sábado, 10 de abril de 2021

Ascânio Seleme - Direito a dizer não

- O Globo

Senadores têm o direito, e neste caso também o dever, de dizer não ao presidente e também aos oportunistas, que são capazes de fazer qualquer coisa para ganhar uma vaga eterna no panteão da justiça nacional

As instituições públicas valem mais quando exercem plenamente suas funções. Cumprir parcial ou burocraticamente designações legais ou constitucionais as tornam fracas e em alguns casos desnecessárias. Além de legislar e fiscalizar o Poder Executivo, foram dadas ao Senado Federal competências especiais que vão desde processar e julgar o presidente da República nos crimes de responsabilidade até aprovar previamente a indicação de magistrados para os tribunais superiores. Como não podem contar com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, cabe aos demais senadores barrar a escalada autoritária de Bolsonaro.

Sua primeira missão é impedir que Augusto Aras ou André Mendonça sejam aprovados para a vaga do ministro Marco Aurélio no Supremo Tribunal Federal, caso um deles venha a ser indicado por Bolsonaro. Os senadores têm o direito, e neste caso também o dever, de dizer não ao presidente e também aos oportunistas, que são capazes de fazer qualquer coisa para ganhar uma vaga eterna no panteão da justiça nacional. A sessão do STF que julgou legal a restrição de cultos e missas em igrejas e templos durante a pandemia não deixou qualquer dúvida, se ainda restava alguma, de que os dois são feitos da mesma matéria com que se modelou Kassio Nunes. Fizeram, fazem e farão qualquer coisa que o chefe mandar.

Parecia uma sessão de sabatina de alunos de segundo grau, cada um tentando provar ao mestre ser mais aplicado do que outro. Augusto Aras repetiu a frase óbvia “o Estado é laico, as pessoas não são” apenas para bajular o capitão e mostrar que ele é adequado para o cargo de Marco Aurélio porque “pensa” como Bolsonaro. André Mendonça foi mais longe, e despudoradamente indagou: “Por que só as igrejas? Por que a discriminação?”. Pois é exatamente o contrário o que rezam os decretos de interdição, também as igrejas e templos devem ser fechados, como bares, restaurantes, clubes, lojas e cinemas. Ao afirmar pateticamente saber que a Covid mata, Mendonça disse que “os cristãos estão dispostos a morrer para garantir o direito ao culto”.

Pablo Ortellado - Há injustiça racial na fila das vacinas?

- O Globo

Temos um grave problema de dados relativos a cor e Covid-19. Os dados disponíveis não são confiáveis e, por isso, não sabemos se a doença está matando mais negros, como acontece nos Estados Unidos. Sem essa informação, não temos subsídios para corrigir injustiças na fila da vacinação.

Nos Estados Unidos, que têm dados mais confiáveis, o risco de morte por Covid é 2,4 vezes maior para indígenas, 2,3 vezes maior para latinos e 1,9 vez maior para negros do que para brancos. O Centro para Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos atribui essa diferença a disparidades socioeconômicas, menor acesso ao sistema de saúde e ocupações com maior exposição ao vírus.

Seria de esperar, portanto, que o Brasil, com disparidades raciais tão grandes, senão maiores que as americanas, tivesse o mesmo problema.

Quando consultamos o banco de dados do SUS, porém, não é o que encontramos. Segundo o SIVEP-Gripe, o risco de morte por Covid-19 entre negros é praticamente a metade do que entre os brancos, mesmo com os negros tendo piores condições sanitárias, piores condições econômicas e com ocupações mais expostas à contaminação. Não faz sentido.

Carlos Alberto Sardenberg - A CPI tumultua, mas ajuda

- O Globo

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, afirma que a CPI da Covid-19 vai atrapalhar o combate à pandemia porque dispersa os esforços do governo federal e do Congresso. Na verdade, o senador não queria a CPI — não quer, porque ainda tem meios de enrolar — porque sabe que o processo pode dar um tiro fatal no governo a que está aliado.

