sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Merval Pereira - Bananas americanas

- O Globo

O que estamos vendo nos Estados Unidos nos últimos dias é a surpreendente repetição, com anos de atraso, de situações que já vivemos aqui no Brasil no tempo em que tínhamos votação em cédulas eleitorais, contabilizadas manualmente. De acordo com a geografia da apuração, um candidato poderia sair à frente, e depois perder força. Havia, claro, fraudes, e ficou famoso, por exemplo, políticos mineiros atribuindo aos votos “da Zona da Mata” uma mudança de tendência.

Trump está surpreso com o crescimento de Biden com os votos pelo correio, e acusa fraude. Ao mesmo tempo, o presidente Bolsonaro promete aqui pressionar o Congresso pela volta da cédula eleitoral. Desde que temos as urnas eletrônicas, nunca mais houve acusações de fraude, e Bolsonaro insiste na denúncia de fraudes sem provas, como seu avatar Trump. E pretende pressionar o Congresso pela volta da cédula eleitoral.

À medida que a apuração da eleição presidencial nos Estados Unidos vai mostrando uma provável vitória do democrata Joe Biden, fica claro também que não é apenas a agenda internacional que será alterada, obrigando o governo brasileiro a se reposicionar. Também a maneira de se expressar e de tratar os adversários políticos e temas sensíveis no mundo ocidental mudará sensivelmente, o que colocará o presidente Bolsonaro no papel de espécie de político em extinção em países civilizados.

Míriam Leitão - Tempo suspenso e a democracia

- O Globo

O tempo parou nos Estados Unidos. O tempo parou no mundo. Por quase dois dias, intermináveis horas, os ponteiros marcando o número de votos dos candidatos ficaram congelados em 253 e 214, enquanto a apuração seguia em câmera lenta em cinco decisivos estados. Foi impossível não ser capturado por esse cipoal de regras estaduais, de tendências políticas de condados, do debate sobre os votos pelo correio ou presenciais. Toda eleição americana atrai atenção, esta parece ser uma decisão sobre o fim do mundo. A mais consequential eleição do nosso tempo, como definiu a revista “Economist”. O que a torna tão dramática atende pelo nome de Donald Trump.

Trump está disposto a ser até o fim um perigo para a democracia americana. Num discurso patético e criminoso, disse que a eleição está sendo roubada e que vai à Suprema Corte. Ele escalou a guerra jurídica, aumentou o tom das acusações de fraudes, sem qualquer evidência, continuou corroendo a credibilidade das instituições junto aos seus eleitores. Quanto mais o candidato democrata Joe Biden foi ampliando suas chances, mais Trump elevava sua reação, dando trabalho ao Twitter de ir retirando seus conteúdos com a explicação de que eles desinformavam sobre a eleição e o processo cívico. Quando alguém poderia imaginar uma rede social tendo que eliminar conteúdo de um presidente dos Estados Unidos por ele estar atacando o processo cívico de uma eleição?

Bernardo Mello Franco - Medo e delírio na Casa Branca

- O Globo

Donald Trump já havia indicado que não deixaria o poder facilmente. Ontem, ele mostrou que é capaz de implodir a democracia americana para não reconhecer uma possível derrota.

Em desvantagem na apuração, o presidente dos Estados Unidos atentou contra o sistema que o elegeu em 2016. Sem qualquer base factual, ele alegou que a disputa deste ano estaria sendo roubada.

Em mais um abuso de poder, o republicano fez as declarações falsas na sala de imprensa da Casa Branca. Usou a estrutura e os símbolos da Presidência para difundir mentiras em interesse próprio.

Trump alegou que os votos enviados pelo correio, de acordo com as regras do jogo, seriam “ilegais”. O motivo é conhecido: os eleitores democratas aderiram em peso a essa modalidade de voto.

