quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Merval Pereira - O teto é o limite

- O Globo

O cobertor curto orçamentário está causando apreensão entre os políticos (alérgicos a novos impostos), ao governo, que já tem tudo para lançar um novo programa social (menos dinheiro), e nos órgãos fiscalizadores, como o Tribunal de Contas da União (TCU), que ontem alertou que o quadro fiscal do país é “gravíssimo”, na definição do ministro Bruno Dantas.  

O ministro Paulo Guedes está em busca de "tributos alternativos" para desonerar a folha de pagamentos das empresas e também encontrar “uma aterrissagem suave” do auxílio emergencial. É a maneira politicamente correta que Guedes encontrou para tentar a aprovação do imposto sobre transações digitais.  

Quanto à desoneração da folha, a troca é bem-vinda e poderá ser a chave para um acordo no Congresso, pois barateará o custo das contratações, ajudando a reduzir a taxa de desempregados. "Queremos desonerar, queremos ajudar a buscar emprego, facilitar a criação de empregos, então vamos fazer um programa de substituição tributária", disse Guedes.  

Mas, quanto ao substituto do auxílio emergencial, que o governo quer transformar em um programa de renda mínima de R$ 300, maior que o Bolsa-Família no valor e no alcance social, a conta não fecha. O teto de gastos não admite que novas receitas possam aumentar as limitações orçamentárias.  

Carlos Alberto Sardenberg - Nós entregamos conhecimento

 

- O Globo

Na imprensa séria e independente é preciso conferir

Nos 95 anos do GLOBO, tratamos aqui de um tema muito caro para nós, jornalistas. O mais caro: o que é notícia? Discutimos as várias respostas que jornalistas e veículos produziram ao longo da história, assim como as críticas do público e, sobretudo, das pessoas — como políticos e governantes— que são objeto das notícias, opiniões e comentários. Saiu no último 30 de julho.

Voltamos hoje ao tema, mas por um outro viés. Este: como a notícia é apurada e checada constantemente, várias vezes. Convém repetir a definição que está nos Princípios Editoriais do Grupo Globo: “Jornalismo é o conjunto de atividades que, seguindo certas regras e princípios, produz um primeiro conhecimento sobre fatos e pessoas. Qualquer fato e qualquer pessoa: uma crise política grave, decisões governamentais com grande impacto na sociedade, uma guerra, uma descoberta científica, um desastre ambiental, mas também a narrativa de um atropelamento numa esquina movimentada, o surgimento de um buraco na rua, a descrição de um assalto à loja da esquina, um casamento real na Europa, as novas regras para a declaração do Imposto de Renda ou mesmo a biografia das celebridades instantâneas”. Ou, acrescentamos nós, o discurso de um presidente.

“O jornalismo”, segue a definição, “é aquela atividade que permite um primeiro conhecimento de todos esses fenômenos, os complexos e os simples, com um grau aceitável de fidedignidade e correção, levando em conta o momento e as circunstâncias em que ocorrem. É, portanto, uma forma de apreensão da realidade.”

E, de novo acrescentamos, uma forma de revisitar o conhecimento dia após dia ou, nesta era de internet, momento após momento.

O presidente Bolsonaro discursou na ONU, e isso foi noticiado. Publicamos o que ele falou. Mas, na imprensa séria e independente, a notícia — o conhecimento — não para aí. É preciso conferir o que o presidente disse. O que se fez intensamente desde a divulgação do texto presidencial. Para azar do presidente.

Ascânio Seleme -Tirem os pés do meu pescoço

- O Globo

 Ruth Bader Ginsburg foi uma heroína

Ícone. Foi muito apropriado o uso deste termo por jornais para designar a juíza da Suprema Corte americana Ruth Bader Ginsburg, falecida há uma semana. RBG, como era conhecida, foi uma das mais importantes figuras da Justiça americana. Mais até do que um ícone. Uma heroína que trabalhou a vida inteira para mudar a legislação nos pontos em que discriminava a mulher. “RBG transformou os papéis de homens e mulheres na sociedade”, disse a jornalista Linda Greenhouse, que cobre a Suprema Corte americana há 30 anos para o “New York Times”.