Mas outras pessoas da cena nacional, de políticos a empresários e jornalistas, encampam a tese de que a CPI convulsiona o ambiente político e econômico, sendo, pois, prejudicial tanto ao combate à pandemia quanto à retomada da economia. Pensam assim — ou pensavam — aqueles empresários que estiveram no jantar de quarta passada com o presidente Jair Bolsonaro. Disseram que o propósito era deixar o passado para trás — ou seja, esquecer os erros do governo — e se concentrar no que fazer dali em diante.

Isso seria verdade se atendidas duas condições: primeira, se o presidente Bolsonaro admitisse erros ou ao menos deixasse de falar e fazer os absurdos negacionistas; segunda, se houvesse alguma chance de que o governo e o Congresso melhorassem seu desempenho.

Nenhuma dessas condições está presente.

Aquele mesmo jantar foi uma demonstração disso. Contando empresários, ministros, assessores, seguranças, garçons e cozinheiros, formaram uma aglomeração de 80 pessoas — e ainda no horário do toque de recolher.

Bolsonaro foi o de sempre. Por exemplo: empresários falaram na necessidade de ampliar a vacinação; o presidente respondeu xingando o governador Doria, sem cujos esforços não haveria vacinação no Brasil.

Cristovam Buarque* - Paus de arara e malas com dinheiro

- Blog do Noblat / Veja

Nem o Exército é torturador nem o PT é corrupto

As instituições se desmoralizam ao não reconhecerem erros de seus membros, insistindo que crimes conhecidos não ocorreram. No lugar de identificarem os responsáveis, pedirem desculpas e mostrarem medidas que impedirão a repetição dos erros no futuro, estas instituições terminam assumindo a responsabilidade que deveria ser de indivíduos.

Percebe-se isto na insistência do Exército, ao negar a realidade dos crimes de tortura cometidos por membros de sua tropa durante o regime militar. Não conseguem esconder os fatos e terminam comprometendo a instituição, passando a ideia de que os novos oficiais também são coniventes, mesmo que eles nem fossem nascidos à época daqueles acontecimentos.

Da mesma forma, o PT insiste em negar que em seus governos ocorreram níveis colossais de corrupção, cometidos por filiados e aliados. Ao negar o que é conhecido de todos e acobertar a corrupção cometida por indivíduos, termina conspurcando a imagem da instituição e comprometendo a todos os militantes, inclusive a imensa maioria que não participou destes crimes.

Ricardo Noblat - Sem Exército para chamar de seu, Bolsonaro agora ataca o STF

- Blog do Noblat / Veja

Um suicida político em ação

Sequer foram cicatrizadas ainda as feridas abertas por sua tentativa de intervir nas Forças Armadas, o presidente Jair Bolsonaro decidiu abrir outras – desta vez com o Supremo Tribunal Federal. Deve haver alguma lógica em ações que só fazem enfraquecê-lo. Se não há, é porque ele é mesmo estúpido.

O ministro Luís Roberto Barroso, em resposta à provocação feita por dois senadores, decidiu que o Senado deve instalar a CPI da Covid, instrumento previsto na Constituição que garante voz à minoria parlamentar. O pedido de CPI respeitou todos os requisitos previstos. E o Supremo assim agiu em outras ocasiões.

Uma delas foi em 2007 quando obrigou a Câmara a instalar a CPI do Apagão Aéreo. Lula era então presidente da República, e Bolsonaro deputado federal. O governo tudo fez para que não houvesse CPI, e Bolsonaro tudo fez para que houvesse. À época, em entrevista, ele disse:

– Por que o governo teme a CPI? Eu não tenho dúvida do superfaturamento de obras em aeroportos. Se quiser me acusar de leviano, eu respondo: ‘Abra a CPI que eu provo lá’.

