domingo, 21 de março de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

A crise tem nome e sobrenome – Opinião / O Estado de S. Paulo

Pressionado pela queda de sua popularidade, Bolsonaro tenta transferir a responsabilidade pela crise para os governadores

O presidente Jair Bolsonaro convidou o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, para integrar um comitê dos Três Poderes para discutir a pandemia de covid-19. Além de muito atrasado, o gesto serve somente para dar um verniz de estadista a um presidente que tudo tem feito para atrapalhar o combate ao coronavírus.

Fux submeteu o convite ao plenário do Supremo, e todos os seus 10 colegas escolheram rejeitá-lo, pois o tribunal deverá ser chamado a julgar a legalidade de medidas adotadas pelo governo. Mas há outros bons motivos para que o Supremo mantenha distância prudente de Bolsonaro, cuja única competência é criar tumulto.

Nos últimos dias, Bolsonaro voltou a contestar a eficácia de vacinas, a fazer campanha contra o uso de máscaras, a desdenhar de doentes e a colocar em dúvida o número de mortos e de ocupação de UTIs. Anunciou a troca de ministro da Saúde para sinalizar mudança de rumo, mas não só o incompetente Eduardo Pazuello continua a despachar como ministro, como o futuro ministro, Marcelo Queiroga, amigo da família Bolsonaro, promete manter tudo como está.

O Bolsonaro que acena com uma concertação institucional contra a pandemia é o mesmo que entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo para questionar as medidas restritivas adotadas por governadores do Rio Grande do Sul, Bahia e Distrito Federal, notadamente o toque de recolher e o fechamento de atividades não essenciais.

Luiz Sérgio Henriques* - Os bárbaros entre nós

- O Estado de S. Paulo

Há setores da esquerda dispostos a sacrificar os direitos humanos se as ditaduras são ‘amigas’

Nem mesmo quando a pandemia grassava nos Estados Unidos sem perspectiva de controle, e o então presidente Donald Trump perdia o trunfo de alguns ganhos econômicos que podia alardear, era totalmente certa sua derrota nas urnas. Não importava muito que os democratas houvessem encontrado em Joe Biden uma saída equilibrada e confiável, de resto quase sempre à frente na maioria das pesquisas pré-eleitorais. Na verdade, tão espalhado é o mal-estar difuso nas democracias, tão grande a crise do político, mais além das crises convencionais da política, que o campo aberto à disposição dos demagogos parece inesgotável, possibilitando-lhes passes de mágica e ilusionismos vários até há pouco próprios só do realismo fantástico.

Convém ter isso claro ao analisar o momento atual do presidente Bolsonaro no penúltimo ano de mandato, já se podendo prever, sem margem a dúvida razoável, o quadro catastrófico que se abriria em caso de reeleição. Os números negativos sobre seu desempenho no (não) enfrentamento da pandemia – um evento excepcional – ou na administração regular dos problemas do País podem até subir consistentemente, como parece ser a tendência, mas sempre sobrará para esse tipo de líder a tentação do desatino fatal: o ataque frontal às instituições, iconicamente representado no assalto ao Capitólio.

Paulo Fábio Dantas Neto* - Democracia como vacina política e as cloroquinas de ocasião

Dedico a coluna de hoje ao Dr. Severino Elias, médico com profundo sentido de missão, que nos deixou ontem, depois de semanas de luta pessoal contra a Covid. Essa foi, porém, apenas a sua batalha final. Antes desse desfecho, chorado por quem perdeu o amigo e a referência profissional, houve um ano de dedicação e bravura cotidianas para não abandonar seus pacientes, apesar dos mais de 70 anos de idade e quase 50 de serviços prestados. Dele é possível dizer, sem exagero, que doou sua vida a uma vocação. Eis a razão desta homenagem, que me vale, também, de estímulo para escrever o que segue.