Estudante de Direito na Universidade Harvard nos anos 50, quando a escola tinha apenas nove mulheres num grupo de 500 alunos, RBG entendeu cedo que ser mulher era obstáculo para quase tudo. Seu engajamento definitivo em favor da emancipação feminina ocorreu alguns anos depois, quando, graduada, tentou obter um emprego nos escritórios de advocacia de Nova York. Foi rejeitada por todos. “Não contratamos mulheres.” Virou professora e, depois, ativista na União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU).

Se o gatilho que disparou sua obsessão foi o fato de ela própria ter sido vítima de discriminação, é verdade que um germe já havia sido introduzido pela sua mãe, de quem ouviu um conselho que repetiu inúmeras vezes. “Seja uma dama e seja independente”. Ser uma dama significava jamais abrir mão de sua condição feminina. Ser independente queria dizer lutar por condições iguais às dos homens para se emancipar.

RBG iniciou sua carreira de advogada nos anos 70, na ACLU. Suas causas foram sempre contra leis que discriminavam mulheres. Durante anos advogou diante da própria Suprema Corte. Ela entendia que “a divisão por gêneros não ajuda a manter a mulher num pedestal, mas sim numa jaula”. Ganhou quase todas as questões que levou aos tribunais e acabou se transformando numa das maiores referências do feminismo, inspiração para homens e mulheres em todo o mundo.

Maria Hermínia Tavares* - Tragédia de erros

- Folha de S. Paulo

Subserviente a Trump, o Brasil não dá contribuição positiva à crise da Venezuela

Antes que o patético discurso do presidente na ONU lhe roubasse a cena, o chanceler Ernesto Araújo serviu de escada para que, na sexta (18), o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, em visita a Roraima, despejasse pesados ataques contra o governo ditatorial da Venezuela. Em Washington, todos sabem que suas palavras tinham como verdadeiros destinatários os eleitores do sul da Flórida, onde se concentram comunidades de exilados cubanos e venezuelanos, cujos votos serão importantes para Donald Trump.

No capítulo "Venezuela libre", do livro de memórias dos seus tempos de Casa Branca —"The Room Where It Happened" (A sala onde tudo acontecia)—, John Bolton, ex-assessor de segurança nacional de Trump, acusa seu antigo chefe de ter uma política em relação a nosso vizinho "descontroladamente errática", ditada por sua agenda pessoal e obsessão pela reeleição.

Assim, o que o ministro das Relações Exteriores considera "parceria profícua e profunda" entre Brasil e Estados Unidos é pura vassalagem. Ela destrói a relação adulta que o país havia construído com a potência do Norte, em que cabiam autonomia na defesa dos interesses nacionais quando divergentes e cooperação em muitas áreas de interesse comum.

A Venezuela vive hoje sob uma ditadura que persegue, tortura e mata opositores, que destruiu a economia e produziu enorme catástrofe social, levando quase 18% da população a buscar refúgio nos países vizinhos. Com o populismo autoritário, a Venezuela é o foco de uma crise que transbordou suas fronteiras.

Gabriela Prioli - Discurso aos iludidos

- Folha de S. Paulo

 A mentira como instrumento do abandono

Às vezes, o presidente Bolsonaro surpreende a todos. Outras não surpreende ninguém.

Em seu discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU, na terça, Bolsonaro foi exatamente o que esperávamos: colocou a culpa nos outros, espalhou teorias da conspiração e propagou inverdades já contraditas. Nada de novo sob o sol: as queimadas na Amazônia são culpa dos índios, a crise atual no Brasil é culpa da mídia e inação do seu governo frente à pandemia é culpa do Judiciário.

O Brasil é tradicionalmente o país que abre o evento máximo da ONU desde 1955, exatamente por ter se consolidado como um interlocutor respeitado por todas as partes. No passado. Atualmente, são 20 minutos de vergonha nacional, que teremos que aguentar, aparentemente, por mais dois anos.

O Brasil foi um dos fundadores da organização, em 1945, e ator crucial na escrita da Carta de São Francisco, momento em que a humanidade atingiu o seu ápice na cooperação. Nossa representante na conferência, Bertha Lutz, é creditada com a inclusão da igualdade de gênero no documento. Coitada da Bertha Lutz e coitada da igualdade de gênero.

Bruno Boghossian – Guedes e o pântano

- Folha de S. Paulo

 Ministro cede a parlamentares e abre portas de estatais para indicações políticas

Paulo Guedes não era fã de deputados e senadores quando chegou a Brasília. Apesar de ter chancelado a campanha de um candidato que havia passado três décadas no Congresso, o ministro usava a expressão "criaturas do pântano político" para se referir a grupos que "se associaram contra o povo brasileiro".

