Dedico
a coluna de hoje ao Dr. Severino Elias, médico com profundo sentido de missão,
que nos deixou ontem, depois de semanas de luta pessoal contra a Covid. Essa
foi, porém, apenas a sua batalha final. Antes desse desfecho, chorado por quem
perdeu o amigo e a referência profissional, houve um ano de dedicação e bravura
cotidianas para não abandonar seus pacientes, apesar dos mais de 70 anos de idade
e quase 50 de serviços prestados. Dele é possível dizer, sem exagero, que doou
sua vida a uma vocação. Eis a razão desta homenagem, que me vale, também, de estímulo
para escrever o que segue.
Peço perdão a Cabral (o João) por
passar agora da evocação de uma morte e vida severina, alegórico exemplar do seu
poema imortal da humanidade brasileira, para uma alusão à mais abjeta negação
de qualquer humanidade. Incluo, a contragosto, entre as reflexões de hoje, as
mais recentes agressões psicopáticas do presidente da República à dor infinita
do povo que ele deveria defender. Evocar seus ares debochados com as vítimas da
falta de ar e o seu incentivo perverso a saques e outras violências
incalculáveis é um introito necessário ao argumento que aqui procurarei
desenvolver.
O desespero de incontáveis pessoas está
fazendo com que se disponham a pagar qualquer preço para que Bolsonaro seja tirado,
o quanto antes, do lugar de poder que ele desonra. Compreensível desejo que não
pode, contudo, nos distrair da hipótese de que um Putin militar esteja nos
aguardando na esquina. O que o Dr. Marcelo Queiroga está prometendo fazer caso
assuma mesmo o Ministério da Saúde pode dar ideia do que seria o resultado da substituição
do presidente por seu vice, se feita de modo imprudente, sob pressão desse
desespero, ou por sua manipulação. Seria cloroquina, nada mais.
Confirmam-se, no MS, sombrias
conjecturas. O que era péssimo com o general Pazuello, ensaia piorar. Sua queda
banal - que para muitos parecia ser cirurgia providencial, a ponto de se apostar
fichas numa CPI de tempestividade e eficácia duvidosas - não diminuiu a
premência da vigilância constante da fera, pela comunidade da saúde, imprensa e sociedade,
assim como não provou ser medida mais eficaz do que o tratamento paliativo,
tópico, atenuante, conservador, com que a atitude prudencial do Congresso e do
sistema político de um modo geral, contém efeitos dos impulsos de morte emanados
do palácio.
O médico que se quer impor ao
ministério é mais perigoso do que o general destrambelhado. Ele pode destilar o
veneno da dúvida na opinião técnica, dividi-la, isso resultar em maior
desorientação ainda da população e essa desorientação, por sua vez, alimentar
ainda mais aglomerações e outras atitudes de risco, às quais terão que corresponder atitudes
mais duras de polícias estaduais. Tudo isso gera um altíssimo potencial de
conflito político entre poderes e de confrontos de rua, inclusive físicos,
entre pessoas. Em síntese, o caos social expresso em desordem. Essa é, ao fim e
ao cabo, a meta que Bolsonaro persegue, enquanto finge preocupar-se apenas com
as urnas. Resistamos ao autoengano: se urnas prometem, cada dia mais, ser um
pesadelo para ele, não se deve esperar que marchará para elas como se fosse um
líder democrático, porque ele é a antítese disso. É claro que precisamos estar
cientes de que o subversivo fará tudo que estiver ao seu alcance para virar a
mesa antes disso. E que quem comanda
nossas instituições não pode vacilar um só dia na vigília para impedi-lo de
tornar seus planos realidade.