Dora Kramer - Reféns da insensatez

- Revista Veja

Ainda é cedo para vislumbrar um esfriamento nos ânimos

Começam a aparecer aqui e ali, na imprensa e nas redes, análises dando conta da existência de sinais de que o ambiente geral de ânimos acirrados estaria cedendo espaço à moderação nas relações políticas. Por essa perspectiva, as pessoas estariam cansadas da radicalização na maneira de externar pontos de vista e um tanto mais dispostas a não transformar divergências em guerras de fim do mundo.

Em boa medida baseada na expectativa de que os americanos dariam uma demonstração acachapante de repúdio a um governante do tipo de Donald Trump, essa impressão por aqui se sustenta no fraco desempenho nas capitais (por ora medido apenas nas pesquisas de intenção de voto) dos candidatos apoiados por Jair Bolsonaro e pelo PT às eleições municipais do próximo dia 15.

Confirmado o fracasso eleitoral dos polos antagônicos da eleição de 2018, a projeção para a disputa presidencial de 2022 seria a tendência de prevalecer o centro, aí entendido como o campo da moderação, do bom senso, enfim, da racionalidade. Vou aqui deixar de lado uma predisposição algo obsessiva ao otimismo para discordar. Ou melhor, ponderar que há precipitação e mais desejo do que senso de realidade nessa suposição sobre a adesão da maioria à sensatez.

Ricardo Noblat - Trump despede-se reafirmando seu desprezo pela democracia

- Blog do Noblat | Veja

Biden avança e poderá ser eleito hoje

Nada pior para a democracia do que o eleitor concluir que seu voto não vale nada. Se não vale, por quê coonestar uma farsa? A mais recente contribuição do presidente Donald Trump para enfraquecer a democracia em seu país foi seu triste e melancólico discurso feito ontem no início da noite.

Pouco antes, Joe Biden, o candidato Democrata que poderá ser eleito nas próximas horas, pedira calma aos americanos impacientes com a demora na apuração dos votos. Sua fala foi curta. Mas nela houve espaço para que Biden dissesse que “ninguém vai nos tirar nossa democracia, nem agora nem nunca”.

Em contraste com o pronunciamento de estadista de Biden, Trump escandalizou o mundo ao apontar fraude na eleição que estava preste a perder. O presidente afirmou que a eleição está sendo roubada e chamou seus adversários de corruptos. Voltou a pedir à justiça que interrompa a apuração dos votos. Patético.

A América admira vencedores. Quem perde merece desprezo. Candidato derrotado vira um pato manco até transferir o cargo ao seu sucessor. Depois sequer pato ele é. Os principais líderes republicanos evitaram comentar o discurso de Trump. Nenhum até esta manhã o havia endossado.

Luiz Carlos Azedo - Hora de cair na real

- Correio Braziliense

O governo está desorientado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, parece enveredar pelo “quanto pior, melhor”, para prorrogar a “economia de guerra”

Vinte e quatro horas passaram-se, e as eleições para a Presidência dos Estados Unidos continuam no rumo de uma crise institucional, porque Donald Trump não quer sair da Casa Branca como derrotado e, por isso, constrói uma narrativa de que a votação de Joe Biden foi fraudada. Desde ontem, a contagem dos votos estava 264 a 214, faltando apenas seis delegados para o desfecho já previsível — a vitória de Biden —, mas a chicana republicana, além de atrasar o resultado final e acirrar a tensão social, pode resultar na sobrevivência do trumpismo como robusta força de oposição, negacionista, ainda mais antidemocrática e reacionária. Não devemos subestimar esse fato aqui no Brasil, porque isso se reproduzirá como discurso da ala ideológica do governo Bolsonaro.

Amplos setores da sociedade e uma parte significativa do governo torcem por Biden, na esperança de que isso signifique uma mudança de rota na nossa diplomacia e na política ambiental. “O homem é o homem e a sua circunstância”, dizia o filósofo espanhol José Ortega e Gasset, 100 anos atrás. Bolsonaro precisa cair na real de que a situação na economia é perigosa e tanto a política externa quanto a ambiental complicam desnecessariamente a vida de nossos agentes econômicos. O Brasil está em apuros financeiros, a conta da pandemia do novo coronavírus está chegando a passos de ganso. O governo está desorientado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, parece enveredar pelo “quanto pior, melhor”, para prorrogar a “economia de guerra” e fugir à responsabilidade do ajuste nas contas públicas.