Bolsonaro não viu interferência descabida do Supremo em outro poder por causa disso. Agora, que o presidente da República é ele, vê, como proclamou ontem:

– Não há dúvida de que há interferência do Supremo em todos os Poderes. No Senado tem pedido de impeachment de ministros do Supremo. Não estou entrando nessa briga. Será que a decisão tem que ser a mesma para o Senado botar em pauta o pedido de impeachment de ministro do Supremo?

Marco Antonio Villa - Democratas, ação!


- Revista IstoÉ

Se a política criminosa de Bolsonaro persistir, o País pode chegar a julho com meio milhão de óbitos devido à Covid-19

A narrativa — palavra da moda — construída pelos adversários do enfrentamento do projeto criminoso de poder bolsonarista é a de que o presidente da República tem um mandato legítimo. Até aí, ninguém discorda. Porém, isto não dá a ele o direito de confrontar sistematicamente com a Constituição. O voto não é um passaporte para ilegalidades. Tem seus limites estabelecidos constitucionalmente. Argumentam também que ele tem apoio popular. Difícil concordar. Nas eleições de outubro os seus candidatos perderam nos principais colégios eleitorais. Nas pesquisas de opinião a impopularidade não para de crescer. As tentativas de mobilização de rua fracassaram. Reuniram algumas dezenas de fanáticos. Já o apoio empresarial é a cada dia menor. Os grandes grupos econômicos se afastaram do governo como ficou demonstrado no manifesto de economistas e empresários e por manifestações em entrevistas e eventos. Bolsonaro não tem partido político e nem uma base sólida no Congresso Nacional. No panorama externo o País continua isolado, um Estado-pária, sem apoio de nenhuma nação importante e atacado sistematicamente, especialmente, pelo desastre no campo ambiental.

João Gabriel de Lima - As cores da ‘Concertación’ brasileira

- O Estado de S. Paulo

Que o manifesto propicie uma conversa madura entre liberais, social-democratas e desenvolvimentistas

 “Chile, la alegria ya viene.” Quem assistiu ao filme No, que concorreu ao Oscar de 2013, não esquece o refrão. Ele foi mote de uma campanha histórica. Em 1988, um plebiscito decidiria se o ditador Augusto Pinochet deveria, ou não, continuar em sua cadeira até 1997. A população torpedeou o autocrata com um rotundo “No!”. Foi um raro – e belo – momento em que uma democracia derrubou uma ditadura pelo voto.

O que se seguiu foi igualmente histórico. Socialistas e democratas-cristãos, adversários de décadas, se uniram com o intuito de consolidar a democracia, juntando partidos de esquerda e de direita. O arranjo, conhecido como “Concertación”, durou mais de 20 anos, como lembra o cientista político argentino Andrés Malamud, especialista em América Latina e personagem do minipodcast da semana. O logotipo do movimento era um arco-íris. 

É inevitável pensar na “Concertación” ao ler o Manifesto pela Consciência Democrática, assinado por seis presidenciáveis. Há apelo à convergência e defesa intransigente dos regimes de liberdade. A união de todos, no entanto, não é óbvia. Entre os signatários há tendências políticas de amálgama difícil. 

João DoriaEduardo LeiteJoão Amoêdo e Luiz Henrique Mandetta integram a centro-direita. Em alguma medida, os quatro estiveram com Jair Bolsonaro ou se beneficiaram dos votos de seu eleitorado em 2018. O rompimento implícito no manifesto mostra que o campo “azul” quer se reconstruir bem longe do presidente. Um dos quatro nomes acima poderá representar a tendência liberal em 2022.