Peço perdão a Cabral (o João) por passar agora da evocação de uma morte e vida severina, alegórico exemplar do seu poema imortal da humanidade brasileira, para uma alusão à mais abjeta negação de qualquer humanidade. Incluo, a contragosto, entre as reflexões de hoje, as mais recentes agressões psicopáticas do presidente da República à dor infinita do povo que ele deveria defender. Evocar seus ares debochados com as vítimas da falta de ar e o seu incentivo perverso a saques e outras violências incalculáveis é um introito necessário ao argumento que aqui procurarei desenvolver.

O desespero de incontáveis pessoas está fazendo com que se disponham a pagar qualquer preço para que Bolsonaro seja tirado, o quanto antes, do lugar de poder que ele desonra. Compreensível desejo que não pode, contudo, nos distrair da hipótese de que um Putin militar esteja nos aguardando na esquina. O que o Dr. Marcelo Queiroga está prometendo fazer caso assuma mesmo o Ministério da Saúde pode dar ideia do que seria o resultado da substituição do presidente por seu vice, se feita de modo imprudente, sob pressão desse desespero, ou por sua manipulação. Seria cloroquina, nada mais.

Confirmam-se, no MS, sombrias conjecturas. O que era péssimo com o general Pazuello, ensaia piorar. Sua queda banal - que para muitos parecia ser cirurgia providencial, a ponto de se apostar fichas numa CPI de tempestividade e eficácia duvidosas - não diminuiu a premência da vigilância constante da fera, pela  comunidade da saúde, imprensa e sociedade, assim como não provou ser medida mais eficaz do que o tratamento paliativo, tópico, atenuante, conservador, com que a atitude prudencial do Congresso e do sistema político de um modo geral, contém efeitos dos impulsos de morte emanados do palácio. 

O médico que se quer impor ao ministério é mais perigoso do que o general destrambelhado. Ele pode destilar o veneno da dúvida na opinião técnica, dividi-la, isso resultar em maior desorientação ainda da população e essa desorientação, por sua vez, alimentar ainda mais aglomerações e outras atitudes de risco, às quais terão que corresponder atitudes mais duras de polícias estaduais. Tudo isso gera um altíssimo potencial de conflito político entre poderes e de confrontos de rua, inclusive físicos, entre pessoas. Em síntese, o caos social expresso em desordem. Essa é, ao fim e ao cabo, a meta que Bolsonaro persegue, enquanto finge preocupar-se apenas com as urnas. Resistamos ao autoengano: se urnas prometem, cada dia mais, ser um pesadelo para ele, não se deve esperar que marchará para elas como se fosse um líder democrático, porque ele é a antítese disso. É claro que precisamos estar cientes de que o subversivo fará tudo que estiver ao seu alcance para virar a mesa antes disso.  E que quem comanda nossas instituições não pode vacilar um só dia na vigília para impedi-lo de tornar seus planos realidade.

Luiz Carlos Azedo - É autoritarismo mesmo

- Correio Braziliense

Não se trata de uma guinada populista à vista, mas de um comportamento típico de governantes em apuros, que começam a recorrer à força do Estado contra a opinião pública

O professor e historiador Alberto Aggio é um estudioso da política latino-americana, seu livro Um lugar no mundo (Fundação Astrojildo Pereira/ Fondazione Instituto Gramsci) dedica especial atenção à discussão do conceito de populismo. É um crítico tanto de sua “banalização”, como um termo que expressa estilos políticos de caráter depreciável, quanto do seu uso como “teoria explicativa” do desastrado percurso histórico latino- americano rumo à modernidade, “na qual a presença do Estado na vida social e econômica se fixa como seu elemento mais negativo e que necessita ser superado ou destruído”. Na sua avaliação, o populismo emergiu num cenário de crise do liberalismo, buscava a construção de uma sociedade industrial e moderna, politicamente orientada pelo Estado, incorporando as massas à cidadania pela via dos direitos sociais. Foi “uma fuga para frente”.

