Folha de S. Paulo
Nem derrota eleitoral de Bolsonaro poderá
reverter processo em curso
Democracias precisam de "instituições
funcionando" de uma certa maneira, não de maneira qualquer.
Instituições democráticas se orientam por
alguma ideia de igualdade política. Buscam domesticar o interesse
privado, conter
a força bruta e limitar os bens que o dinheiro pode comprar. Maior grau de
institucionalização indica, em princípio, maior qualidade da democracia.
Instituições produzem regularidade, um
parâmetro de normalidade, uma força gravitacional que constrange decisões.
Existem quando se notam padrões estáveis de comportamento, gerados por regras
formais ou informais.
Regras jurídicas no papel não bastam para
institucionalizar padrões de conduta. São necessários agentes que as respeitem
e agentes dispostos a controlar aqueles que as violam. Vale para promotor,
juiz, policial, presidente.
Desinstitucionalizar a democracia significa
seguir no sentido oposto. Rompem-se arbitrariamente procedimentos e
expectativas, faz-se vista grossa para violações, prevalecem casuísmo,
voluntarismo, personalismo.
Vale o fio do bigode, o gabinete paralelo, o balcão de negócios. Reduz-se institucionalidade para expandir o arreglo. Uma forma de corrupção da instituição, mesmo quando não qualificada juridicamente como crime de corrupção.
Um programa sistemático de
desinstitucionalização está há anos em curso no Brasil. Foi vitaminado pelo
messianismo lavajatista, acelerado por Bolsonaro e turbinado pelo centrão. O
diagnóstico não é novo.
Até Gilmar Mendes,
por exemplo, já lamentou o "processo fundamental, radical, de
desinstitucionalização".
Cartilha viva da sociologia brasileira,
Gilmar não deixa de praticar o que sua intuição teórica condena. Em abril de
2018, já convertido do lavajatismo ao antilavajatismo sem escalas (só a
coincidência do impeachment no meio do caminho), ainda exalava antipetismo das
vísceras à revista Exame. Um juiz.
Na entrevista, lançou as seguintes teses:
"Toda essa crise é fruto de uma desinstitucionalização criada pelo
PT"; "a única coisa que me conforta a alma é que o PT está
pagando".
Seu "consolo", dizia, era que o
"voluntarismo sem precedentes" resultava das "maquinações do PT,
da intenção de venezuelar o Brasil". Autodeclarado "adversário, não
inimigo", do PT, sua análise peca por esse flamejante viés. Um juiz do
Supremo.
Aproveitou também para agredir colegas de
tribunal. O PT teria deixado "notório legado" de corte "mal
formada, mal indicada", com ministros "sem perfil". Pessoas
nomeadas "não tinham formação, não tinham pedigree". Vagas eram
preenchidas por "simpatizantes do MST, de causas, de grupo afro, por ser
amigo de algum político". Afrontou, por baixo, numa frase, Toffoli, Fachin e Joaquim
Barbosa.
Logo ele, um protagonista da
desinstitucionalização do STF,
tribunal que decide o que quer, quando quer; frequentador dos salões
partidários, que insulta a ética e o decoro judicial nas falas e hábitos; guru
da populisprudência, populismo com capa de jurisprudência.
Foi logo com ele que parte da advocacia, da
esquerda e do PT resolveu fazer a aliança fáustica na luta contra a corrupção
do processo penal. A luta é justa, mas o aliado a trairá quando oportuno.
A desinstitucionalização corre por vias
formais e informais. E mais recentemente se concentrou no âmbito legislativo,
por meio de um conjunto de projetos de lei e de emenda constitucional.
Todos guardam laço de coerência, não só
porque corrompem instituições (e desinstitucionalizam), mas porque podem
facilitar a prática do crime de corrupção.
Chamar de pacote pró-corrupção a criação de
regras de descontrole e do favorecimento da informalidade patrimonialista não
seria uma hipérbole.
Cada projeto em trâmite ou lei já aprovada
mereceria coluna extra, mas vale começar a conversa por lista exemplificativa:
a reforma
administrativa (PEC 32); a reforma
do Ministério Público (PEC 5); a reforma eleitoral, que limita
transparência e prestação de contas; leis
ambientais que extinguem licenciamento, encorajam crime organizado e a grilagem;
regras da nova lei de improbidade; PEC
dos precatórios; Auxílio Brasil. Entre outras.
Talvez seja possível vencer Bolsonaro
eleitoralmente em 2022. Talvez seja crível, a partir daí, iniciar estratégia
eficaz de neutralização do bolsonarismo.
Quanto mais se aprofunda o processo de
desinstitucionalização, contudo, mais esse objetivo se inviabiliza. A temida
"bolivarianização", que Gilmar, em lapsos de contradição
performativa, criticava e operava num mesmo gesto, pode ser irreversível.
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