Por quase dois anos, ele se queixou desses monstrengos. Sugeriu dar uma "prensa" nos parlamentares, disse que eles não se importavam com as criancinhas e ainda rompeu com o presidente da Câmara.

Agora, algo mudou —e não foram os políticos. O ministro afirmou a aliados que vai abrir portas de estatais e outros órgãos para o centrão. Segundo uma reportagem da Folha, Guedes avisou que vai discutir com o Planalto nomes indicados pelos partidos que apoiam o governo.

Mais que uma jogada pragmática, trata-se de uma capitulação. Além de demolir de vez o discurso de Jair Bolsonaro contra o loteamento de cargos, a decisão fragiliza ainda mais a agenda de privatizações de Guedes. Ocupar empresas com políticos é a maneira mais eficaz de garantir que eles continuem por lá.

Vinicius Torres Freire - A novela dos pobres no governo Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Depois de semanas de reviravoltas, não há dinheiro para Bolsa Família gordo

Na história da TV, ficou célebre um método para dar um jeito em novelas com enredo enrolado, insolúvel e cheio de personagens: matar todo o mundo. Por enquanto, parece esse o destino da novela da criação de um Bolsa Família Verde Amarelo. Afora mágicas e milagres, não há solução a não ser matar esse plano ou matar um personagem qualquer que ainda não entrou na dança.

Além da confusão no “núcleo pobre” desse drama, há risco de a história ficar ainda mais enrolada no “núcleo politico”, pois o governo quer mesmo criar uma CPMF ou “tributos alternativos”, no dizer de Paulo Guedes.

No antepenúltimo capítulo da novela, Jair Bolsonaro proibira “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”. No penúltimo episódio, governo e parlamentares governistas teriam acertado que bancariam o Bolsa Família encorpado tirando dinheiro de quem recebe benefícios do INSS e do gasto em saúde e educação.

No capítulo desta quarta (23), Bolsonaro teria vetado o corte de aposentadorias e assemelhados, dizem deputados. Outros afirmam que a proposta de congelar o reajuste do salário mínimo não passaria mesmo (o salário mínimo é o valor do piso dos benefícios previdenciários e assistenciais). Dizem também que não aprovam o fim do reajuste obrigatório da despesa mínima em saúde e educação (isto é, da correção ao menos pela inflação). Mesmo que aprovassem a correção obrigatória, haveria reajuste de qualquer maneira.

Para recordar: o Bolsa Família encorpado não pode então ter dinheiro do fim do abono salarial, do seguro-desemprego sazonal para pescadores, do congelamento de benefícios do INSS ou de saúde e educação. Deputados vetam também, claro, qualquer mexida nos fundos constitucionais (como os que dirigem recursos às regiões).

Luiz Carlos Azedo - O imposto da reeleição

-Nas entrelinhas | Correio Braziliense

 Guedes voltou a defender a reforma tributária. Agora, pretende aumentar o peso do Estado na economia e não o contrário, como anunciou nos tempos áureos de Posto Ipiranga

Há quase um consenso no Ministério da Economia de que a antecipação do projeto de reeleição do presidente Jair Bolsonaro, em meio à pandemia, tornou-se o maior complicador da política econômica. Muito do comportamento errático do ministro Paulo Guedes decorre dessa contingência política, que não tem nada a ver com as necessidades dos agentes econômicos. Ontem, ao afirmar que indexadores não resolvem os problemas, que a solução dos mesmos é sempre política, citando as medidas de “economia de guerra” adotadas pelo Congresso, Guedes jogou a tolha: já não lidera a política econômica do governo, rendeu-se ao “dispositivo parlamentar” montado por Bolsonaro e os generais que hoje mandam na Esplanada dos Ministérios.

Os líderes do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR); no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE); e no Congresso, senador Eduardo Gomes (MDB-TO), são raposas políticas experientes, operam em conexão direta com os ministros da secretaria de Governo, general Luiz Ramos; da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas; e do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, para viabilizar desde já o projeto de reeleição de Bolsonaro, em troca de apoio nas eleições municipais para os candidatos ligados ao Centrão, o bloco político que ancora o governo no Congresso. Guedes foi engolido por esse grupo.