Tratava-se de promover transformações sem rupturas violentas, revolucionárias, como em outros processos de industrialização. Interditou a via clássica de passagem à modernidade, caracterizada pela incorporação dos trabalhadores à democracia liberal. No caso brasileiro, o populismo emergiu após a Revolução de 1930, com Getúlio Vargas, e ganhou feições democráticas em seu segundo governo, na década de 1950. Caracterizou-se como um Estado de bem-estar social incompleto, com programa nacionalista que estatizava alguns setores da economia e legislação trabalhista e corporativista, que organizou e concedeu direitos sociais aos trabalhadores, mas também lhes retirou a autonomia.

Merval Pereira - Lockdown emergencial

- O Globo

Centenas de economistas, entre eles quatro ex-ministros da Fazenda (Marcilio Marques Moreira, Pedro Malan, Mailson da Nóbrega e Rubem Ricupero), cinco ex-presidentes do Banco Central (Afonso Celso Pastore, Arminio Fraga, Gustavo Loyola, Ilan Goldfajn e Pérsio Arida), ex-presidentes do BNDEs (Edmar Bacha, Eleazar de Carvalho) dentre outros, abrangendo diversas  gerações de economistas, pessoas da academia, do mercado financeiro, ex-membros de governos diversos, e empresários lançaram uma Carta intitulada “País Exige Respeito; a Vida Necessita da Ciência e do Bom Governo”, a propósito da atual crise brasileira, com sugestões concretas do que deve ser feito para tentarmos superar a pandemia da Covid-19.  

Diante de situação econômica e social “desoladora”, e de um governo que “subutiliza ou utiliza mal os recursos de que dispõe, inclusive por ignorar ou negligenciar a evidência científica no desenho das ações para lidar com a pandemia”, eles sugerem até mesmo a possibilidade de adoção de um lockdown nacional. Calculam que a redução do nível da atividade nos custou menos do que o atraso na vacinação:

“Uma perda de arrecadação tributária apenas no âmbito federal de 6,9%, aproximadamente R$ 58 bilhões, e o atraso na vacinação irá custar em termos de produto ou renda não gerada nada menos do que estimados R$ 131,4 bilhões em 2021, supondo uma recuperação retardatária em dois trimestres”.

Segundo os economistas, “o efeito devastador da pandemia sobre a economia tornou evidente a precariedade do nosso sistema de proteção social” e, além do auxílio emergencial, “não devemos adiar mais o encaminhamento de uma reforma no sistema de proteção social, visando aprimorar a atual rede de assistência social e prover seguro aos informais”.

Ricardo Noblat - Presidente só pode o que a lei permite e o Congresso aceite

- Blog do Noblat / Veja

Liberdade de expressão ganha mais uma

Guardo, emoldurada, minha ficha do Serviço Nacional de Informações, o órgão de espionagem da ditadura de 64. Tão poderoso que dos seus quadros saíram dois presidentes da República: os generais Garrastazu Médici e João Figueiredo.

Ao rever a ficha, dei-me conta das vezes que já fui alvo da Lei de Segurança Nacional em 54 anos de jornalismo. A primeira foi em 1968 por ter participado do congresso da União Nacional dos Estudantes, entidade amaldiçoada pelo regime militar.

A segunda vez foi quando eu e mais 25 colegas, em março de 1969, fomos expulsos da universidade por “atividades” qualificadas de “subversivas” – tais como fazer passeatas e discursos contra a ditadura. Por um ano fomos proibidos de estudar.

Os processos que respondi com base na famigerada lei não deram em nada. Como deu em nada o mais recente – desta vez por publicar na versão deste blog no Twitter uma charge do cartunista Aroeira sobre Bolsonaro. Ambos respondemos a inquérito.

Bernardo Mello Franco - Bolsonaro é tetra

- O Globo

Jair Bolsonaro é tetra. Eleito com discurso moralista, o presidente já tinha três filhos sob investigação. Agora vê o quarto, Jair Renan, entrar na mira da Polícia Federal.

