quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Conrado Hübner Mendes - Pacote pró-corrupção

Folha de S. Paulo

Nem derrota eleitoral de Bolsonaro poderá reverter processo em curso

Democracias precisam de "instituições funcionando" de uma certa maneira, não de maneira qualquer.

Instituições democráticas se orientam por alguma ideia de igualdade política. Buscam domesticar o interesse privado, conter a força bruta e limitar os bens que o dinheiro pode comprar. Maior grau de institucionalização indica, em princípio, maior qualidade da democracia.

Instituições produzem regularidade, um parâmetro de normalidade, uma força gravitacional que constrange decisões. Existem quando se notam padrões estáveis de comportamento, gerados por regras formais ou informais.

Regras jurídicas no papel não bastam para institucionalizar padrões de conduta. São necessários agentes que as respeitem e agentes dispostos a controlar aqueles que as violam. Vale para promotor, juiz, policial, presidente.

Desinstitucionalizar a democracia significa seguir no sentido oposto. Rompem-se arbitrariamente procedimentos e expectativas, faz-se vista grossa para violações, prevalecem casuísmo, voluntarismo, personalismo.

Vale o fio do bigode, o gabinete paralelo, o balcão de negócios. Reduz-se institucionalidade para expandir o arreglo. Uma forma de corrupção da instituição, mesmo quando não qualificada juridicamente como crime de corrupção.

Um programa sistemático de desinstitucionalização está há anos em curso no Brasil. Foi vitaminado pelo messianismo lavajatista, acelerado por Bolsonaro e turbinado pelo centrão. O diagnóstico não é novo.

Até Gilmar Mendes, por exemplo, já lamentou o "processo fundamental, radical, de desinstitucionalização".

Cartilha viva da sociologia brasileira, Gilmar não deixa de praticar o que sua intuição teórica condena. Em abril de 2018, já convertido do lavajatismo ao antilavajatismo sem escalas (só a coincidência do impeachment no meio do caminho), ainda exalava antipetismo das vísceras à revista Exame. Um juiz.

Na entrevista, lançou as seguintes teses: "Toda essa crise é fruto de uma desinstitucionalização criada pelo PT"; "a única coisa que me conforta a alma é que o PT está pagando".

Seu "consolo", dizia, era que o "voluntarismo sem precedentes" resultava das "maquinações do PT, da intenção de venezuelar o Brasil". Autodeclarado "adversário, não inimigo", do PT, sua análise peca por esse flamejante viés. Um juiz do Supremo.

Aproveitou também para agredir colegas de tribunal. O PT teria deixado "notório legado" de corte "mal formada, mal indicada", com ministros "sem perfil". Pessoas nomeadas "não tinham formação, não tinham pedigree". Vagas eram preenchidas por "simpatizantes do MST, de causas, de grupo afro, por ser amigo de algum político". Afrontou, por baixo, numa frase, ToffoliFachin e Joaquim Barbosa.

Logo ele, um protagonista da desinstitucionalização do STF, tribunal que decide o que quer, quando quer; frequentador dos salões partidários, que insulta a ética e o decoro judicial nas falas e hábitos; guru da populisprudência, populismo com capa de jurisprudência.

Foi logo com ele que parte da advocacia, da esquerda e do PT resolveu fazer a aliança fáustica na luta contra a corrupção do processo penal. A luta é justa, mas o aliado a trairá quando oportuno.

A desinstitucionalização corre por vias formais e informais. E mais recentemente se concentrou no âmbito legislativo, por meio de um conjunto de projetos de lei e de emenda constitucional.

Todos guardam laço de coerência, não só porque corrompem instituições (e desinstitucionalizam), mas porque podem facilitar a prática do crime de corrupção.

Chamar de pacote pró-corrupção a criação de regras de descontrole e do favorecimento da informalidade patrimonialista não seria uma hipérbole.

Cada projeto em trâmite ou lei já aprovada mereceria coluna extra, mas vale começar a conversa por lista exemplificativa: a reforma administrativa (PEC 32); a reforma do Ministério Público (PEC 5); a reforma eleitoral, que limita transparência e prestação de contas; leis ambientais que extinguem licenciamento, encorajam crime organizado e a grilagem; regras da nova lei de improbidade; PEC dos precatórios; Auxílio Brasil. Entre outras.

Talvez seja possível vencer Bolsonaro eleitoralmente em 2022. Talvez seja crível, a partir daí, iniciar estratégia eficaz de neutralização do bolsonarismo.

Quanto mais se aprofunda o processo de desinstitucionalização, contudo, mais esse objetivo se inviabiliza. A temida "bolivarianização", que Gilmar, em lapsos de contradição performativa, criticava e operava num mesmo gesto, pode ser irreversível.

 

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