sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Luiz Carlos Azedo - Supremo cidadão

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

Fux criticou os grupos políticos que “não desejam arcar com as consequências de suas próprias decisões” e permitem a transferência de conflitos para o Poder Judiciário

O ministro Luiz Fux assumiu, ontem, a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) com um discurso emocionado, que traduziu sua trajetória de magistrado de carreira que chegou ao topo do Judiciário. Claramente, reposicionou a Corte: manterá distância regulamentar da política propriamente dita e não hesitará na defesa da ordem democrática e dos direitos dos cidadãos. Fux substituiu o ministro Dias Toffoli, cuja atuação à frente do STF foi marcada por intenso protagonismo político; vista em perspectiva, sob seu comando, a Corte atravessou um dos períodos mais turbulentos e tensos de sua história. Entretanto, Toffoli deixou ao seu sucessor um ambiente de mais respeito entre os Poderes, que andaram à beira de uma ruptura institucional, principalmente em razão dos ataques do presidente Jair Bolsonaro ao Supremo. A ministra Rosa Weber é a nova vice-presidente do STF. Coube ao novo decano da Corte, Márcio Aurélio Mello, fazer a saudação dos pares ao novo presidente do Supremo. Aproveitou para alfinetar o presidente Bolsonaro: “Vossa excelência foi eleito com 57 milhões de votos. Mas é presidente de todos os brasileiros”.

No discurso de posse, Fux chorou duas vezes. Não faltaram referências emotivas aos parentes, aos amigos artistas e aos mestres de jiu-jitsu, arte marcial da qual é faixa-preta. Arrancou aplausos dos pares, demais autoridades e convidados ao falar do pedido de seu pai, o advogado Mendel Fux, já falecido, para que não deixasse o Brasil em razão de uma excelente proposta de emprego no exterior e, assim, retribuísse a acolhida recebida pela sua família de refugiados do nazismo. Criado na Andaraí e ex-aluno do Colégio Pedro II, Fux é filho de judeus romenos. Foi enfático ao dizer que “a interpretação da Constituição deve refletir e justapor, sem paixões, os valores que formam a cultura política e a identidade do povo brasileiro. Judicatura requer a consciência de que a autoridade de nós, juízes, repousa na crença de cada cidadão brasileiro de que as decisões judiciais decorrem de um exercício imparcial e despolitizado de alteridade.”

Cinco eixos
Fux definiu os principais eixos de autuação do Supremo sob seu comando: proteção dos direitos humanos e do meio ambiente; garantia da segurança jurídica conducente à otimização do ambiente de negócios no Brasil; combate à corrupção, ao crime organizado e à lavagem de dinheiro, com a consequente recuperação de ativos; incentivo ao acesso à justiça digital; e fortalecimento da vocação constitucional do Supremo Tribunal Federal. Destacou, porém, duas questões: primeiro, o combate à corrupção; segundo, o distanciamento do chamado “ativismo político” ou neoconstitucionalismo.

Merval Pereira - Nova postura

- O Globo

Fortalecer a “autoridade e a dignidade” do Supremo Tribunal Federal (STF), retirando-o das disputas políticas e mantendo relações com os demais poderes “harmônicas, porém litúrgicas”, parece ser o objetivo central da gestão do ministro Luiz Fux, que tomou posse ontem como presidente do STF.

Essa postura é uma guinada em relação aos últimos anos presididos por Dias Toffoli, que se aproximou excessivamente, na visão de muitos, do Palácio do Planalto e das manobras políticas, na tentativa de protagonizar acordo entre os Três Poderes que resultaram apenas em uma imagem distorcida do Supremo.

Para tanto, Fux definiu que Executivo e Legislativo têm que arcar com as conseqüências políticas das próprias decisões. Em seu discurso de posse, Fux foi enfático ao falar da corrupção, fazendo referência elogiosa à Operação Lava-Jato, que sofre ataques dentro do próprio Supremo:
“Esses corruptos de ontem e de hoje é que são os verdadeiros responsáveis pela ausência de leitos nos hospitais, de saneamento e de saúde para a população carente, pela falta de merenda escolar para as crianças brasileiras”.

A base de sua gestão nos próximos dois anos foi definida num discurso comovido e comovente, em que ficou clara sua alegria de ter chegado ao posto mais alto da carreira jurídica, mas também o desejo firme de não envolver o Supremo em questões que levem a uma “judicialização vulgar e epidêmica”.

Para o novo presidente do STF, é preciso “deferência aos demais Poderes no âmbito de suas competências, combinada com a altivez e a vigilância na tutela das liberdades públicas e dos direitos fundamentais. Afinal, o mandamento da harmonia entre os Poderes não se confunde com contemplação e subserviência”. Para justificar esta nova postura, o novo presidente do Supremo advertiu em seu discurso que “(...) a intervenção judicial em temas sensíveis deve ser minimalista, respeitando os limites de capacidade institucional dos juízes, e sempre à luz de uma perspectiva contextualista, consequencialista, pragmática, porquanto em determinadas matérias sensíveis, o menos é mais”.

