O Globo
No seu longo adeus, Angela Merkel pode
ainda se tornar a mais longeva chanceler da Alemanha republicana, ultrapassando
seu mentor Helmut Kohl. Mas, ao contrário de Kohl e de outros dois icônicos
primeiros-ministros do pós-guerra, Merkel não deixa um legado óbvio, compacto,
sintetizável numa única pincelada.
O democrata-cristão Konrad Adenauer
(1949-63), arquiteto e primeiro chanceler da RFA, fundou a Alemanha moderna,
atlanticista e europeia. A Otan — o alinhamento geopolítico com os EUA — e o
projeto da Comunidade Europeia — a parceria estratégica com a França — são seus
legados.
Willy Brandt (1969-74) reinventou a social-democracia alemã, inscrevendo o antigo partido de Karl Marx na moldura do Ocidente da Guerra Fria, uma obra completada por seu sucessor, Helmut Schmidt. Além disso, num lance de gênio, fissurou a armadura ideológica da Alemanha Oriental com sua Ostpolitik, a política de abertura para o Leste, lançando a semente da reunificação.
Helmut Kohl (1982-98) ostenta o título de
chanceler da Reunificação, o líder que subordinou o dogma monetário ao
imperativo político e, assim, apagou a fronteira artificial entalhada em 1949
no meio da nação alemã. Nos anais da história, seu nome ocupa um lugar comparável
ao de Bismarck.
Adenauer, Brandt e Kohl promoveram fundas
rupturas, desafiando tabus. Merkel, pelo contrário, guiou-se pela bússola da
tradição, mas sempre deu um passo a mais, imprimindo uma marca original à
pintura conhecida.
Os alemães têm horror a dívida, palavra que
associam a culpa e mesmo a pecado. Na crise do euro, deflagrada em 2010, Merkel
recusou-se a salvar a Europa por meio de uma “União das Dívidas”, impondo
programas de austeridade a gregos, portugueses, espanhóis e italianos. Contudo,
uma década depois, diante da pandemia, atravessou um Rubicão mental para
aprovar o plano europeu de recuperação financiado por emissão comunitária de
títulos públicos.
Os chanceleres alemães não precisavam se
preocupar em demasia com o tema fundamental da segurança, resolvido de antemão
pelo compromisso dos EUA com a Europa Ocidental. Mas a ascensão de Trump e o
ressurgimento do velho isolacionismo americano mudaram radicalmente os termos
da velha equação.
Merkel extraiu disso a conclusão de que, no
fim das contas, a Europa —e, em seu núcleo, a Alemanha —não pode contar com o
amparo eterno da superpotência. Daí, os alemães decidiram apostar no
aprofundamento do intercâmbio comercial com a China, para garantir oxigênio a
sua indústria exportadora, e numa pragmática cooperação fria com a Rússia, para
reduzir as ameaças oriundas do Leste. A humilhante retirada americana do
Afeganistão confirmou seus temores. “Os EUA estão de volta”, lema escolhido por
Biden, é quase apenas retórica.
A política do consenso não foi criada por
Merkel, mas por seu antecessor social-democrata Gerhard Schroeder, que
articulou com os sindicatos uma ousada reforma trabalhista e assegurou o
diferencial de produtividade da Alemanha. A chanceler seguiu seus passos e, na
encruzilhada da pandemia, negociou incansavelmente as medidas de restrição
sanitária com os governadores, provando que um Estado federal pode agir de modo
mais coeso que o Estado unitário francês.
A minimalista foi maximalista uma única
vez. Em 2015, ante a guerra síria e a crise dos refugiados, abriu as portas da
Alemanha, enquanto franceses, britânicos, italianos e tantos outros as
fechavam. Quase 1 milhão de enxotados pela violência, em sua maioria
muçulmanos, estabeleceram-se no país. Merkel sempre foi uma crítica ácida e
realista do multiculturalismo. Ela insistia na exigência de que os imigrantes
aprendessem a língua da terra e se integrassem a seus valores constitucionais.
Mas, para escândalo dos nativistas, proclamou que “o islã é parte da Alemanha”.
O mais nobre gesto de um estadista europeu
desde a Grande Guerra não respondia a um cálculo político, mas a um chamado de
princípios. Merkel manteve-se firme diante de uma torrente de recriminações
provenientes até dos altos círculos de seu próprio partido. O adeus começou ali.
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