Aos 22 anos, o caçula da família virou alvo de inquérito por suspeita de tráfico de influência. Ele tem usado o sobrenome para abrir portas em Brasília. Circula com empresários, recebe presentes e se reúne com autoridades fora da agenda oficial.

Em agosto passado, o Zero Quatro esteve com o secretário especial da Cultura, Mario Frias. O jovem disse ter tratado de interesses do setor de games. Dois meses depois, seu pai reduziu as alíquotas do IPI sobre jogos eletrônicos. Na contramão do aperto fiscal, a União abriu mão de arrecadar cerca de R$ 80 milhões até 2022.

Em novembro, Jair Renan levou empresários ao gabinete do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. O grupo queria apresentar um projeto de habitação popular a ser financiado pelo governo. A pasta informou que o Zero Quatro esteve no encontro “na qualidade de ouvinte”.

Alianças locais moldam articulações para eleições de 2022

- Pedro Venceslau / O Estado de S. Paulo

Proposta de possíveis presidenciáveis de formar grandes coalizões para a disputa com Bolsonaro esbarram no pragmatismo das negociações partidárias em nível estadual

Enquanto presidenciáveis falam em formar alianças amplas para enfrentar o presidente Jair Bolsonaro na eleição de 2022, líderes políticos fazem contas pragmáticas sobre os interesses partidários regionais, que serão determinantes no plano nacional. Agremiações assediadas do centro à esquerda por quem busca apoio na disputa ao Palácio do Planalto têm projetos estaduais prioritários. Os casos mais emblemáticos são o PSB, o DEM e o PSD

O PSB avalia lançar um “outsider” à Presidência enquanto mantém conversas com o ex-ministro Ciro Gomes (PDT) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que teve seus direitos políticos restabelecidos. A decisão final, entretanto, vai passar por um acordo em Pernambuco, hoje a principal base da legenda, que governa o Estado e a prefeitura do Recife. 

Carlos Melo* - Eleição não tem ponto sem nó

- O Estado de S. Paulo

Política é um jogo de barganhas; à sociedade cabe torcer e zelar para que as negociações coincidam com interesses coletivos

sistema eleitoral brasileiro implica um emaranhado de interesses, com afiado senso de oportunidade. Política é um jogo de barganhas; à sociedade cabe torcer e zelar para que as negociações coincidam com interesses coletivos. Nesse contexto, o eleitor compõe sua chapa conforme suas preferências, influenciado por pressões locais. Faz as combinações que bem entende. Os agentes se ajustam em torno disso.

Na confluência dos interesses nacionais e locais, as trocas independem de alinhamentos em relação ao governo federal de ocasião. Candidatos a presidente carecem de palanques locais: gente que os espere nos aeroportos, agitando bandeiras, e recursos de toda ordem. Buscam tanto quanto possível as mais fortes lideranças, operacionalmente capazes. 

Eliane Cantanhêde – Guerra insana

- O Estado de S. Paulo

A união nacional contra a pandemia só funciona com uma premissa: isolar Bolsonaro

O Brasil exige união de forças contra o coronavírus, mas o presidente Jair Bolsonaro trabalha na direção oposta, pela desunião e o caos. Enquanto instituições, Estados e Municípios buscam a iniciativa privada e articulam uma frente para salvar vidas e garantir atendimento e humanidade aos pacientes, o presidente da República insiste na sua guerrinha pessoal, insana e cheia de ameaças autoritárias contra governadores e isolamento social. 

Na quinta-feira à noite, o presidente da Câmara, Arthur Lira, foi à residência oficial do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, ali ao lado da sua, para discutir a extrema gravidade da situação e formas de reagir, abrindo portas com empresas, fábricas e laboratórios, para suprir o que já começa a faltar: leitos, oxigênio, medicamentos para intubação e, sim, vacinas, vacinas, vacinas. 