Míriam Leitão - Os recados da posse de Fux

- O Globo

‘Baruch Hashem’, disse Luiz Fux ao encerrar um discurso que teve muitos recados institucionais. O som da música “Shalom” ocupou de forma inesperada o ambiente do Supremo Tribunal Federal. Fux é filho de um imigrante que veio para o Brasil fugindo do nazismo. É o primeiro judeu a assumir a presidência da mais alta corte do país. “O Estado é laico, mas a paz é uma necessidade”, explicou o ministro ao anunciar a música. Houve vários outros sinais do tempo. Os cumprimentos foram suspensos, os convidados eram poucos e estavam distanciados, as autoridades usavam máscaras em cabines de acrílico, e as primeiras palavras do novo presidente foram em homenagem às vítimas do coronavírus. “Esta página triste e devastadora da nossa história.”

O presidente Jair Bolsonaro ouviu Fux dizer que a intervenção do Judiciário precisa ser minimalista. Deve ter gostado, porque acha que o STF tem entrado em questões próprias do Executivo. “STF não é o oráculo, não detém o monopólio das respostas”, disse Fux e pediu que não houvesse tanta judicialização da política. Ao mesmo tempo, atravessou o discurso inteiro lembrando as virtudes da democracia.

O presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, fez discurso breve e forte. Elogiou Dias Tóffoli. “Soube reagir quando os ataques — virtuais e reais — ao Supremo Tribunal Federal tentaram solapar a autonomia do Poder Judiciário, constranger a independência dos juízes e ferir a democracia brasileira.” Filho de desaparecido político, cuja memória Bolsonaro atacou, Santa Cruz contou que a OAB se reuniu duas vezes nos últimos 18 meses em atos “em defesa dessa Corte e da Constituição”. Falou do direito ao meio ambiente e do combate a todo tipo de discriminação.

Bernardo Mello Franco - Sinais contraditórios na posse de Fux

- O Globo

As sessões solenes do Judiciário costumam ser pródigas em rapapés. Mesmo assim, Augusto Aras exagerou. O procurador-geral da República disse que o ministro Luiz Fux “alia a mente de Atenas à força de Esparta”. Até as estátuas gregas ficariam coradas com a bajulação.

Fux fez um longo discurso ao assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal. Na única referência à Antiguidade, evocou Platão para declarar apoio à Lava-Jato. Depois citou pensadores mais contemporâneos, como Fagner e Michael Sullivan. “Ele me deu a honra da parceria na canção ‘Flor Mariana’, como presente de casamento para minha filha”, informou.

Sobre o que interessa, a relação da Corte com o bolsonarismo, o ministro emitiu sinais contraditórios. Numa passagem, ele afirmou que “harmonia entre os Poderes não se confunde com contemplação e subserviência”. A frase indicou uma mudança positiva em relação ao colaboracionismo de Dias Toffoli.

Em outro momento, Fux sugeriu que o Supremo pode passar a se omitir em debates caros ao governo. Ele criticou a “judicialização vulgar” de questões “permeadas por desacordos morais”. “Essa prática tem exposto o Poder Judiciário, em especial o Supremo, a um protagonismo deletério, corroendo a credibilidade dos tribunais”, afirmou.

Ricardo Noblat - Que saudade Bolsonaro sentirá de Dias Toffoli

- Blog do Noblat | Veja

O que Fux promete
A entregar pelo menos em parte tudo o que prometeu no seu discurso de posse, ontem, como novo presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Luiz Fux fará o presidente Jair Bolsonaro sentir falta, muita falta do ministro Dias Toffoli.

Há dois anos, ao ser empossado no cargo que cedeu a Fux, Dias Toffoli prometera tirar o tribunal da boca do palco da política, reduzindo seu protagonismo. Fez o contrário. E surpreendeu seus pares e o próprio governo aliando-se a Bolsonaro.

Fux comprometeu-se também com uma “intervenção minimalista” em assuntos sensíveis. “Menos é mais”, enfatizou. Repetiu o truísmo da necessária independência entre Poderes, mas acrescentou: “Com altivez” e não com contemplação e subserviência.

Sentado ao seu lado e usando máscara porque todos, ali, também usavam, Bolsonaro não foi alvo de tratamento especial, nem de salamaleques. Ouviu do ministro Marco Aurélio Mello que deve governar para todos os brasileiros, e não só para os que o elegeram.

Ouviu de Fux, no trecho mais aguardado do seu discurso, uma defesa enfática do combate à corrupção. O ministro citou a Lava-Jato mais de uma vez, exaltando seus resultados. Fez por merecer o que o ex-juiz Sérgio Moro vaticinou em 2016:

– Excelente. “In Fux we trust” (‘em Fux nós confiamos’)

Eliane Cantanhêde - Fux, sem subterfúgio

- O Estado de S.Paulo

Em vez de defender o combate à corrupção em tese, Fux citou especificamente a Lava Jato

Se o Supremo Tribunal Federal agir e decidir nos próximos dois anos como se comprometeu ontem o seu novo presidente, Luiz Fux, será um sucesso, um bom momento para a Justiça brasileira. Não custa lembrar, porém, que, entre palavras e atos, há uma enorme distância. Entre o desejo e as condições práticas, também. E é preciso combinar com os “adversários” – inclusive os demais ministros. Logo, a torcida é para Fux perseguir suas promessas e os princípios manifestados, enfrentar as naturais divisões internas e as pressões externas.

