Valor Econômico
A um mês de seu centenário, Edgar Morin
esbanja incomparável agilidade cognitiva
Se um inverno nuclear, ou cibernético,
puder ser evitado, demorará bem menos do que se imagina para que boa parte dos
humanos possa comemorar suas 120 ou 130 primaveras. Já se considera certeza que
metade das atuais crianças americanas chegue aos 104 e metade das japonesas,
aos 115.
A dúvida é quantas permanecerão lúcidas.
Continua a ser raríssimo que alguém se aproxime dos 100 em razoável gozo de
suas qualidades mentais. Motivo para que seja tão admirável a longa entrevista
concedida por Edgar Morin ao melhor programa da televisão francesa - “La Grande
Librairie” -, no último dia 9.
A um mês de seu centenário, no dia 8 de
julho, ele esbanjou incomparável agilidade cognitiva ao discorrer sobre o mais
recente de seus setenta livros: “Lições de um século de vida”, já lançado pela
editora Denoël. Uma poderosa síntese de seu percurso intelectual, exemplarmente
transdisciplinar.
Muita hesitação precedeu a redação desta coluna, que só pode ser de agradecimento, além de homenagem. Pois é impossível dar conta, neste espaço do Valor, da importância de suas contribuições científicas, filosóficas, antropológicas, sociológicas, pedagógicas, mas, sobretudo, epistemológicas.
Claro, o ideal seria conseguir atrair mais
candidatos à leitura dos seis volumes de “O Método”, que tratam,
respectivamente, da natureza, da vida, do conhecimento, das ideias, da
humanidade e da ética. Publicados entre 1977 e 2004, estão todos traduzidos e
organizados, em coleção, pela Editora Sulina.
Porém, quantos mortais viriam a encarar tão
difíceis 2.500 páginas? Quantos já o teriam feito? Simples busca virtual por
teses e dissertações indica que foram raríssimos os pesquisadores a se
aventurarem pelo cerne teórico do imenso feixe de análises oferecido por Morin.
Então, melhor é indicar algo bem mais
acessível, capaz de encorajar mergulhos mais profundos. Por tal critério, a
recomendação só pode ser o livro “Meu Caminho”, traduzido por Edgard de Assis
Carvalho e Mariza Perassi Bosco (Bertrand Brasil, 2010).
Não há melhor introdução à monumental obra
de Morin do que estas treze entrevistas, concedidas, em 2008, à jornalista
Djénane Tager. Em linguagem coloquial, estão realçadas suas contribuições
sociológicas, os estudos de física e biologia que o levaram à teoria da
complexidade, a justificativa da escolha do termo “método”, sua maneira de
analisar o estado do mundo, sua visão da educação do futuro. Tudo em meio a
reflexões sobre a vida e a morte.
No epílogo, diz que sua existência parece
ter se desenrolado em ciclos de dez anos. A começar por 1931, quando a morte da
mãe o alçou a outra vida, e, em 1941, quando, aos vinte, preferiu arriscar-se à
morte como resistente antinazista, em vez de mera e medíocre sobrevivência.
Em 1951, aos 30, rompeu definitivamente com
o comunismo, depois de seis anos de traumática convivência com companheiros de
guerra que haviam se tornado estalinistas. Aliás, sua Autocrítica, que só
conseguiu redigir em 1958, continua a ser o melhor imunizante a quem se deixar
empolgar pelo lado utópico de Marx, em vez de estudar suas contribuições
científicas.
Em 1961, descobre a América Latina e, logo
depois, de passagem por Nova York, se vê à beira da morte, em leito do hospital
Monte Sinai. Ao sair do coma, literalmente “renasce”.
Em 1971, na Califórnia, emerge o projeto de
“O Método”, ao concluir pesquisa no Instituto Salk de Biologia. Só que, aí, seu
relato dá um salto para 1991, quando a implosão da União Soviética e novo surto
da globalização o levam a publicar “Terra-Pátria” (Sulina, 1995) e “Rumo ao
abismo?” (Bertrand, 2011).
Pode-se acrescentar, porém, que, em 1981,
recebeu a mais elevada distinção honorífica francesa, a “Légion d’honneur” e,
em 2001, a Medalha Aristóteles, da Unesco. E que, em 2011, publicou seu livro
mais estratégico: “A Via para o Futuro da Humanidade” (Bertrand Brasil).
Não há como deixar de torcer, portanto,
para que a safra de 2021 também dê início a outro ciclo decenal. Ao menos é
este o espírito de inúmeras iniciativas de comemoração do centenário.
Principalmente, nas dezenas de países com universidades que lhe concederam
títulos honoris-causa.
Por aqui, estão indo para as livrarias duas
coletâneas, precedidas por grande evento virtual, articulado pela instituição
que mais se dedica à divulgação dos pensamentos de Edgar Morin, o Sesc-SP.
Nesta segunda 28 de junho, Danilo Santos de Miranda o acolherá na abertura de
duas jornadas voltadas à profusão “de suas interpretações e inspirações, para
as incertezas do futuro e o futuro das incertezas no mundo contemporâneo”.
Também, pela editora do Sesc-SP, sairá a
coletânea “Edgar Morin: homem de muitos séculos - Um olhar latino-americano”,
organizada por Elimar Pinheiro do Nascimento, Maurício Amazonas e Alfredo
Pena-Vega, docentes do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de
Brasília (CDS/UnB). Lançamento posterior a uma perspectiva exclusivamente
brasileira, editada pelo professor Edgard de Assis Carvalho (PUC-SP):
“Complexidade no Século XXI” (Sulina).
*José Eli da Veiga é
professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP
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