Na sexta, às 8h em ponto, o general Luís Eduardo Ramos, secretário de Governo da Presidência, chegou à casa de Pacheco com o mesmo objetivo, tentando viabilizar uma reunião na próxima terça com os presidentes da República, do Senado, da Câmara e do Supremo, o procurador-geral da República e um representante dos governadores de cada região do País.

E o que anda fazendo Bolsonaro? Trabalhando a favor da pandemia! É um aliado incondicional do coronavírus, faça chuva ou faça sol, morram 30 ou 300 mil, o que deixa, inclusive, uma dúvida: que papel terá na terça? O que dirá? Que compromissos assumirá?

Míriam Leitão - A palavra que habita em nós

- O Globo

Genocídio. Por que a palavra ficou tão presente na vida brasileira? Porque ela é usada quando um povo está morrendo. Nós estamos morrendo. Todas as outras palavras parecem pálidas. Prisioneiros de uma armadilha institucional e trágica, os brasileiros morrem diariamente aos milhares. Os remédios usados no tratamento extremo, a intubação, estão acabando, e o país está numa macabra contagem regressiva de quantos dias durarão os estoques. O que acontecerá se os medicamentos acabarem antes de serem repostos? Seremos intubados sem sedativos ou sufocaremos? Nós não estamos apenas morrendo. Caminhamos para morrer em maior número e de maneira mais cruel. Que nome deve ser usado? Genocídio.

A palavra habita nossas mentes porque estamos vendo os fatos, temos consciência do destino. Objetivamente, é a única que temos para descrever os eventos deste tempo. Quem se ofende com ela, se fosse pessoa com sentimentos humanos, teria reagido para evitar a tragédia. Nós sabemos sinceramente que nada podemos esperar de quem empurrou o país para este momento de barbárie.

Elio Gaspari - Jennifer Doudna, a Decodificadora

- O Globo / Folha de S. Paulo

Livro é uma aula de ciência, uma viagem aos segredos da vida e o retrato da carreira de uma cientista encantada com a natureza.

Está nas livrarias “A Decodificadora”, de Walter Isaacson. Num tempo de Covid, Bolsonaro, cloroquina e “gripezinha”, é uma vacina para a alma. Conta a vida da cientista americana Jennifer Doudna, prêmio Nobel de Química do ano passado.

Quando parece que o mundo vai acabar, algo de bom acontece. Em junho de 1940, os alemães haviam entrado em Paris, mas a americana Sylvia Beach resolveu reabrir sua livraria Shakespeare & Co. Vendeu apenas um exemplar de “...E o Vento Levou”. Dias depois, Hitler visitou a cidade, mas alguém estava lendo uma boa história.

Jennifer Doudna pesquisou um método de edição de genomas chamado CRISPR. Em português, “Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas”. Felizmente, mesmo com um tema agreste, Isaacson é capaz de lidar com essas coisas de forma compreensível. Com sucesso, já contou a vida de Steve Jobs e Albert Einstein. Grosseiramente, o CRISPR é um método de “copia e cola” de sequências genéticas. Graças a ele, criaram-se vacinas contra a Covid em menos de um ano.

“A Decodificadora” é uma aula de ciência, uma viagem aos segredos da vida e o retrato da carreira de uma cientista encantada com a natureza. Quando criança, no Havaí, ela viu o mistério das plantas “não me toques”, aquelas que abrem e fecham suas folhas ao passar dos dedos.

Num mundo em que um presidente de Harvard disse que mulheres não têm aptidão para a ciência, Doudna ralou, mas mostrou o tamanho da bobagem. (O economista Larry Summers perdeu o emprego.)