Murillo de Aragão - As fogueiras de Brasília

- Revista Veja

Conflitos dentro do governo apontam para uma grave disfunção

A temporada de chuvas chega a Brasília, mas não apaga as fogueiras do mundo político, que continuam ardendo, altas. São inúmeras e algumas mais do que conhecidas e envolvem setores críticos do governo.

Um exemplo é a que marca o relacionamento dos ministros da Economia, Paulo Guedes, e do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. Outras são mais recentes, como no caso da rixa entre o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência da República, general Luiz Eduardo Ramos.

Os focos de incêndio prosseguem com entreveros entre o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), e o mesmo general Luiz Eduardo Ramos, por causa da coordenação política. E também entre o ministro-chefe da Casa Civil, Braga Netto, e demais ministros, devido à forma como ele conduz o relacionamento no ministério.

Ainda que existam aspectos pontuais nessas dissensões, o conjunto de conflitos revela divisões estruturais dentro do governo que apontam para uma grave disfunção. E duas perguntas emergem desse contexto: por que as fogueiras ardem e quais as suas consequências?

César Felício - Turbulência em qualquer cenário

- Valor Econômico

Eleição americana pode radicalizar o bolsonarismo

A próxima Presidência americana trará consequências para o bolsonarismo no Brasil, em qualquer cenário. A vitória de Bolsonaro em 2018 decorreu de vários fatores e um deles foi a ascensão da direita nos Estados Unidos, alavancada, sobretudo, pela habilidade no uso de redes sociais.

Até o momento em que essa coluna é escrita, não há certeza sobre quem estará na Casa Branca a partir de janeiro do próximo ano. Tenha o desfecho que tiver a contenda entre republicanos e democratas, Donald Trump pode ter cruzado uma linha vermelha, ao buscar o Judiciário para tentar se manter no poder.

Se reeleito em um pleito decidido na Suprema Corte, com intervenções judiciais não apenas em um Estado, como se deu na Flórida em 2000, durante a eleição presidencial de George W.Bush, o presidente atual tende a ser muito contestado nas ruas.

Terá um déficit de legitimidade insanável que pode desencadear uma radicalização, com reflexos no Brasil.

Caso seja derrotado, Trump planta a semente de uma possível candidatura presidencial em 2024 - ele estará legalmente habilitado a fazê-lo - e conduzirá um exército de apoiadores que passará a descrer do sistema eleitoral como solução política. As tribos de Trump e de Bolsonaro se confundem.

Fernando Abrucio* - Bolsonaro não aprendeu nada com a história

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

A cada dia que passa, Bolsonaro mostra que não entendeu nada do que aconteceu no Brasil nos últimos anos

O bom governante é o que aprende com a história. Essa é uma máxima que deveria estar na porta de entrada de todos os palácios e sedes governamentais. Tal ensinamento se tornou ainda mais relevante com a eleição de 2018, quando venceu a ideia de que viria algo completamente novo que substituiria a velha política. Só que a mudança só se torna factível se a liderança política sabe o quê e como mudar, e apenas quem tem efetivo conhecimento histórico pode realizar essa transformação. O problema atual é que, a cada dia que passa, o presidente Bolsonaro mostra que não entendeu nada do que aconteceu no Brasil nos últimos anos, tanto no campo político como nas políticas públicas.

A própria definição de Bolsonaro como novidade, tal qual apareceu na última eleição presidencial, foi um engodo. É preciso desmistificar essa ideia, uma vez que ele foi deputado federal por quase 30 anos e não esteve na linha de frente de nenhuma proposta séria de transformação do país. No máximo, dizia que o regime militar errou por não ter fuzilado mais umas 30.000 pessoas.