Em seu discurso, que abriu com um tributo aos quase 130 mil mortos pela covid-19, geralmente esquecidos nas falas do Executivo, ele disse que “democracia não é silêncio, é debate construtivo”, e defendeu a independência entre Poderes, mas “com altivez e vigilância e não com contemplação nem subserviência”. Ao seu lado, o presidente Jair Bolsonaro, finalmente de máscara, apesar das telas transparentes que separavam os ministros e autoridades, não mexia um músculo.

Fux também criticou a judicialização da política e o excesso de ações que o Supremo julga por ano – 115.603 em 2019. Ao dizer que o Judiciário não é “oráculo”, pregou que Executivo e Legislativo resolvam seus conflitos internos, sem que o Supremo atue verticalmente, e prometeu uma “intervenção minimalista” em matérias sensíveis: “menos é mais”, disse. Além de enaltecer a democracia e a mínima interferência em temas dos demais Poderes, ele se comprometeu veementemente com uma ação firme em favor de minorias, liberdade de expressão e de imprensa e, junto com isso, com o combate à corrupção e ao crime organizado.

O recado mais objetivo do discurso de posse, porém, foi quando Fux saiu dos princípios gerais, das frases de efeito e das citações eruditas para dizer com todas as letras, sem subterfúgio, que sua gestão será pró-Lava Jato. Além de citar diretamente a operação e o mensalão, marcos contra a corrupção no Brasil, ele fez mais: lembrou aos quatro ventos, especialmente para a cúpula do poder nacional, ali presente, que todas as operações foram realizadas com autorização judicial. Inclusive do próprio Supremo.

César Felício - Distância regulamentar

- Valor Econômico

Luiz Fux frisou que deferência a outros Poderes tem limite

A interlocutores nos últimos meses, o ministro Luiz Fux já havia indicado que pretendia demarcar uma certa distância em relação ao presidente Jair Bolsonaro. A convivência prometida iria muito pouco além da protocolar. Não haveria ambiente para visitas inesperadas, ou encontros no fim de semana.

Este não foi um traço de seu antecessor no cargo, Dias Toffoli, como ficou patente anteontem, com a irrupção de Bolsonaro em sessão do Supremo, para o assombro dos demais ministros.

Aboletado ao lado de Toffoli, a seu convite, Bolsonaro fez questão de lembrar que chegou onde chegou porque foi votado por milhões de eleitores. Ao passo que Toffoli e seus pares lá estavam por indicação presidencial. O momento não foi uma fotografia que colocou o Supremo em uma posição altiva, para dizer o mínimo.

Ao tomar posse ontem como novo presidente da Corte, Fux demonstrou o tamanho da distância regulamentar, ainda que o presidente estivesse ao seu lado, conforme manda o ritual.

Ele se mostrou disposto ao jogo político, ao deixar claro que quer ser “minimalista” e “pragmático” ao julgar ações de outros Poderes.

Bruno Boghossian – Fux no labirinto

- Folha de S. Paulo

Posse de Fux prova que tribunal não vê caminhos entre omissão e ativismo exagerado

A carta de intenções de Luiz Fux em sua posse como presidente do STF deixa poucas dúvidas: o tribunal está perdido no labirinto político em que se meteu. O ministro propôs um pacto para reduzir a interferência do Judiciário sobre outros Poderes, mas se recusou a reconhecer os erros cometidos pela corte.

Fux descreveu o Supremo como uma espécie de vítima de suas próprias decisões. No discurso desta quinta-feira (10), ele se queixou de “grupos de poder” que recorrem ao tribunal para resolver divergências que deveriam ficar restritas a outras arenas. Os pobres ministros, sob essa ótica, seriam praticamente forçados a agir como árbitros.

O novo chefe do Judiciário pediu “um basta” ao que chamou de “judicialização vulgar e epidêmica de temas e conflitos em que a decisão política deve reinar”. Nada disso seria necessário se o STF tivesse delimitado suas fronteiras de atuação com clareza ao longo dos últimos anos.

O ministro deu sua contribuição negativa à causa. Em 2017, ele cancelou sozinho uma votação da Câmara que havia modificado o pacote anticorrupção patrocinado pela força-tarefa da Lava Jato. Não importou, naquela época, a tal necessidade de resolver o processo legislativo dentro do Poder Legislativo.

Reinaldo Azevedo – Fux no STF e o E$quema no STJ

- Folha de S. Paulo

Que o ministro contribua para banir das terras nativas o direito criativo

Luiz Fux assumiu nesta quinta (10) a presidência do STF em meio a mais um espetáculo da Lava Jato-RJ, que vive seus dias de parceria física e metafísica com o bolsonarismo. Fez um strike contra Wilson Witzel e promete não deixar um só pino em pé com a Operação E$quema S, com esse cifrão que encanta os tiozões do WhatsApp que pedem golpe, com polo verde, ventre protuberante e meias e tênis pretos.

Leio que uma das missões do ministro seria manter as conquistas da Lava Jato, sua autonomia, seu poder, sei lá... Os objetos diretos variam de acordo com o entusiasmo do redator. Tomara que seja conversa mole. Sua tarefa é fazer valer a Constituição. Só.

Naquilo em que a Carta é explícita, deve fazê-lo sem margem para interpretações. Dou um exemplo: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Que seja em relação a isso tão aborrecido como o juiz de futebol que manda cobrar tiro de meta quando o atacante faz a bola escapulir pela linha de fundo do campo adversário —se for o defensor a fazê-lo, é escanteio.