Carlos Pereira* - Desgastar o governo via CPI é estratégia esperada e legítima da oposição

- O Estado de S. Paulo

Enquanto o impeachment é o instrumento político da maioria, a Comissão Parlamentar de Inquérito é o que resta à minoria para expor as potenciais mazelas da atual gestão

O ministro do STF Luís Roberto Barroso determinou que o Senado instalasse a CPI da Covid em reação a um mandado de segurança impetrado pelos senadores Alessandro Vieira e Jorge Kajuru, ambos do partido Cidadania. Neste sentido, não houve interferência indevida do STF no Legislativo ou ativismo judicial como sugere o presidente Jair Bolsonaro.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), fez uso do argumento do juízo de conveniência e oportunidade ao interpretar como inconveniente a instalação da CPI da Covid em plena pandemia que já matou quase 350 mil pessoas no Brasil. Mas o que foi realmente conveniente ao senador foi a decisão liminar de Barroso, pois permitiu que Pacheco não se desgastasse politicamente com Bolsonaro, que atuou ativamente na sua recente eleição para presidir o Senado. A procrastinação de Pacheco em instalar a CPI sob o argumento de distensionar o ambiente político foi, na realidade, estratégica. Não cabia ao presidente do Senado a inação, pois os requisitos constitucionais para a sua instalação já tinham sido cumpridos pela minoria.

Marco Antonio Teixeira - Difícil prever o fim de uma investigação

- O Estado de S. Paulo

O ministro Luís Roberto Barroso surpreendeu ao anunciar sua decisão monocrática de obrigar o Senado a instalar a CPI da Covid para apurar a atuação do governo federal no combate ao novo coronavírus. 

Desde a posse de Rodrigo Pacheco (DEM-MG) no comando do Senado, o pedido de CPI já cumpria os requisitos legais para a sua instalação e dependia apenas de uma decisão do presidente da Casa para ganhar vida. Convém lembrar que tal decisão não é inédita, o STF já determinou a instalação de outras CPIS atendendo a pedidos da oposição de cada momento. Em 2005, por exemplo, o Supremo ordenou o início da CPI dos Bingos; em 2007, a CPI do Apagão Aéreo e, em 2014, a CPI da Petrobrás. Todas essas comissões tiveram desdobramentos políticos significativos aos governos de plantão.

A CPI terá potencial para ampliar o desgaste político do presidente Jair Bolsonaro e afetar ainda mais a sua constante perda de popularidade, além de fornecer elementos para mais pedidos de impeachment. Análise da responsabilidade do governo acerca do atraso na aquisição de vacinas e no estímulo ao uso de medicamentos sem aval científico, além de ações negacionistas do próprio Bolsonaro certamente serão feitas à luz dos quase 350 mil mortos já provocados pela pandemia.

Adriana Fernandes – Entre livros e armas

- O Estado de S. Paulo

 Entre armas e livros, continua sendo melhor apostar na segunda opção

Reportagem desta semana do Estadão“Receita diz que só rico lê, e livro pode perder isenção com unificação tributária”, viralizou e levou a uma série de relatos emocionantes nas redes sociais de brasileiros que nasceram em famílias de renda mais baixa e que se viraram para ter acesso à leitura. A discussão sobre o fim da imunidade para livros foi inserida no contexto do projeto de reforma tributária do governo, mas no Brasil de hoje esse é um assunto muito mais político do que de natureza tributária.

Um país que tem o orçamento público capturado por demandas políticas de cunho eleitoreiro. Com governo e parlamentares que não tiveram coragem de fazer cortes importantes nas renúncias tributárias de setores com grande influência em Brasília.

A incoerência fica ainda mais escancarada por um presidente da República que adotou corte de tributos para incentivar a compra de armas e videogames, além de ampliar incentivo para as multinacionais de refrigerantes na Zona Franca de Manaus. Medidas que drenaram a arrecadação em plena pandemia.

A polêmica surgiu porque a Receita, para justificar o projeto que cria a Contribuição Social sobre Bens e Serviços, a CBS, disse que a isenção aos livros pode acabar com a justificativa de que a maior parte é consumida pelas famílias com renda superior a dez salários mínimos. O certo teria sido o projeto retirar o incentivo ao livro e destinar o aumento da arrecadação para uma política de incentivo aos mais pobres. 

A pergunta que muitos se fizeram depois de ler a reportagem foi: por que os livros?