Quando o país entrou numa enorme crise política e econômica, iniciada em 2013, a sociedade começou a rejeitar o sistema partidário que fora hegemônico por pouco mais de 20 anos, desde o impeachment de Collor. Foi aí que surgiu o espaço para uma liderança que defendesse a mudança completa do país. O eleitorado majoritário não olhou para o passado de Bolsonaro e acreditou que ele seria uma ruptura positiva. O fato é que essa massa enorme de eleitores, muitos com ódio do petismo e outros sentindo-se descontentes com as alternativas de centro-esquerda e centro-direita, comprou gato por lebre, como se diz popularmente. Na verdade, a melhor expressão para definir essa escolha eleitoral é outra: quem votou em Bolsonaro comprou o velho por novo.

José de Souza Martins* - A ciência em perigo

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

O empenho do governador de SP em revogar conquistas emblemáticas dos cientistas e dos educadores mostra que ele toma o partido dos inimigos de São Paulo e do Brasil modernos

O governador João Doria (PSDB) insiste em propor à Assembleia Legislativa medidas que afetam o orçamento e talham recursos vitais da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e, também, das três universidades estaduais paulistas - USP, Unesp e Unicamp. A vulnerabilidade do Legislativo aumenta o risco.

Ele se ilude e claramente é iludido por orientadores que lhe dizem que os saldos não utilizados por essas instituições são dinheiro sobrando. Isso é completo desconhecimento do que é o período de referência da ciência e da formação de cientistas e educadores.

O ano de referência desses dispêndios não é o ano civil, a não ser nominalmente. É o período dos compromissos assumidos com projetos de pesquisa e bolsas de estudos para formação de novos pesquisadores. Normalmente, o período é de vários anos.

A verba contratada com a instituição de pesquisa que dela precisa e com o pesquisador ou bolsista tem que ficar assegurada desde a contratação. O lúcido governador Carvalho Pinto (1910-1987), que criou a Fapesp, já incluíra na lei respectiva a disposição de que as sobras constituem parte integrante dos seus recursos.

Bruno Boghossian – Jair e o candidato que derrete

- Folha de S. Paulo

Agenda conservadora e exploração da máquina do governo não deram resultado para apadrinhados

Há um mês, Jair Bolsonaro desembarcou em Congonhas para uma sessão de fotos com Celso Russomanno (Republicanos), que liderava a corrida pela Prefeitura de São Paulo. O presidente declarou apoio ao "amigo de velha data", e os dois insinuaram que o candidato teria acesso privilegiado ao Palácio do Planalto se vencesse a disputa.

A aliança se mostrou desastrosa para a dupla por enquanto. Russomanno perdeu quase metade de seus pontos nas pesquisas de intenção de voto e viu dobrar seu índice de rejeição. Já Bolsonaro, que pretendia evitar desgastes nas eleições deste ano, ficou associado a um candidato que desabou da liderança e, agora, pode ficar fora do segundo turno.

Vinicius Torres Freire – Para quando Bolsonaro voltar das férias

- Folha de S. Paulo

Eleições nos EUA e aqui permitem que governo ignore o furacão de problemas que virá

Faz semanas, Jair Bolsonaro está em férias do seu desgoverno. Quer dizer, não tem sido nem ao menos obrigado a deixar de tomar decisões sobre assuntos cruciais ou ignorá-los, que é o seu padrão habitual de conduta.

O mundo está distraído pela situação horrorosa dos Estados Unidos e os parlamentares brasileiros estão ocupados com eleições municipais e de conchavos para a escolha do comando do Congresso em 2021 e de novos ministros. Nas votações que ainda acontecem, deputados e senadores fazem mais ou menos o que querem.

A folga vai acabar. A distração maior pode passar, caso os Estados Unidos não entrem em convulsão. Daqui a dois domingos, no dia 15, acaba a eleição municipal na maior parte do país, embora restem algumas segundas rodadas.

Então, haverá problemas a resolver, como o Orçamento de 2021; como manter (ou não) o teto de gastos, o auxílio para os muitos pobres extras que a calamidade econômica e sanitária deixará, para nem falar de uma política racional de vacinação, se houver vacina (mais improvável ainda é que haja razão). Há mais, mas passemos, por ora.