Regras 16 e 17 da International Board. No caso da Carta, trata-se do inciso LVII do artigo 5º, cláusula pétrea que o próprio Fux ignorou ao validar um gol de mão da Lava Jato, que conseguiu manter Lula na cadeia contra a regra do jogo, num exercício de criatividade jurídica.

Hélio Schwartsman - Trump e a obrigação de mentir

- Folha de S. Paulo

Americano preferiu minimizar a pandemia, 'para não causar pânico'

Num dos textos mais estranhos da história da filosofia, "Sobre um Pretenso Direito de Mentir por Amor aos Homens", Immanuel Kant sustenta que estamos moralmente obrigados a jamais faltar com a verdade, mesmo que isso implique revelar para o assassino onde se esconde sua próxima vítima.

Donald Trump, que tem poucos traços kantianos, parece defender o que seria uma obrigação de mentir. O jornalista Bob Woodward revelou, com gravações, que Trump já sabia em fevereiro que a Covid-19 seria muito grave, mas preferiu minimizar a pandemia, "para não causar pânico".

Se definirmos pânico como uma condição patológica que leva as pessoas a comportar-se de forma irracional e contra seus próprios interesses, o presidente americano poderia ter um bom ponto de partida para sustentar sua posição. Mas, para não recair em paradoxos análogos aos que assombram Kant, precisaria observar duas condições.

Em primeiro lugar, as mentiras a ser contadas não poderiam comprometer os esforços do governo para combater a epidemia, uma obrigação mais importante do que evitar o pânico. Em segundo, elas não poderiam debilitar a credibilidade institucional da Presidência.

Ruy Castro* - Adivinhe quem é

- Folha de S. Paulo

Mente compulsivamente, até quando não precisa

‚Um doce para quem adivinhar o nome. Ele despeja acusações sem provas contra tudo e todos e, ao ver-se desmentido, nega ter dito o que disse e acusa a imprensa de tê-las inventado. Mente compulsivamente, até quando não precisa. Faz isso de propósito na frente dos repórteres, sabendo que eles só têm duas opções: ou o transcrevem de maneira neutra ou o contestam com provas --o que não lhe faz diferença porque, nos dois casos, ele terá pautado a mídia.

Insulta todos que não concordam com ele. Tenta barrar de suas entrevistas os veículos que vê como hostis --os que não rastejam à sua presença-- e é muito generoso para com os que lhe são servis. Em suas aparições pessoais, dispõe de valentões para constranger e ameaçar opositores. E, ao se ver incomodado por uma pergunta, não a responde. Manda calar a boca, encerra a conversa ou vai embora.

Tem uma massa de apoiadores zumbis, cegos e surdos à montanha de acusações que o mostram como ignorante, despreparado e fraudulento. Mas, quanto mais essas acusações se acumulam, mais eles ficam do seu lado. Faz-se passar por machão a todo instante, como se precisasse se assegurar disso. Por sinal, vive cercado de machões.

Flávia Oliveira - Memórias do cárcere

- O Globo

Experiências de prisão de Caetano e Luiz Justino, separadas por meio século, são pavorosamente semelhantes

Caetano Emanuel Viana Teles Veloso foi preso aos 26 anos, em fins de 1968, semanas após a publicação do Ato Institucional Número 5 (AI-5), marco da fase mais dura da ditadura militar. Com o amigo da vida toda, Gilberto Passos Gil Moreira, mesma idade, também cantor e compositor, foi levado de São Paulo para o Rio de Janeiro, onde ficou detido por 54 dias, a maior parte do tempo sem prestar depoimento nem ser informado do motivo da detenção. O violoncelista Luiz Carlos da Costa Justino, 23 anos, sofreu abordagem policial no Centro de Niterói, quando voltava com três amigos de uma apresentação na estação das barcas. Sem documento, foi conduzido à delegacia. Contra ele havia um mandado de prisão por assalto à mão armada, do qual nunca teve conhecimento e pelo qual fora acusado por reconhecimento fotográfico. Luiz tinha provas de que, no dia e hora do crime, estava tocando numa padaria; ainda assim, passou quatro dias encarcerado. Dois artistas da música, dois regimes políticos, duas experiências de prisão separadas por meio século. E pavorosamente semelhantes.

Caetano Veloso, ídolo da MPB, escreveu sobre os quase dois meses de prisão num capítulo de “Verdade tropical” (Companhia das Letras, 1997). Duas décadas depois, no ano da eleição que içou o deputado e capitão reformado Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto, gravou com Renato Terra e Ricardo Calil, diretores de “Uma noite em 67”, o depoimento que deu em “Narciso em férias”. O documentário, produzido por Paula Lavigne, é uma obra minimalista, em que não apenas o artista, mas o homem fala e se emociona e canta, sentado numa cadeira postada diante de um paredão de concreto. Uma hora e 23 minutos de imersão nas expressões e na voz de Caetano.

Críticas já publicadas sobre “Narciso em férias” chamam atenção para o horror de um Brasil, ao mesmo tempo brutal e ridículo, que parecia ter ficado para trás com a redemocratização, mas se mostra vivo com a escalada autoritária do atual governo. Em pronunciamento no Sete de Setembro, o presidente da República atropelou a verdade com uma História oficial que não representa o Brasil contemporâneo, em que negros, indígenas, mulheres resgatam do passado o protagonismo solapado.