Oscar Vilhena Vieira* - Cavalo de Troia

- Folha de S. Paulo

Seria este o melhor momento para discutir a Lei de Segurança Nacional?

Como deliberar sobre a melhor forma de defender a democracia com aqueles que lhe são hostis? Esse é o dilema que se colocou a partir do momento em que o Presidente da Câmara dos Deputados decidiu pautar, em regime de urgência, um projeto de lei voltado a tipificar crimes contra o Estado democrático de Direito.

Não há dúvida de que o Brasil precisa, há muito, de uma boa lei de proteção às suas instituições democráticas, em substituição à velha Lei de Segurança Nacional (LSN), editada no final da ditadura.

Também não há dúvida de que o parlamento seja o locus legítimo para essa deliberação. A questão, no entanto, é se nos encontramos no melhor momento para levar a cabo uma tarefa tão delicada como essa, que exigiria um amplo e consistente consenso em torno dos valores democráticos e muita moderação, inexistentes nesta quadra.

Temo que a iniciativa possa não apenas criar uma cortina de fumaça sobre o agravamento da pandemia, que já vitimou mais de 340 mil pessoas sob o profundo desprezo moral do presidente da República, mas também funcionar como um verdadeiro cavalo de Troia, fragilizando ainda mais nossas defesas democráticas.

Demétrio Magnoli - Da vacina ao protesto

- Folha de S. Paulo

Se houvesse abundância vacinal e a obrigação de optar, qual delas eu escolheria?

 “Qual vacina devo tomar, doutor?”. Nos EUA, na Europa e até no Brasil, médicos são confrontados com a inédita indagação. Jamais perguntamos a marca da vacina tríplice de nossos filhos ou do imunizante contra a febre amarela. Contudo, com a pandemia de Covid, a população mundial foi exposta a um curso relâmpago de imunologia cujo efeito colateral é a obsessão por comparar vacinas. Por que não selecionar a vacina como escolhemos automóveis ou celulares?

Mike Ryan, da OMS, deu a resposta certa e óbvia: a decisão racional é tomar o primeiro imunizante que lhe for oferecido. O raciocínio justifica-se por duas razões, uma “egoísta”, outra “altruísta”. A primeira: como todas as vacinas aprovadas previnem a imensa maioria dos casos graves, vacinar-se logo é proteger sua própria saúde. A segunda: cada pessoa imunizada contribui na redução da pressão sobre o sistema hospitalar.

Hélio Schwartsman - O ocaso das CPIs

- Folha de S. Paulo

Elas se tornaram uma sombra daquilo que foram no passado

Parece-me corretíssima a liminar exarada por Luís Roberto Barroso, do STF, que determina a abertura da CPI da Covid-19 no Senado.

Os três requisitos legais para a instalação estão dados: assinatura de 1/3 dos senadores, existência de fato determinado a investigar e prazo de vigência. No mais, a decisão de Barroso está de acordo com a jurisprudência do Supremo, que já mandou abrir outras comissões no passado.

Comissões parlamentares de inquérito, vale lembrar, são um dos instrumentos à disposição das minorias para exercer a função de fiscalização de governos —uma das principais missões das oposições—, daí que nem a Constituição nem os regimentos admitem que seu funcionamento seja obstado pela vontade da maioria e muito menos pela do presidente da Casa.

CPI da Covid-19 é, portanto, muito bem-vinda. Não vejo, porém, como deixar de observar que as CPIs de hoje se tornaram uma sombra daquilo que foram no passado.

Cristina Serra - Esquadrão da morte bolsonarista

- Folha de S. Paulo

O Brasil submerge no 'inferno furioso' da pandemia.

Nesta semana, o esquadrão da morte bolsonarista conseguiu avanços importantes no Congresso. No Senado, a esperteza de um aliado garantiu a entrada em vigor das normas que facilitarão o acesso a armas e munições. Milícias, hostes militarizadas, criminosos em geral agradecem.