A política, em última instância, é a economia concentrada, mas a experiência mostra que a blindagem da política econômica é que garantiu o sucesso do Plano Real, no governo Fernando Henrique Cardoso, com o economista Pedro Malan no Ministério da Fazenda, e do governo Lula da Silva, com Guido Mantega comandando a economia. Em ambos casos, porém, o projeto de reeleição teve um custo muito alto. No governo Bolsonaro, a equipe econômica, em vez de ser blindada, está sendo implodida pelo próprio presidente da República.

Ontem, por exemplo, o “dispositivo parlamentar” — como não lembrar, com sinal trocado, do “dispositivo militar” do presidente João Goulart, que não impediu sua deposição —, anunciou junto a Guedes que o governo desistiu de manter o veto do presidente Jair Bolsonaro à prorrogação da desoneração da folha de pagamentos de 17 setores da economia intensivos em mão de obra. A decisão foi tomada porque o governo concluiu que já estava derrotado no Congresso. Guedes, que orientou o veto presidencial, é o grande perdedor. Agora, o Palácio do Planalto quer fazer do limão uma limonada. Como? Usando a derrubada do veto como justificativa para criar um novo imposto sobre operações financeiras. Ou seja, o governo pretende aumentar a carga tributária, com um imposto com efeito cascata.

Maria Cristina Fernandes - Bolsonaro e Trump em busca do inimigo externo

 

- Valor Econômico

EUA e Brasil têm os maiores cemitérios da covid, não é por acaso que coincidem no discurso

 Primeiro e maior fórum mundial desde o início da pandemia, a 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas revelou como a covid-19 não apenas moldou a visão de mundo de chefes de Estado como também a maneira como cada um pretende que a reação à doença seja vista, principalmente, em seu próprio país.

William Waack* - De quem é a culpa

- O Estado de S.Paulo

Por não entender o que acontece lá fora, governo perde guerra da comunicação

A situação internacional que o Brasil enfrenta em relação às políticas ambientais de Jair Bolsonaro é séria e perigosa. Vamos olhar o que acontece do ponto de vista da comunicação, deixando para especialistas dos vários outros setores o mérito de questões específicas.

Existe desinformação no que se diz e se publica sobre o que acontece na Amazônia e no Pantanal? Sim. Existem interesses de competidores comerciais incomodados com a capacidade brasileira de produzir grãos e proteínas? Sim. Existem organizações (partidos, ONGs, instituições religiosas) com agenda político-ideológica atacando um governo (o brasileiro) por considerá-lo seu adversário? Sim.

Nada disso é novidade nem começou com Bolsonaro. Mas o governo está sabendo enfrentar essa batalha da comunicação? Não. Faltam aos que tomam esse tipo de decisões em Brasília dois elementos fundamentais que ajudam a entender a natureza deste que é um dos maiores desastres de comunicação em escala internacional.

O primeiro elemento é a falta de compreensão do fenômeno lá fora, mas não só. Por incrível que pareça, o governo brasileiro não entendeu a abrangência, a profundidade e o peso da questão climática e ambiental na sua escala planetária. Se isto era, nos idos da Rio 92 (quando o Brasil se preparou muito bem para o que viria), uma agenda de instituições multilaterais e de governos, empurrados em parte por ONGs, hoje a questão ambiental molda nosso “Zeitgeist”, o espírito de uma época, e condiciona a percepção da realidade de gerações inteiras de atores políticos, instituições, governos, consumidores, empresários, grandes corporações no mundo inteiro.

Guilherme Casarões* - Poderia ter sido na cerca do Alvorada, mas foi na ONU

- O Estado de S.Paulo

Não bastasse o tom paroquial e conspiratório, a fala de Jair Bolsonaro foi repleta de inconsistências

Em discurso reativo e agressivo, Jair Bolsonaro responsabilizou governadores pela má condução da pandemia e atacou a imprensa por incitar o pânico ao pedir às pessoas que ficassem em casa. Ao mesmo tempo, elogiou ruralistas por respeitarem “a melhor legislação ambiental do planeta”, militares por sua participação em operações de paz, além dos liberais, responsáveis pela “comprovada confiança” do mundo no governo. Aproveitou para denunciar as inúmeras perseguições por ele sofridas, fruto de uma maligna aliança de conspiradores internacionais e brasileiros “impatrióticos”. 