Claudia Safatle - Volta o risco de insolvência do Estado

- Valor Econômico

Democracia está madura para buscar novo arranjo fiscal

Não é possível voltar ao período pré-pandemia, quando praticamente havia se afastado o risco de insolvência do Estado e estava colocada, na agenda da economia brasileira, a questão da produtividade e do crescimento. Estamos, novamente, sob o risco de insolvência.

O déficit primário consolidado do setor público, que era estimado em cerca de 1,5% do PIB para este ano, antes da pandemia, pulou para 13,4% do PIB, e a dívida bruta como proporção do PIB, que era de 80% com tendência de queda, subiu para 95,9%. O PIB, este ano, cresceria 2,2% e agora projeta-se contração de 5,4%, segundo dados do Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV). Esse era o Brasil em fevereiro deste ano confrontado com o período da pandemia.

A necessária ação do Estado para socorrer empresas e famílias no auge da covid-19 afetou substancialmente os indicadores de solvência pública, que no início do ano caminhavam para sair do radar das grandes preocupações do país.

As contas públicas inspiravam cuidados, mas “o medo da insolvência já não assombrava tanto os analistas.” Assim Luiz Guilherme Schymura, diretor do Ibre/FGV, descreve a situação da conjuntura antes e depois da pandemia, na carta que circula hoje.

Vinicius Torres Freire – Melhora mais rápida do que se esperava

- Folha de S. Paulo

Na média, varejo já vende mais que em fevereiro, mas pobres podem ficar para trás

A recuperação da economia anda de fato mais rápida do que o esperado. Não, não quer dizer que a situação não seja horrível ou que tenhamos saído do poço. Pelas projeções por ora mais otimistas, mas ainda razoáveis, ao final de 2021 o PIB terá recuperado apenas três quartos da perda deste 2020. Muito importante, há um grande risco de a recuperação ser mais lenta para os mais pobres, para variar –mais sobre isso adiante.

As vendas no varejo aumentaram mais do que o esperado em julho e ultrapassaram o nível de fevereiro, mostram os dados do IBGE divulgados nesta quinta-feira. Há setores ainda muito arrebentados, bem abaixo nível de faturamento de antes da pandemia, convém lembrar. Trata-se das lojas de tecidos, vestuário e calçados, das livrarias, dos postos de combustíveis e de quem vende material para escritório e de informática, por exemplo. A pandemia ainda limita a circulação pelas cidades e a proximidade física, o que afeta muitos desses lojistas.

No varejo dito “ampliado”, a coisa ainda vai mal para veículos e suas peças, mas não para material de construção. A indústria de veículos, porém, é um dos centros da economia brasileira.

Simon Schwartzman* - A evolução do Bolsa Família

- O Estado de S.Paulo

O novo Programa de Responsabilidade Social é um importante salto de qualidade

Os programas de transferência de renda começaram no governo de Fernando Henrique Cardoso, foram ampliados no governo Lula e está aberta a discussão de como vão continuar. Pouca gente duvida de sua importância e necessidade. Se antes se pensava que a miséria era inevitável, hoje não se pode mais admitir que pessoas fiquem sem pelo menos um mínimo para se alimentarem e sobreviverem.

Nestes mais de 20 anos, muita coisa se aprendeu sobre o que funciona ou não no Bolsa Família. Ao contrário da maioria dos programas sociais brasileiros, o Bolsa Família é relativamente bem focalizado, atendendo a quem mais necessita, a partir das informações de um grande cadastro único. 

As transferências se dão de forma simples, sem burocracia, e o principal resultado é a redução do número de pessoas em situação de pobreza extrema. Por outro lado, as chamadas “condicionalidades”, que associam os benefícios à frequência das crianças na escola e ao atendimento nos serviços de saúde, funcionam pouco. E pela imprecisão do cadastro único existem muitas pessoas recebendo sem precisar e outras que precisam e ficam de fora.

Uma decisão importante para renovar o Bolsa Família é quanto dinheiro vai ser gasto. R$ 35 bilhões, como proposto pelo governo para 2020? Ou R$ 100 bilhões, o que talvez fosse possível se a economia melhorasse? Seja quanto for, é imprescindível avaliar a experiência até aqui e fazer o dinheiro ser mais bem empregado, focado em quem mais necessita e buscando resultados realistas.

É exatamente isso que faz a proposta do Programa de Responsabilidade Social elaborado por um grupo de especialistas liderados por Vinicius Botelho, Fernando Veloso e Marcos Mendes e patrocinado pelo Centro de Debates de Políticas Públicas de São Paulo. A primeira e talvez principal novidade é distinguir as situações de pobreza das situações de informalidade. Pessoas que trabalham informalmente nem sempre ganham muito pouco, mas vivem na incerteza. A ideia, por isso, é criar, ao lado da transferência de renda para os que ganham pouco ou nada, um seguro simples e barato que possa ser usado para as pessoas que trabalhem informalmente.

Adriana Fernandes - Bolsonaro tenta carimbar marca de guerreiro contra dragão da alta dos preços de alimentos

- O Estado de S.Paulo

O presidente está construindo narrativa no momento em que a população mais pobre verá o valor do auxílio emergencial ser reduzido à metade, de R$ 600 para R$ 300

O presidente Jair Bolsonaro diz que não vai dar uma “canetada” para intervir na alta dos preços dos alimentos, mas está conseguindo estrategicamente se colocar para a população como um “guerreiro” em combate contra o dragão da inflação.