Dorrit Harazim - Medos cruzados

- O Globo

Curioso como, em meio ao horror nosso de cada dia, um mero tuíte — quase banal de tão singelo — foi capaz de acionar meus sensores semianestesiados por um ano de pandemia. “Confesso que estou exausta. Já escrevendo errado e com muita angústia do que está por vir. É a primeira vez que tenho medo do que está acontecendo”, dizia a postagem de Ethel Maciel, que eu nem sequer conhecia. Ela é, entre outras qualificações, epidemiologista e professora da Federal do Espírito Santo e dizia sentir tristeza pela falta de empatia geral no país.“O pior está por vir. Se cuidem! Estamos à deriva”, concluiu sem se alongar.

O medo, como se sabe, é desde sempre a mais primal e potente emoção a mover todas as espécies, inclusive a humana. Estudiosos ensinam que os gregos da Antiguidade tinham tantas variantes para a palavra “medo” quanto são múltiplas as designações dos povos inuit para “neve”. Felizmente, Freud simplificou as coisas. Com ele aprendemos a distinguir o medo real (nossa resposta racional e compreensível à percepção de um perigo concreto), do medo neurótico (nossa expectativa movida a ansiedade, desencadeada por coisas tão inofensivas como uma sombra na calçada). O medo real, como o da professora Maciel, exige algum tipo de ação, seja fugir para se proteger, seja combater o perigo com as armas que tiver. O medo imaginário — aquele que interpreta coincidências como sinais letais e constrói cenários catastróficos — costuma resultar em paralisia.

Vinicius Torres Freire - A farsa da renúncia de Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Presidente, centrão e amigos encenam a farsa da união nacional na semana que vem

Imagine-se que, na semana que vem, Jair Bolsonaro renuncie a si mesmo. Que abdique da alma monstruosa que reina sobre o país da morte.

Nesse universo paralelo, Bolsonaro acaba por se render na guerra civil que luta contra estados e cidades, contra a vida e a razão. Passa a apoiar o distanciamento social. No Ministério da Saúde, saem generais e coronéis brucutus, terraplanistas e negacionistas em geral. Entra gente capaz de organizar a distribuição de UTIs, remédios para intubações, oxigênio etc.

governo federal convoca um comitê de cientistas que coordenará pesquisadores dedicados a entender as novas variantes do vírus e outras virologias, infectologias e epidemiologias que permitam inventar estratégias capazes de conter a disseminação da doença. Outro grupo prepara o plano para cuidar dos sobreviventes com sequelas do coronavírus etc. O delírio é livre.

É tudo imaginável, claro.

Bolsonaro arranjou para a semana que vem uma reunião em que espera receber apoio da cúpula de Judiciário e Legislativo para criar um “gabinete de crise” da epidemia (vai ocupar a sala do gabinete do ódio?). Será uma farsa, faltando saber apenas o tamanho da presepada. Para que não o fosse, Bolsonaro teria de renunciar a si mesmo.

Bolsonaro quer ganhar tempo, assim como seus cúmplices no comando do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Fará a pose do governante, no que tem sido ainda mais diminuído por prefeitos, governadores e até por Lula da Silva, que não governa coisa alguma.

Bruno Boghossian – Os outros negacionistas

- Folha de S. Paulo

Espera inútil por moderação garante impunidade a Bolsonaro

No penúltimo domingo de maio, Jair Bolsonaro provocou aglomeração durante um protesto contra o Congresso e o STF. Na terça, Rodrigo Maia fez na Câmara um "convite à pacificação dos espíritos". Dois dias depois, o presidente foi à portaria do Palácio da Alvorada e, aos gritos, lançou sua infame advertência ao Supremo: "Acabou, porra!".

A eterna ilusão de que Bolsonaro se tornaria um governante moderado circula há dois anos em Brasília. Na pandemia, essa fantasia ainda engana autoridades que aguardam pacientemente uma mudança de comportamento na gestão da crise. Essa esperança inútil legou ao país a tragédia impulsionada pelo radicalismo mortífero do presidente.