Reinaldo Azevedo - A democracia e as mulheres sob ataque

- Folha de S. Paulo

Ascensão da extrema direita populista, ancorada nas redes sociais, traz desafio

O único regime, já escrevi aqui, em que tudo pode é a tirania. Assim é para o próprio tirano e para os seus amigos. A democracia tem interdições. E aí está o busílis. A ascensão da extrema direita populista, ancorada nas redes sociais, traz um desafio.

Não raro, sólidas reputações liberais, inclusive neste jornal, confundem, por exemplo, a prática de crimes com a liberdade de expressão, pedra angular da civilidade. E tal confusão é um caminho muito curto para que se tome a liberdade de expressão por um crime.

Assim tem sido nos Estados Unidos, no Brasil e em toda a parte em que a democracia ainda resiste. O momento é delicado. O sistema tem sido refém de uma leitura liberticida de suas próprias premissas. Há uma pergunta, que não é recente, mas que está ainda a pedir resposta adequada: a democracia deve tolerar a ação daqueles que se aproveitam de suas garantias para solapá-la caso cheguem ao poder?

Angela Alonso* - Metamorfose pela metade

- Folha de S. Paulo

Neste mundo kafkaniano, Donald Trump não é um Gregor Samsa solitário

Na noite eleitoral de 2016, muitos norte-americanos foram dormir sonhando com uma mulher na presidência. Despertaram de um sonho intranquilo, com o presidente metamorfoseado num Trump gigantesco. Quem achava que este 3 de novembro daria fim ao pesadelo, entrou em insônia prolongada.

E, em vez de sediar a ansiada marcha dos civilizados sobre os bárbaros, a quarta foi de cinzas, entre festa e ressaca. Na quinta, Biden, tudo indica, venceu; mudará a configuração política do planeta. Não é pouco. Mas foi por pouco. Governará no meio a meio, Câmara e Senado partidos, Suprema Corte adversa.

As urnas atestaram o tamanho do apoio à pessoa, aos valores e às atitudes do presidente. Depois de quatro anos sob sua égide, o inaceitável para a metade azul soou bom o bastante para a vermelha. Trump perdeu a rodada, mas o conservadorismo ostentou seu enraizamento.

A derrota é tranco para adeptos do "make my country great again" mundo afora, mas não é antídoto que reponha o Ocidente no jazz de Clinton-Blair. Embora Trump fosse sua face mais vistosa, uma rede internacional de extrema direita se desenvolve desde a valsa Reagan-Thatcher.

Hélio Schwartsman - O que deu errado?

- Folha de S. Paulo

Trump driblou os caciques para ser indicado pelos republicanos à Presidência

Donald Trump não perdeu de lavada. O que isso diz sobre os EUA em particular e sobre o mundo em geral? Não faltavam motivos para votar contra o presidente americano. Para começo de conversa, ele é um mentiroso compulsivo que não tem o menor respeito por minorias nem pelas instituições, incluindo a própria democracia.

Como se não bastasse, sua gestão foi um fracasso frente à pandemia de Covid-19, tendo transformado os EUA num dos países mais mortíferos do planeta. A economia, que poderia ser uma razão plausível para votar em Trump, ia bem até a chegada do vírus, mas, desde então, entrou em forte recessão.

Ruy Castro* - Manual de trampolinagem

- Folha de S. Paulo

Carbono de Trump, Bolsonaro está atento às lições do mestre da trapaça política

Em 1983, o colunista Zózimo Barrozo do Amaral noticiou que o empresário americano Donald Trump e o libanês-brasileiro Naji Nahas estavam se associando numa empreitada. A firma ainda não tinha nome. Zózimo, conhecedor das vísceras da dupla e pela eufonia de seus nomes, sugeriu: "Trampolinagem". Você sabe: golpe, mentira, trapaça.

Era 1983, lembre-se. Seis anos depois, em 1989, os negócios de Naji Nahas quebraram a Bolsa de Valores do Rio. Ela nunca mais voltou a existir. E, agora, ao tentar ganhar uma eleição no grito, Donald Trump pode estar quebrando a espinha dos EUA.