Ao mesmo tempo em que busca mostrar ação ao zerar a tarifa de importação para o arroz, o presidente vilaniza os donos de supermercado e os produtores ao mandar o Ministério da Justiça disparar notificações pedindo explicações pela alta de preços.

Nenhum desses dois movimentos vai resolver no curto prazo o problema. O aumento da demanda interna e externa, o dólar favorável para as exportações e o auxílio emergencial impulsionaram a subida dos preços.

Fatores que não vão mudar de um dia para o outro. Muito menos com a abertura da importação. O presidente, que gosta de dizer que não entende nada de economia, também sabe disso e faz um jogada política muito bem calculada com um dos temas mais caros para o brasileiro.

Dora Kramer - Conversa fiada

- Revista Veja

“Jeitinho” do Congresso conspira contra o instituto da reeleição

Fernando Henrique Cardoso chancelou a ideia de que o instituto da reeleição é dos males talvez o mais grave do nosso sistema político, ao escrever que foi um “erro histórico” o patrocínio da emenda constitucional que em 1997 permitiu a prefeitos, governadores e presidentes a chance de pleitearem a renovação de seus mandatos. Segundo ele, foi “ingênuo” acreditar que a partir daí os governantes não fizessem “o impossível” para se reeleger.

Com todo o respeito devido ao ex-¬presidente, ingenuidade é acreditar na inocência do então presidente que fez ele mesmo o “impossível” ao jogar o peso de sua autoridade e prestígio angariado no êxito do combate à inflação para aprovar uma emenda em causa própria. Feriu de morte ali sua majestade, mas ganhou mais quatro anos e ficou bem feliz com isso.

Vir agora com ato de contrição soa a tentativa de diluir responsabilidade por algo que guarda mais relação com a forma do que com o conteúdo. O defeito não está no instrumento existente em várias democracias, mas no uso que se faz dele. Por exemplo: quando da proposta da emenda, por que não se incluiu a obrigatoriedade de o postulante ao mesmo cargo se afastar por um período determinado antes da eleição?

José de Souza Martins* - A vocação de empresário

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

É preciso compreender o chamamento da circunstância, dos valores e das possibilidades de determinado momento histórico

Há um bom número de anos, a revista “Veja” publicou extensa matéria sobre o destino de cada um dos membros da primeira diretoria da Fiesp, que apareciam juntos numa fotografia institucional. De todos eles, apenas dois dos respectivos grupos econômicos haviam sobrevivido.

O capitalismo brasileiro tem se revelado um capitalismo de empresas de relativamente limitada longevidade. Seria socialmente útil que historiadores fizessem uma pesquisa sobre fracassos e falências em nossa história econômica para nela identificar os fatores de sua brevidade. Isso ajudaria em diagnósticos e na reeducação dos empresários, sobretudo os da nova geração.

O sociólogo Maurício Vinhas de Queiroz, da antiga Universidade do Brasil, atual UFRJ, fez nos anos 1960 uma grande e laboriosa pesquisa nacional para identificar os grupos econômicos multibilionários no Brasil.

A pesquisa revelou um fato surpreendente: não havia um padrão na origem desses grupos econômicos e de seu capital original. O capitalismo brasileiro nega a história do capitalismo. É anômalo. Pede, portanto, criatividade empresarial. As lições importadas do neoliberalismo econômico são inúteis.

Foram identificados desde grupos com origem na grande lavoura de exportação, como a do café, que floresceu na escravidão anticapitalista, até um grupo originado de consórcio entre jogo do bicho e políticos. Indicação de uma característica obviamente excepcional na história da formação de empresas, a do dinheiro sujo que se torna dinheiro limpo. É significativa a inversão do padrão nas últimas décadas: dinheiro limpo que se torna dinheiro sujo. Um sinal de decadência.

A história do capitalismo no Brasil, em particular a fascinante história das empresas e do empresariado, é muito mais um desafio interpretativo para os sociólogos do que para os economistas. Um desafio necessário porque é nele que pode estar a resposta às nossas vicissitudes econômicas, sociais e políticas.

Fernando Abrucio* - Qual Estado emerge da reforma? (1)

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Há um clamor na sociedade brasileira por maior equidade e a proposta de reforma administrativa do governo passa bem longe disso, protegendo a vanguarda do atraso

O governo Bolsonaro mandou ao Congresso sua proposta de reforma administrativa, deixando uma pergunta no ar: que tipo de Estado está sendo proposto? No projeto do Executivo há de tudo: medidas corretas (1), incongruências entre as ideias sugeridas e a prática do bolsonarismo (2), lacunas no diagnóstico (3), uma visão de futuro parcial sobre os desafios do serviço público (4) e um modelo político-institucional ambíguo em relação à democracia (5). O debate social e parlamentar tem de enfrentar cada um desses cinco aspectos e evitar que se produza um Frankenstein, que pode ter até coisas boas (e tem), mas cujo resultado agregado pode ser negativo para a cidadania.