Poderia ser somente um dia qualquer no cercadinho do Alvorada, mas foi a mensagem do Brasil às Nações Unidas. Não bastasse seu tom paroquial e conspiratório, a fala foi repleta de inconsistências: dados equivocados sobre comércio e investimentos, informações controversas sobre as queimadas no Pantanal e na Amazônia (que descobrimos ser culpa de “índios e caboclos”), promessas vazias sobre o compromisso brasileiro com as boas práticas internacionais. 

A cereja do bolo foi um chamado global para combater a “cristofobia”. É inegável que a perseguição a cristãos seja um problema em várias partes do mundo – como na Índia ou na Arábia Saudita, aliados de primeira hora da diplomacia bolsonarista. Mas aqui o problema é outro: enquanto católicos e evangélicos exercem livremente sua religião, minorias religiosas de matriz afro-brasileira são perseguidas pelos mesmos cristãos que reivindicam sua liberdade em nível global.

Curioso e sintomático Bolsonaro ter começado seu discurso falando sobre a importância da verdade. Uma pena que, no Brasil fantasioso narrado no palco mundial, onde pobres ganharam mil dólares de auxílio emergencial e a cloroquina curou a covid-19, a verdade seja produto em falta.

 * Professor da FGV-EAESP

Eliane Cantanhêde - O fantástico mundo bolsonarista

- O Estado de S. Paulo (23/9/2020)

O presidente Jair Bolsonaro usou a ONU para divulgar a sua realidade paralela, num discurso com pelo menos uma dúzia de afirmações controversas, meias-verdades e mentiras. Ei-las:

1) “Desde o início, alertei que tínhamos dois problemas para resolver: o vírus e o desemprego, e que ambos deveriam ser tratados simultaneamente”.

 Não é verdade. Desde o início, o presidente não tratou a pandemia como um problema gravíssimo, que mata milhares. Negou o vírus, combateu o isolamento social, confrontou orientações médicas e científicas.

2) “Parcela da imprensa brasileira politizou o vírus, disseminando o pânico entre a população. Sob o lema ‘fique em casa’ e ‘a economia a gente vê depois’, quase trouxeram o caos social ao País”.

Nada mais falso. Graças à mídia, a população teve informações fundamentais sobre o vírus e como se prevenir. Informações que o governo se recusou deliberadamente a dar.

3) “Nosso governo (...) estimulou, ouvindo profissionais de saúde, o tratamento precoce da doença”.

Em vez de OMS, Ministério da Saúde e epidemiologistas, o presidente ouviu amigos, aliados e interesseiros para propagandear a cloroquina – que não tem comprovação científica em nenhum lugar do mundo.

4) “Temos a matriz energética mais limpa e diversificada do mundo”, “preservamos 66% de nossa vegetação nativa”, “(temos) a melhor legislação ambiental do planeta”.

Graças ao quê? Aos governos anteriores, à evolução do setor agropecuário e ao Congresso, que acusam o governo justamente de ameaçar essas conquistas.

Carlos Melo* - País que se atrela a outro na ONU vira garoto de recados

- O Estado de S. Paulo (23/9/2020)

 Na inconstância e no arrebatamento de seu líder, o governo Bolsonaro é previsível e banal. Foge ao modelo de instituições eficientes, capazes de garantir segurança e perspectivas de longo prazo a cidadãos e negócios; não coordena, não conduz, não se antecipa a problemas que, antes, ele os cria.

O esdrúxulo e o voluntarismo são regras consolidadas nas quais pode-se apostar, sem risco. Foi o que se viu no discurso brasileiro na ONU. Novamente, o presidente foi previsível: lavou as mãos em relação à pandemia, vangloriou-se daquilo que não fez, desprezou a ciência. Na questão ambiental, vitimizou-se; grande injustiçado mundial.

Sua “política de tolerância zero ao crime ambiental” foi o ponto mais criativo (e irônico) do discurso.

Voltou a acusar a Venezuela, alvo preferencial de “inimigo externo” – todo regime autoritário precisa de um. Em sua cruzada medieval, denunciou suposta “cristofobia”. Adulou Donald Trump, sapateando sobre as brasas do multilateralismo. Trump exerce enorme fascínio sobre o brasileiro, que o ama e o saúda em continência, com gestos e opiniões clonadas.

Bolsonaro sabe que se Trump for derrotado em novembro, seu governo estará isolado. Por isso, incrementa doses de maior submissão. A troco do quê?