Em Brasília, do banquinho onde se senta sobre as traseiras e saliva ao ouvir a voz do dono, Jair Bolsonaro acompanha, temeroso e extasiado, a eleição americana. Por um lado, o resultado das urnas o assusta --é uma amostra do que também pode esperá-lo por aqui, embora ele, precavido, esteja dedicando todo o seu primeiro mandato a fazer campanha com dinheiro público para assegurar um segundo mandato. Por outro, está recebendo uma aula de trampolinagem eleitoral, à base de coices na democracia.

Eliane Cantanhêde - Caindo na real

- O Estado de S.Paulo

Se Trump perder, arrasta junto a política externa e os delírios internacionais de Bolsonaro

O Brasil é o Brasil, o presidente Jair Bolsonaro é o presidente Jair Bolsonaro. O que é bom para o Brasil não é necessariamente bom para Bolsonaro e a recíproca é verdadeira. Aliás, muitas vezes é o oposto. O risco de derrota de Donald Trump é também de Bolsonaro, com sua política externa e seus delírios ideológicos, mas não para o Brasil, que lucra com um mundo melhor.

Com Trump e os Estados Unidos era uma coisa, sem ambos é outra. O projeto de um mundo de extrema direita vira um sonho (ou pesadelo) de uma noite de verão. É hora de acordar e cair na realidade – que, aliás, não está fácil, com pandemia, economia quebrada, dívida pública descontrolada e milhões de desempregados. O caos não é ideológico, é real.

Em 2018, após a vitória do pai, o deputado Eduardo Bolsonaro patrocinou a Cúpula Conservadora das Américas, em Foz do Iguaçu, como contraponto ao Foro de São Paulo, das esquerdas, mas a sociedade não deu bola para um nem para o outro. Em 2019, no primeiro ano de governo, ele voltou à carga, anunciando “o maior evento conservador do mundo” em São Paulo, mas só se ficou sabendo que o filho 03 foi recebido aos gritos de “mitinho” e que o seu guru só apareceu no telão, direto da Virgínia.

Pedro Doria – O golpe de Trump e as redes

- O Estado de S. Paulo

Nesta semana, um presidente americano tentou impedir que votos fossem contados. Isto tem nome. É golpe de Estado.

É inevitável, nesta semana eleitoral americana, que nos debrucemos sobre a constatação de que mudou de vez a maneira como se portam as plataformas de redes sociais. FacebookInstagram Twitter agiram ativamente para conter a circulação e alertar os usuários a respeito das tentativas de inflamar a população e dos ataques frontais aos ritos democráticos pelo presidente americano, Donald Trump. A ação não surpreende — já haviam anunciado que fariam isso. A decisão é responsável. É também polêmica. Por um motivo muito simples: é uma decisão editorial. Uma decisão de editor.

A questão fundamental aqui é simples: o que é uma rede social? Melhor começar pelo que não é. Parece, mas não é a praça pública. Embora seja um ambiente no qual muitos de nós nos reunimos para conversar sobre o que é do interesse da sociedade ou mesmo nos informarmos, embora elas até pareçam com uma versão digital da praça pública, elas não são um bem coletivo. O problema não é nem que tenham dono, que sejam privadas. O problema é que seu controle é planetariamente concentrado nas mãos de poucos. O ideal é que tivéssemos muitas redes sociais e nenhuma fosse dominante, que todas fossem de donos distintos e que portanto seu impacto total fosse distribuído. Que a decisão de um destes donos não tivesse capacidade de estragos imensos na sociedade. Não é assim, infelizmente.

Carlos Melo* - Qual a razão da força de Trump?

- O Estado de S. Paulo

A força do mal-estar dos excluídos pela 4ª Revolução é que faz Trump ousar e contestar.