Hélio Schwartsman - A tragédia poderia ter sido evitada

- Folha de S. Paulo

Sem citar Bolsonaro ou Covid, André Nemésio dispara um asteroide contra a política sanitária do atual governo

ficção científica tem uma legião de fãs dedicados. Não estou entre eles. Embora leia de tudo, eventualmente até ficção científica (e quase sempre com prazer), não sei de cor todos os títulos de Asimov, Bradbury e Clarke —e nem acho que tenha assistido a todos os episódios de “Jornada nas Estrelas”.

É estranho que a ficção científica não goze de grande prestígio literário, já que o gênero convida os autores a trabalhar com ideias em estado puro. Ela não é limitada pela ditadura da realidade nem pelos acidentes da geografia espacial e do estado tecnológico em que calhamos de viver.

Janio de Freitas – O vírus do golpismo

- Folha de S. Paulo

Medidas duras contra governadores só podem ser intervenções. Não terá sido ocasional a presença da expressão estado de sítio antes da ameaça

ressurgimento de Lula da Silva, prestigiado até pela atenção da CNN americana, simultâneo a outros fatos de aguda influência, levam Bolsonaro ao estado de maior tensão e descontrole exibido até agora.
Sua conversa com o ministro Luiz Fux e as palavras que a motivaram, centradas em referências dúbias a estado de sítio, tanto expuseram uma situação pessoal de desespero como o componente ameaçador desse desvairado por natureza. O pouco que Bolsonaro disse ao presidente do Supremo em sentido neutralizador conflita com a adversidade que cresce, rápida e envolvente, contra seu projeto.

Embora lerda como poucas, a investigação das tais "rachadinhas" de Flávio, além de outra vez autorizada, afinal vê surgir a do filho Carlos e encontra o nome Jair. O filho mais novo, ainda com os primeiros fios no rosto, inicia-se como investigado por tráfico de influência.

"Com crise econômica, o meu governo acaba" é a ideia que orienta Bolsonaro mesmo nos assuntos da pandemia. Nos quais não deu mais para manter a conduta de alienação e primarismo diante do agravamento brutal da crise pandêmica.

Celso Lafer* - As fronteiras e seu significado

- O Estado de S. Paulo

Synesio Sampaio Goes Filho lança obra sobre ‘o estadista que desenhou o mapa do Brasil’

Fronteiras têm grande importância na vida internacional. Definem o espaço da competência jurídica e política própria dos Estados nacionais. Diferenciam o “externo” do “interno”, no âmbito do qual cabe a um Estado, por meio de suas instituições, a responsabilidade de deliberar sobre rumos de uma sociedade. Nessa esfera também se situa o desafio de se orientar no mundo, pois na realidade contemporânea as fronteiras são porosas.

Faço essas considerações para destacar que a definição das fronteiras com reconhecimento internacional é o que configura “o corpo da pátria”, para me valer do sugestivo título do livro de Demétrio Magnoli. Por isso, o primeiro item da pauta da política externa de um país é o de buscar configurar o “corpo da pátria”. Nesse item, a diplomacia brasileira teve sucesso exemplar em obra que teve início com o Tratado de Madri de 1750.

Cristovam Buarque* - Turno único

- Blog do Noblat / Veja

Democracia em risco

Diversos candidatos se propõem a impedir a reeleição do atual presidente. Na medida que a eleição se aproxime, disputarão mais entre eles do que contra o opositor deles. Porque vão concentrar a disputa na busca de chegar ao segundo turno. Seus adversários serão seus aliados. Ao concentrarem a disputa entre eles, os candidatos criarão antagonismos que serão levados até o segundo turno, por eles próprios e por seus eleitores.

Vimos isto em 2018, quando os candidatos que perderam no primeiro turno não se empenharam na campanha de Haddad, quando este chegou ao segundo turno. Muitos dos eleitores preferiram votar nulo ou branco ou simplesmente se ausentarem. Isto ocorre em qualquer tempo, muito mais em momentos de confrontos e acusações radicalizadas, como atualmente. Apesar de que Bolsonaro hoje assusta e indigna mais do que em 2018, depois de tantas acusações, será o envolvimento pleno dos perdedores, apoiando quem chegar no segundo turno.