A Câmara aprovou projeto de lei que implode a fila única da vacinação e rasga o princípio da solidariedade social que orientou a criação do Sistema Único de Saúde. Ao permitir que empresas privadas comprem vacinas, institucionaliza a vacina "censitária", por critério de renda, não de vulnerabilidade.

O projeto, que ainda vai ao Senado, atende à mentalidade de capatazia do empresariado, que alega a necessidade de vacinar sua mão de obra. Se tem pouca vacina, que morram os velhos, os doentes, os mais fracos. É cruel assim. É bárbaro assim. Pensamento não muito distante da facção empresarial que se reuniu com o marginal da democracia em repasto noturno: bilionários da Forbes, o dinheiro grosso dos bancos, patrões da mídia e a bolorenta Fiesp.

Alvaro Costa e Silva - Geosmina x coronavírus

- Folha de S. Paulo

Ao sentir o cheiro e o gosto da água, a carioca descobre que felizmente não contraiu Covid

Já foi notado, mas não devidamente estudado, o estranho fenômeno segundo o qual presidentes do Brasil, quando em viagem ao exterior, despem-se de toda responsabilidade. Confrontados lá fora com a realidade do país, admitem que é preciso haver mudanças. Mas falam como se não tivessem nada a ver com o peixe. Fernando Henrique foi um exemplo notável desse comportamento, e Lula não lhe ficou atrás. Bolsonaro não conta: o planeta inteiro sabe que ele é o maior culpado pela nossa desgraça atual, da qual é orgulhoso divulgador.

Cláudio Castro, governador em exercício (e põe exercício nisso, pois ocupa o cargo desde agosto), adaptou a ocorrência no estrangeiro para uso doméstico. Nada do que acontece no Rio é com ele, nada lhe diz respeito, faz de tudo para passar despercebido. Se pudesse vivia a cantar --sua grande paixão-- em cultos de igreja e rodas de pagode.

Marcus Pestana* - O falso dilema entre saúde e economia

Nenhum de nós poderia imaginar que o Brasil chegaria a mais de 345 mil mortes. Passamos os EUA em mortes diárias. A razão é simples: a diferença de ritmo na imunização. O SUS resiste heroicamente. A Saúde Suplementar dá respostas aos seus 47 milhões de usuários. Mas o horizonte de vacinação ainda é incerto.

Não havia registro de mortes por desassistência hospitalar. Agora, dada a velocidade de propagação das novas variantes do vírus, formaram-se filas para acesso às UTIs e muitos estão indo à óbito sem conseguir acesso a tratamentos intensivos. Sem falar na ameaça de desabastecimento de medicamentos essenciais como sedativos, anestésicos e anticoagulantes.

Paralelamente, estabeleceu-se a polêmica sobre a compra privada de vacinas, o que quebraria o sentido democrático e epidemiológico de organização das prioridades na fila de imunização.

Desde o início da pandemia, em março de 2020, erramos ao estabelecer um falso dilema entre saúde e economia. Cada um de nós só estará salvo, quando todos estiverem livres do vírus. Inclusive a economia. É natural a dificuldade de governadores e prefeitos para imporem medidas restritivas. Mais uma vez, faltou coordenação e sincronia. A decretação de lockdowns e assemelhados é necessária enquanto não superarmos o atraso na vacinação. Mas, as medidas de distanciamento social têm que ser acompanhadas de apoios compensatórios aos mais pobres e às empresas.

Baudelaire chega aos 200 anos na hora em que flanar pode levar à morte por Covid

Pandemia e controle do tempo pela tecnologia mudam de vez o hábito de vagar pelas ruas, consagrado pelo poeta francês

 Francesca Angiolillo / Folha de S. Paulo

 SÃO PAULO - "Paris é outra (a forma das cidades muda/ Mais rápido, bem mais, que um coração mortal." Mas será mesmo que os versos de Charles Baudelaire ainda estão certos? Muda mais rápido nosso coração ou o nosso entorno?