O presente artigo é o primeiro de dois que tratarão desse complexo e estratégico tema para o aperfeiçoamento do Estado brasileiro, com grande impacto nas próximas décadas. Há um esgarçamento fiscal do país, muitas aposentadorias ocorrerão nos três entes federativos nos próximos anos, ao mesmo tempo em que é preciso melhorar o serviço público prestado à população mais carente, e é necessário enterrar o patrimonialismo e autoritarismo que estão no DNA de nossa formação.

O passo inicial do debate deve ser a definição de um modelo ideal de administração pública, a partir da combinação de dois critérios: uma visão normativa, baseada em grande medida na reflexão sobre a experiência internacional, e o diagnóstico do caso brasileiro. Neste último ponto, a questão central é olhar o “conjunto da floresta” do serviço público, e não apenas algumas de suas “árvores”.

Do ponto de vista dos valores, a experiência internacional realça três qualificações: o Estado precisa ser republicano -- com critérios claros de transparência e respeito à coisa pública -, democrático, com medidas claras de responsabilização dos governantes, além de formas de diálogo e participação social, e, como aspecto central, ter um serviço público com desempenho satisfatório para lidar com os principais desafios coletivos da nação. No caso brasileiro, por exemplo, só haverá uma gestão pública bem-sucedida se enfrentar o seu grande problema, que é a desigualdade.

É necessário também reforçar o fato de que o bom desempenho da gestão pública envolve múltiplos desafios. A pesquisa acadêmica chama esse fenômeno de os “Es” da administração pública. Desse modo, é preciso, em primeiro lugar, buscar maior economia (evitar gastos excessivos) e eficiência (fazer mais com menos) do Estado.

Inflação e populismo – Editorial | O Estado de S. Paulo

A comida encareceu, o consumidor reclamou e o governo reagiu com um showzinho eleitoral, baseado num script já desmoralizado há trinta anos

A comida encareceu, o consumidor reclamou e o governo reagiu com mais populismo. O presidente pediu patriotismo e lucro “próximo de zero” aos donos de supermercados. Em seguida, o Ministério da Justiça deu cinco dias a produtores e comerciantes para explicarem a alta de preços, acenando com multas se forem comprovados aumentos abusivos – um conceito misterioso e estranho à ciência econômica. Enfim, foi zerada a tarifa de importação do arroz, o vilão mais notório da nova crise inflacionária. Resta esperar e conferir se o produto estrangeiro de fato derrubará os preços – efeito duvidoso, se o dólar continuar muito caro. Por enquanto só se viu o showzinho eleitoral, baseado num script já desmoralizado há 30 anos.

Com tanto barulho, muita gente poderá desconfiar de um novo estouro inflacionário. Mas convém olhar alguns números. Com alta de 0,24% em agosto, 0,70% no ano e 2,44% em 12 meses, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), retrato principal da inflação, estará mesmo fora dos conformes?

Para o consumidor pouco familiarizado com estatísticas, aquele número mensal, 0,24%, é uma ficção sem sentido. Algo mais próximo da verdade talvez apareça nos detalhes. Com alta de 3,08% em agosto, o preço do arroz acumula aumento de 19,25% no ano. O do feijão subiu mais de 30% em oito meses, dependendo do tipo e da região, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

No entanto, o custo da alimentação fora de casa diminuiu 0,29% em julho e 0,11% em agosto. Mas quem se importa com isso, se menos pessoas estão comendo fora? Roupas e calçados também ficaram mais baratos, assim como a educação (descontos foram concedidos depois do fechamento de escolas). De novo, isso faz diferença?

Inflação e populismo – Editorial | Folha de S. Paulo

Alta no preços dos alimentos requer medidas racionais, não ações demagógicas

A repercussão da crise do arroz despertou um instinto essencial de Jair Bolsonaro, a demagogia. Mais do que a escassez relativa do produto e a carestia, foi o burburinho nas redes sociais e nos meios de comunicação que moveu o presidente, pois o problema já era notável havia semanas.

Bolsonaro age a seu modo. Isto é, tenta se descolar da crise, procura demonstrar dureza de modo populista, bafeja autoritarismo, toma medidas para inglês ver e assevera, ao mesmo tempo, que é um democrata e um liberal que tenta combater os inimigos do povo.

Seu governo intimou produtores, industriais e comerciantes a explicarem o aumento de preços, por exemplo, medida de resto sem resultado prático. Decerto tomou a decisão acertada, embora tardia, de facilitar importações de arroz.

Um acompanhamento mais metódico teria permitido um diálogo profissional com empresas e especialistas do ramo, de modo a tomar medidas possíveis, cabíveis e a bom termo. Mas essa seria a atitude de um governo racional.

O problema é de fato espinhoso. A inflação geral, medida pelo IPCA, está em 2,4% ao ano, das cinco mais baixas desde 1999, quando o país adotou o sistema de metas de inflação e o câmbio flutuante. A alta dos alimentos consumidos em casa, porém, está entre as 20% maiores do período, em 11,4% ao ano.

Agenda ambiental tem novos avanços no Brasil – Editorial | Valor Econômico

A agenda ambiental avança com o apoio esclarecido dos governos, ou a despeito deles

Depois de aos poucos penetrar no mundo dos investimentos, a onda verde chegou enfim a outra fronteira essencial do sistema financeiro - a supervisão, regulação e à política de empréstimos das instituições bancárias. Os bancos têm um papel vital a desempenhar, pois controlam a maior parte dos recursos que tanto podem financiar projetos que preservem o ambiente, como atividades que o destruam. No caso brasileiro, a ação dos maiores conglomerados bancários tornou-se visível na iniciativa conjunta para combater o desmatamento na Amazônia. O Banco Central deu esta semana outro passo importante para a sustentabilidade.