Goste-se ou não, Donald Trump é um forte. Pois, posto à sabatina do manuais da política, fez tudo ao contrário do que se pode esperar de um presidente de um grande país: governou basicamente para seus eleitores; fragmentou ao invés de agregar; açulou o ódio racial, o hedonismo, a arrogância. Criou mais confusões do que concórdia, não deu caminhos de solução para os problemas; não apontou saídas para os impasses de uma sociedade perdida na transição entre a velha e a nova economias. E, ainda assim, Donald Trump chegou longe, a ponto de, desde o início da apuração, deixar analistas assustados com a hipótese de mais uma surpreendente vitória. Seu desempenho é melhor do que muita gente esperava.

Qual a razão dessa força de Donald Trump? Seu poder não brota de qualidades pessoais, certamente. Ela não reside no seu carisma duvidoso; na rudeza de seus gestos ou na estreiteza de sua sofisticação intelectual. No palco da grande política mundial, Trump não passa da categoria de canastrão incapaz de ombrear-se com grandes nomes da história – a comparação que tentou forjar com Abraham Lincoln soou risível. Seus atos e seu texto são limitados, voltados para o público do que os próprios americanos chamariam de soap opera, novelas e dramalhões de gosto duvidoso.

Flávia Oliveira - Esplendor da diversidade

- O Globo

Como os EUA, o Brasil também anda repartido entre retroceder ou avançar na agenda de direitos civis

Em tempos de democracias ameaçadas, bom saber que, em 120 anos, nunca tantos — e tão diferentes — eleitores votaram nos Estados Unidos do pleito facultativo. A Universidade da Flórida estimou que pelo menos 160 milhões de pessoas participaram da eleição presidencial. O comparecimento de dois em cada três eleitores é o maior desde a virada do século XX, com pandemia, com tudo. Um feito. No voto popular, Joe Biden tornou-se o candidato à Casa Branca mais votado da História, escolha de quase 73 milhões de eleitores; o presidente Donald Trump ultrapassou a própria marca e alcançou 69 milhões de votos. A diferença pequena entre o democrata e o republicano é evidência de que foi a polarização o combustível da participação recorde do eleitorado. Significa que, quando sair da apuração, o país estará mais dividido que nunca. E dará esse recado ao mundo.

Impressiona o engajamento a Trump numa campanha, para ficar em dois grandes temas, ancorada na inépcia de uma gestão federal que deixou os EUA, o país mais rico do mundo, serem o primeiro em mortes pela Covid-19; e na leniência do presidente da República com movimentos de supremacia branca e criminalização das manifestações antirracistas, as maiores em meio século. Em discurso na convenção democrata, transmitido do Museu da Revolução Americana, na Filadélfia, o ex-presidente Barack Obama foi direto: “O que está em jogo agora é nossa democracia”.

Nelson Motta - Ouro negro

- O Globo

No Brasil, quando não é ostensivo e explícito, o racismo é disfarçado

De Machado de Assis a Pelé, o Brasil é negro da cabeça aos pés. Até os racistas sabem disso. De Pixinguinha a Ismael Silva, a Cartola, a Paulinho, a Gil, a Djavan, a Tim Maia, a Jorge Benjor, foi construída a música brasileira que divertiu e alegrou o mundo. É incontável a lista de brasileiros negros que contribuíram decisivamente para nossa identidade cultural, muitos ainda escondidos na História oficial. Um avanço é que muitos brasileiros estão deixando de se declarar pardos, ou mulatos, para se assumirem como negros no Censo do IBGE. Os programas de cotas estão funcionando. E o racismo nunca foi um tema tão discutido no Brasil. Novas estrelas negras surgem no jornalismo e nas artes.

Desmoralizada a farsa da harmonia racial, apesar de a grande maioria da população ser afrodescendente, o Brasil ainda é um dos países mais racistas do Ocidente. Nos Estados Unidos, com 12% da população, os negros conquistaram muito mais espaço, poder, dinheiro e prestígio em muitos setores da sociedade. Tiveram até o presidente Obama e ainda enfrentam problemas crônicos de violência policial. Mas lá quem não é branco, preto é, não há mulatos.