Os candidatos democratas que percebem este risco têm a obrigação de evitar um segundo turno e consequentemente o risco de um novo mandato para o presidente atual. Devem perceber também que o papel desempenhado pelas Forças Armadas nestes dois anos e a farta disseminação de armas entre bolsonarista podem levar a um “terceiro turno” nas ruas, caso ele perca por uma margem estreita no segundo turno. As afirmações de que não acredita nas urnas eletrônicas e de que prevê fraudes indica uma possibilidade de se manter no poder, usando milícias para invadir Congresso e Tribunal Eleitoral, prender ou eliminar adversários.

Ruy Castro - As canções do menino grande

- Folha de S. Paulo

O samba-canção é um patrimônio musical do Brasil e Antonio Maria foi um de seus grandes cultores

Se Antonio Maria —100 anos na quarta-feira (17)— estivesse entre nós, reagiria à altura a dois insultos recorrentes contra um patrimônio musical brasileiro: o samba-canção. O primeiro, o de que ele seria "o nosso bolero" —um disparate, porque quando o bolero chegou por aqui, nos anos 40, o samba-canção já era velho de pelo menos dez anos. E outro, mais sutil e ainda mais ofensivo, o de chamá-lo de "pré-bossa nova", subentendendo que ele seria um estágio anterior, inferior e preparatório de um gênero musical mais completo.

Maria diria, com razão, que, com sua exuberância melódica, sensualidade rítmica e beleza lírica, o samba-canção não devia nada a ninguém. Em seu apogeu, 1945-65, foi uma das grandes músicas românticas do mundo, no tempo em que todos os países produziam música romântica. E, para provar, Maria poderia exibir sua própria obra como compositor e letrista, sozinho ou com parceiros como Ismael Neto, Vinicius de Moraes, Fernando Lobo, Pernambuco e Luiz Bonfá, e toda ela na voz dos grandes cantores.

Música | Leandro Costa e Moacyr Luz - Samba de Fato

 

Poesia | Carlos Pena Filho - A Palavra

Navegador de bruma e de incerteza,
Humilde me convoco e visto audácia
E te procuro em mares de silêncio
Onde, precisa e límpida, resides.

Frágil, sempre me perco, pois retenho
Em minhas mãos desconcertados rumos
E vagos instrumentos de procura
Que, de longínquos, pouco me auxiliam.

Por ver que és claridade e superfície,
Desprendo-me do ouro do meu sangue
E da ferrugem simples dos meus ossos,
E te aguardo com loucos estandartes
Coloridos por festas e batalhas.

Aí, reúno a argúcia dos meus dedos
E a precisão astuta dos meus olhos
E fabrico estas rosas de alumínio
Que, por serem metal, negam-se flores
Mas, por não serem rosas, são mais belas
Por conta do artifício que as inventa.

Às vezes permaneces insolúvel
Além da chuva que reveste o tempo
E que alimenta o musgo das paredes
Onde, serena e lúcida, te inscreves.

Inútil procurar-te neste instante,
Pois muito mais que um peixe és arredia
Em cardumes escapas pelos dedos
Deixando apenas uma promessa leve
De que a manhã não tarda e que na vida
Vale mais o sabor de reconquista.

Então, te vejo como sempre foste,
Além de peixe e mais que saltimbanco,
Forma imprecisa que ninguém distingue
Mas que a tudo resiste e se apresenta
Tanto mais pura quanto mais esquiva.

De longe, olho teu sonho inusitado
E dividido em faces, mais te cerco
E se não te domino então contemplo
Teus pés de visgo, tua vogal de espuma,
E sei que és mais que astúcia e movimento,
Aérea estátua de silêncio e bruma