios, resta intocado o aumento das despesas
com o funcionalismo. Com teto e tudo, os gastos do Estado não pararam de
crescer e somaram 49% do PIB em 2019. De cada dois reais produzidos no ano passado,
um foi tragado pela máquina.
Em
três décadas, o funcionalismo brasileiro cresceu de 5,1 milhão para 11,4
milhões (18% da população ativa, segundo estudo do Instituto Millenium). Das
três esferas de poder, a federal é aquela em que as despesas mais aumentam.
Entre 2008 e 2019, enquanto os funcionários federais cresceram 11%, os gastos
com eles subiram 125%. O Brasil gastou, em 2019, R$ 928 bilhões, ou 13,7% do
PIB, no pagamento de seus empregados. Numa lista de 80 países com dados de
2018, fomos o sétimo que mais gastou
Gastamos
com funcionalismo mais que Chile (6,9%), Peru (6,6%) ou Colômbia (6,4%). Mais
que França (12,1%), Portugal (10,3%) ou Alemanha (7,5%). Gastamos mais que o
dobro do que investimos em educação e três vezes e meia o que despendemos em
saúde. Num país em que cem milhões vivem sem esgoto e 35 milhões não têm água
potável, só os funcionários federais civis consomem 21 vezes os recursos
investidos em saneamento.
As
distorções não param por aí. A média salarial do setor público (R$ 6.219) foi,
em 2019, 240% maior que a do setor privado (R$ 2.498). Um estudo do Banco
Mundial estimou que, se as 30 ocupações mais comuns do funcionalismo recebessem
remuneração equivalente à da iniciativa privada, haveria economia mensal de R$
15 bilhões.
No
serviço público federal, os salários médios para quem ingressa numa função de
nível superior equivalem a quase o quádruplo dos pagos a funções que exigem a
mesma competência no setor privado. Não é à toa que nos tornamos o país dos
concurseiros. Dois terços dos funcionários federais estão entre os 10% com
maior renda (em 2019, a média salarial foi de R$ 10,4 mil).
O
problema se agrava em virtude da barafunda de três centenas de planos de
carreira distintos, com 440 rubricas salariais para mais de 22 mil cargos ou
funções e 131 mil postos com gratificações. Promoções são automáticas, por
tempo de serviço, não mérito. Bônus por desempenho são concedidos a quase
todos. Demissões inexistem. O Estado brasileiro ainda emprega operadores de
linotipo e videocassete. Todas essas distorções — e não apenas os supersalários
repletos de penduricalhos do Judiciário ou do Ministério Público — contribuem
para a desigualdade.
Primeiro,
por criar uma elite aferrada a privilégios, incapaz de resistir ao apelo
corporativo. Segundo, por drenar recursos que deveriam ser destinados à
prestação de serviços públicos melhores, que fazem falta justamente aos mais
pobres. Os próprios servidores menos privilegiados e os mais competentes se
sentem desvalorizados. Nas palavras da economista Ana Carla Abrão, é um “modelo
que não deixa ninguém satisfeito e está quebrando o país”. Ao desnudar a
desigualdade intrínseca a nosso setor público, a pandemia tornou ainda mais
urgente a reforma administrativa.
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