Nos 200 anos do poeta francês, que se completam nesta sexta, sua mais difundida criação talvez esteja prestes a se modificar para sempre.

Não se trata de uma nova descoberta relativa ao monumental "As Flores do Mal" —de cuja mais recente tradução, por Júlio Castañon Guimarães, para a Companhia das Letras, veio a tradução dos versos acima, retirados de "O Cisne".

O que as circunstâncias vêm alterando é o hábito de flanar. Resistirá ao confinamento o vagar sem destino pelas ruas? E ao controle do tempo imposto pelos aplicativos?

Quem foi Baudelaire

Nascido em 9 de abril de 1821, há 200 anos, Charles Baudelaire rompeu com o romantismo vigente ao lançar ‘As Flores do Mal’, em 1857. O livro foi logo censurado e só voltou a sair em 1861, sem 6 de seus poemas, vistos como imorais —mas com outros 35 novos. Paris, com os tipos e os vícios da rua, adentrava a literatura, e a poesia nunca mais foi a mesma. Baudelaire, que foi também crítico, viveu uma vida boêmia e morreu aos 46 anos, vítima da sífilis

É certo que a "flânerie" já era reconhecida pela literatura desde antes —Balzac, duas décadas mais velho que Baudelaire, a chamou de "gastronomia do olho". Mas é a partir da modernidade baudelairiana que o costume se cristaliza como um topos da criação artística.

A Paris que Baudelaire identifica como outra é a do Segundo Império, remodelada pelas obras do barão de Haussmann, prefeito do departamento do Sena entre 1853 e 1870, e que o poeta viu nascer. Então se rasgou entre seu velho casario medieval a trama de bulevares que se tornou o símbolo da cidade moderna.

Ela já se modificou e, no pós-pandemia, deve mudar novamente, inclusive para que as pessoas ganhem mais espaço para caminhar. Como se exportaram os traçados haussmanianos para Buenos Aires ou para o Rio de Janeiro, no fim do século 19 e começo do 20, a caminhada sem propósito também se exportou.

Esse se deixar levar pela e na observação da cidade é costume que conforma boa parte da escrita de Baudelaire e cujo valor ele ressalta em outro de seus textos mais célebres, "O Pintor da Vida Moderna".

Poesia | Charles Baudelaire - O Cisne

"Andrômaca, só penso em ti! O fio d'água
Soturno e pobre espelho onde esplendeu outrora
De tua solidão de viúva a imensa mágoa,
Este mendaz Simeonte em que teu pranto aflora,

Fecundou-me de súbito a fértil memória,
Quando eu cruzava a passo o novo Carrossel.
Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história
Depressa muda mais que um coração infiel);

Só na lembrança vejo esse campo de tendas,
Capitéis e cornijas de esboço indeciso,
A relva, os pedregulhos com musgo nas fendas,
E a miuçalha a brilhar nos ladrilhos do piso.

(...)

Andrômaca, às carícias do esposo arrancada,
De Pirro a escrava, gado vil, trapo terreno,
Ao pé de ermo sepulcro em êxtase curvada,
Triste viúva de Heitor e, após, mulher de Heleno!

E penso nessa negra, enferma e emagrecida,
Pés sob a lama, procurando, o olhar febril,
Os velhos coqueirais de uma África esquecida
Por detrás das muralhas do nevoeiro hostil;

Em alguém que perdeu o que o tempo não traz
Nunca mais, nunca mais! nos que mamam da Dor
E das lágrimas bebem qual loba voraz!
Nos órfãos que definham mais do que uma flor!

Assim, a alma exilada à sombra de uma faia,
Uma lembrança antiga me ressoa infinda!
Penso em marujos esquecidos numa praia,
Nos párias, nos galés... e em outros mais ainda!"

Dedicado a Victor Hugo.

(in: As Flores do Mal. Poesia e Prosa Poética, edição organizada por Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p.172-174)