Possivelmente, nem Bolsonaro nem seu chanceler saibam ao certo, pois a reciprocidade de Trump tem sido humilhante para o Brasil. As “bases” aprovam. Mas, agarrar-se a Trump não é solução, mesmo em caso de vitória. No Concerto das Nações, o atrelamento de um país a outro o transforma num garoto de recados, sem importância. Mesmo assim, nada disso é estranho: no caleidoscópio sem lógica do universo bolsonariano, vertigem dá prazer.

  Cientista político. Professor do INSPER

Cristovam Buarque* - Grande abraço na UnB

- Correio Braziliense, 22/09/2020

 Em 2020, Brasília completa 35 anos da pioneira experiência de escolher reitor por consulta à comunidade, antes do Conselho Universitário formar a lista a ser enviada para nomeação pelo presidente da República. Em outros países, a percepção da necessidade de autonomia acadêmica faz com que a escolha do reitor seja um processo que se esgota dentro da universidade. No Brasil, a lei exige a nomeação final pelo presidente da República.

 Desde 1985, sete presidentes nomearam oito reitores por escolha da comunidade acadêmica. Todos os ministros da Educação e presidentes respeitaram o resultado dessa escolha, nomeando o primeiro da lista. Desses reitores, saíram propostas que hoje são praticadas em outras universidades, como a criação do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM), o apoio à luta antirracista, por meio das cotas, a seleção dos alunos por exame no ensino médio, como fazemos, há 22 anos, pelo Programa de Avaliação Seriada (PAS), idealizado pelo reitor Lauro Morhy e implantado pelo reitor Cláudio Todorov.

Nesses últimos 35 anos, a UnB se expandiu, criou novos campi e tem dado contribuições na formação de milhares de profissionais e na criação de trabalhos científicos e culturais. A UnB tem estado presente na cidade, no Brasil e no mundo: foi nela que nasceu a Bolsa Escola que se expandiu e virou unanimidade em prática no mundo inteiro.

Sob a gestão da atual reitora, Márcia Abrahão Moura, a UnB conseguiu atravessar um dos períodos mais críticos da economia e da política brasileira; enfrentou cortes sistemáticos de verbas e ofensas lunáticas à comunidade por parte do ministro. Ela conseguiu atravessar tão bem que foi reeleita com maioria expressiva de votos, em primeiro turno. Os candidatos preteridos no pleito decidiram não incluir seus nomes na lista formal que irá ao MEC, para evitar que o governo passe por cima da escolha da comunidade, usando a desculpa de que eles também teriam disputado a eleição e recebido votos. Esta opção dos professores demonstra a seriedade deles e o respeito ao resultado do pleito.

Apesar disso, teme-se que, pela primeira vez em 35 anos, o governo federal escolha outro nome. Esse temor decorre das decisões recentes em relação a outras universidades, onde o presidente da República e o ministro rasgaram a vontade dos professores, alunos e funcionários.

O que pensa a mídia – Opiniões / Editoriais

As consequências vêm depois – Opinião | O Estado de S. Paulo

Países europeus cobram 'ações reais imediatas' contra o desmatamento, sob pena de ver dificultada a entrada de produtos brasileiros

A França reafirmou na sexta-feira passada que rejeitará, em seu formato atual, o acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul, aprovado no ano passado, após 20 anos de negociações, mas ainda pendente de ratificação pelos Parlamentos dos países envolvidos.

O governo francês se manifestou depois de receber relatório de um grupo de especialistas sobre os riscos à biodiversidade supostamente acarretados pelo acordo. Segundo o estudo, o desmatamento nos países do Mercosul vai crescer a uma taxa de 5% ao ano nos seis anos seguintes à implantação do acordo. Os especialistas concluem que o custo ambiental supera os benefícios econômicos.

O governo brasileiro reagiu. Nota conjunta dos Ministérios das Relações Exteriores e da Agricultura negou que o acordo represente “qualquer ameaça ao meio ambiente”. Ao contrário, diz o texto: “Reforça compromissos multilaterais e agrega as melhores práticas na matéria”. Para o governo, o estudo francês carece de critérios técnicos e ignora que a pecuária brasileira ampliou sua produtividade sem aumentar a área de pastagens. Por fim, reitera o bom histórico brasileiro em políticas de conservação, destaca a modernidade do nosso Código Florestal e reafirma garantias de sustentabilidade ambiental.