O QUE A MÍDIA PENSA – Opiniões / Editoriais

O resgate da democracia – Opinião | O Estado de S. Paulo

Joe Biden lembrou em seu pronunciamento que a disputa eleitoral é o momento em que o povo é soberano para escolher seu governante.

Em discurso de estadista, o candidato democrata à presidência dos Estados Unidos, Joe Biden, disse que “ninguém vai nos tirar nossa democracia, nem agora nem nunca”. Foi um pronunciamento destinado a relembrar que a disputa eleitoral, numa democracia, não é uma guerra em que o adversário deve ser aniquilado, mas o momento em que o povo é soberano para escolher seu governante. 

Para que esse processo seja legítimo, enfatizou Joe Biden, “todo voto tem de ser contado”. Parece uma obviedade, mas não é: quando o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tudo faz para interromper a contagem que indica sua derrota e denuncia, sem qualquer prova, uma suposta fraude nos votos já contados, é preciso lembrar do que é feita a democracia, conceito que é estranho a Trump e, infelizmente, a muita gente nos Estados Unidos – como mostra a expressiva votação que o atual presidente obteve.

Por isso, fez muito bem o candidato Joe Biden ao enfatizar que, se confirmada sua eleição, ganhará “como democrata”, em referência a seu partido, mas governará “como presidente”. E declarou: “Temos que nos ouvir uns aos outros, respeitar e cuidar uns dos outros, nos unir como nação. Sei que não será fácil. Sei como são profundas as diferenças, mas sei que, para progredirmos, precisamos parar de tratar os oponentes como inimigos”.

Trata-se de uma mensagem poderosa, uma brisa de bom senso em meio à tormenta autoritária que tomou os Estados Unidos desde a eleição de Donald Trump, há quatro anos. Nada disso significa, contudo, que o horizonte político norte-americano se desanuviará no curto prazo, pois as condições que possibilitaram a ascensão do populismo destrutivo de Donald Trump se mantêm.

Há uma imensa massa de norte-americanos que se consideram esquecidos pelo establishment político e econômico. São cidadãos ressentidos, predispostos a crer que são vítimas do “sistema” representado por Washington e Wall Street e que se sentem desrespeitados por minorias que desafiam seus valores conservadores para ganhar espaço político e impor sua agenda.

Poesia | Castro Alves - O livro e a América

Ao Grêmio Literário

Talhado para as grandezas,
P'ra crescer, criar, subir,
O Novo Mundo nos músculos
Sente a seiva do porvir.
— Estatuário de colossos —
Cansado doutros esboços
Disse um dia Jeová:
"Vai, Colombo, abre a cortina
"Da minha eterna oficina...
"Tira a América de lá".

Molhado inda do dilúvio,
Qual Tritão descomunal,
O continente desperta
No concerto universal.
Dos oceanos em tropa
Um — traz-lhe as artes da Europa,
outro — as bagas de Ceilão...
E os Andes petrificados,
Como braços levantados,
Lhe apontam para a amplidão.

(...)

Por uma fatalidade
Dessas que descem de além,
O sec'lo, que viu Colombo,
Viu Gutenberg também.
Quando no tosco estaleiro
Da Alemanha o velho obreiro
A ave da imprensa gerou...
O Genovês salta os mares...
Busca um ninho entre os palmares
E a pátria da imprensa achou...

Por isso na impaciência
Desta sede de saber,
Como as aves do deserto —
As almas buscam beber...
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe — que faz a palma,
É chuva — que faz o mar.

Vós, que o templo das idéias
Largo — abris às multidões,
P'ra o batismo luminoso
Das grandes revoluções,
Agora que o trem de ferro
Acorda o tigre no cerro
E espanta os caboclos nus,
Fazei desse "rei dos ventos"
— Ginete dos pensamentos,
— Arauto da grande luz!...

Bravo! a quem salva o futuro
Fecundando a multidão!...
Num poema amortalhada
Nunca morre uma nação.
Como Goethe moribundo
Brada "Luz!" o Novo Mundo
num brado de Briaréu...
Luz! pois, no vale e na serra...
Que, se a luz rola na terra,
Deus colhe gênios no céu!...