O presidente do BC, Roberto Campos Neto, deu continuidade a uma série de ações que haviam sido objeto de regulação pelas gestões anteriores, como a resolução 4327, do governo Dilma, que criou diretrizes para responsabilidade ambiental das instituições financeiras, e a 4557, de 2017, no governo Temer, que estabelece estruturas de gerenciamento dos riscos ambientais. Pelo menos no âmbito das autoridades monetárias - quase uma exceção - há uma sequência lógica e concatenada de ações para o mesmo fim, independente da coloração política muito diferente dos ocupantes do Planalto. É um exemplo de como deveria agir a burocracia de Estado.

O que o BC brasileiro vai fazer é mais do que cuidar de sua própria pegada de carbono, ou utilizar critérios de sustentabilidade para escolher eventuais gestores de suas reservas internacionais. O BC quer aprofundar sua supervisão e regulação às necessidades de transição para uma economia de baixo carbono. Pretende criar um documento para coleta qualitativa de informações das instituições financeiras sobre riscos socio-ambientais e climáticos de operações feitas com segmentos sensíveis. Procurará também automatizar o cruzamento destes dados com informações públicas disponíveis, como georreferenciamento. Formatará a incorporação de cenários de risco nos testes de estresse dos bancos.

Escolas foram ignoradas na flexibilização – Editorial | O Globo

Bares, praias, igrejas e academias estão lotados — e não há plano para volta às aulas de 13 milhões de alunos

Após seis meses de escolas fechadas devido à pandemia de Covid-19, cerca de 60% das redes municipais de Educação no país não criaram protocolos para a volta às aulas. Nada menos que 13,3 milhões de alunos ainda não têm data para retomar as atividades presenciais. O dado, que consta de levantamento feito pela União Brasileira de Dirigentes em Educação, Itaú Social e Unicef em 4.272 municípios (77% do total), preocupa. Admita-se que as secretarias tenham visões distintas sobre o momento ideal para a volta às aulas — sabe-se que o consenso nesse campo é difícil. Mesmo assim, não dispor ao menos de um plano com esse objetivo é desalentador.

Um estudo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) revela que, em junho, o Brasil somava 16 semanas com escolas fechadas, superando a média de países da OCDE, de 14 semanas. Em termos globais, os efeitos da suspensão das aulas serão catastróficos — e duradouros. Segundo a organização, os impactos na atividade econômica deverão durar até o fim do século, levando a uma contração de 1,5% na economia mundial ao longo do período.

Os estragos não se contam apenas em números ou cifras. Estudo do epidemiologista Wanderson de Oliveira mostra que as longas quarentenas podem causar prejuízos sérios às crianças. Agravam transtornos psicológicos, comprometem a segurança alimentar e aumentam os casos de abusos e maus-tratos.

Congresso precisa derrubar veto de Bolsonaro à desoneração da folha – Editorial | O Globo

Se a medida não for prorrogada até o final de 2021, efeito no emprego será sentido imediatamente

Tão importante quanto foram as decisões tomadas diante da paralisação brusca da economia como reflexo da pandemia, é a suspensão das políticas de emergência criadas para compensá-la. Por toda parte, imperativos fiscais impedem a perpetuação das despesas destinadas a conter os estragos de uma recessão mundial sincronizada e histórica. Assim como foi essencial agir com rapidez na hora em que o vírus começou a se alastrar, agora que a disseminação começa a ser contida, mas ainda não está controlada, é preciso ter cautela na revisão das medidas de defesa de empresas e empregos, sob risco de haver um retrocesso custoso.

É nessa revisão que estamos no Brasil. Da agenda constam itens como o destino do auxílio emergencial, do crédito a empresas pequenas e também a prorrogação da desoneração da folha de salários de 17 setores até dezembro de 2021, incluída na Medida Provisória 936 por uma emenda, depois vetada pelo presidente Bolsonaro. Caberá ao Congresso avaliar o veto em reunião na semana que vem.

Poesia | Manuel Bandeira - Recife

Há que tempo que não te vejo!
Não foi por querer, não pude.
Nesse ponto a vida me foi madastra,
Recife.
Mas não houve dia em que te não sentisse dentro de mim:
Nos ossos, os olhos, nos ouvidos, no sangue, na carne,
Recife.
Não como és hoje,
Mas como eras na minha infância,
Quando as crianças brincavam no meio da rua
(Não havia ainda automóveis)
E os adultos conversavam de cadeira nas calçadas
(Continuavas província,
Recife).
Eras um Recife sem arranha-céus, sem comunistas
Sem Arraes, e com arroz,
Muito arroz,
De água e sal,
Recife.
Um Recife ainda do tempo em que o meu avô materno
Alforriava espontaneamente
A moça preta Tomásia, sua escrava,
Que depois foi a nossa cozinheira
Até morrer,
Recife.
Ainda existirá a velha casa senhorial do Monteiro?
Meu sonho era acabar morando e morrendo
Na velha casa do Monteiro.
Já que não pode ser,
Quero, na hora da morte, estar lúcido
Para mandar a ti o meu último pensamento,
Recife.