Fortemente contaminada por um lado pela histeria ideológica bolsonarista, que vê conspiração em todo canto, e por outro pelo lobby de produtores concorrentes do agronegócio brasileiro, que aproveitam o discurso irresponsável do presidente Jair Bolsonaro para reivindicar mais protecionismo, a contenda tende ao infinito, neste caso, com grandes prejuízos para o Brasil. 

Por ora, o único fato incontestável, como diria o Conselheiro Acácio, é que as consequências continuam a vir depois: se tem toda a razão ao manifestar “estranheza” com um relatório que põe em dúvida os evidentes progressos de boa parte do agronegócio do País no que diz respeito à proteção dos biomas, o governo brasileiro, no entanto, está colhendo o que plantou desde que o presidente Bolsonaro assumiu com um discurso de franco menosprezo pelas questões ambientais.

Hoje, a pressão contra o Brasil não se limita a produtores franceses interessados em enfraquecer o agronegócio brasileiro. Multiplicaram-se nos últimos meses iniciativas com vista a constranger o governo Bolsonaro a agir com mais firmeza contra o desmatamento e as queimadas.

Em junho, o Parlamento holandês aprovou moção contra a ratificação do acordo da União Europeia com o Mercosul, sob a alegação de que havia risco de aumento do desmatamento da Amazônia. Na semana passada, foi a vez do Parlamento da Áustria vetar o acordo, pela mesma razão. E há alguns dias a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, disse ter “sérias dúvidas” sobre o acordo comercial, como consequência da situação na Amazônia e no Pantanal.

Além disso, um grupo de investidores internacionais expressou em carta aberta preocupação com o “desmantelamento de políticas ambientais e de direitos humanos” no Brasil. Na mesma linha, 230 organizações do agronegócio e do setor financeiro, além de ONGs ambientalistas, enviaram uma carta ao governo destacando que reduzir o desmatamento é de “fundamental importância para o País”.

Na semana passada, um grupo de oito países europeus liderados pela Alemanha também enviou carta ao governo brasileiro para cobrar “ações reais imediatas” contra o desmatamento, sob pena de ver dificultada a entrada de produtos brasileiros na Europa.

Diante disso, o governo Bolsonaro pode escolher: ou aceita que a questão ambiental há muito deixou de ser apenas pretexto para produtores europeus prejudicarem o agronegócio brasileiro, e afinal toma providências sérias para combater o desmatamento, ou continua a tratar as críticas como parte de um complô internacional contra o Brasil. A julgar pelo discurso de Bolsonaro na ONU, repleto de fantasias sobre o sucesso de seu governo na área ambiental e de denúncias paranoicas a respeito de “interesses escusos” de organizações “aproveitadoras e impatriotas”, o governo já fez sua escolha: a errada

Não é só recurso que falta ao programa Renda Brasil – Opinião | Valor Econômico

O programa Renda Brasil pareceu um remendo feito às pressas e mal feito, que se coaduna com seu caráter eleitoreiro

Poesia | Ariano Suassuna - Noturno


Têm para mim Chamados de outro mundo
as Noites perigosas e queimadas,
quando a Lua aparece mais vermelha
São turvos sonhos, Mágoas proibidas,
são Ouropéis antigos e fantasmas
que, nesse Mundo vivo e mais ardente
consumam tudo o que desejo Aqui.

Será que mais Alguém vê e escuta?

Sinto o roçar das asas Amarelas
e escuto essas Canções encantatórias
que tento, em vão, de mim desapossar.

Diluídos na velha Luz da lua,
a Quem dirigem seus terríveis cantos?

Pressinto um murmuroso esvoejar:
passaram-me por cima da cabeça
e, como um Halo escuso, te envolveram.
Eis-te no fogo, como um Fruto ardente,
a ventania me agitando em torno
esse cheiro que sai de teus cabelos.

Que vale a natureza sem teus Olhos,
ó Aquela por quem meu Sangue pulsa?

Da terra sai um cheiro bom de vida
e nossos pés a Ela estão ligados.
Deixa que teu cabelo, solto ao vento,
abrase fundamente as minhas mão…

Mas, não: a luz Escura inda te envolve,
o vento encrespa as Águas dos dois rios
e continua a ronda, o Som do fogo.

Ó meu amor, por que te ligo à Morte?

* Ariano Suassuna, em “Ariano Suassuna – Um perfil biográfico”, de Adriana Victor e Juliana Lins, Editora Zahar – 2007, p. 50. (originalmente publicado em “suplemento cultura, do Jornal do Commercio”, 7/10/1945).