segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Fernando Gabeira - Mil dias de assombração

O Globo

O governo Bolsonaro comemora mil dias. Já escrevi e falei sobre o tema, analisando a trajetória política desse experimento. Mas ainda não parei para me perguntar como foi possível manter, ainda que de forma precária, a sanidade mental neste país enlouquecido.

Jamais poderia imaginar um governo tão singular como o de Bolsonaro, no qual crimes e trapalhadas se entrelaçam de tal maneira, tragicômico. Quando comecei a entender de política, o confronto esquerda-direita tinha outros contornos. Nosso bairro proletário era getulista. A simpatia juvenil estava ao lado dos vizinhos. Mas havia gente como meu pai, que votava no brigadeiro Eduardo Gomes.

A encarnação da direita naqueles anos tinha outro perfil. Votem no brigadeiro, diziam as mulheres que o apoiavam, ele é bonito e é solteiro. Até um doce foi criado em homenagem a ele.

Quando Bolsonaro postou aquela famosa cena de golden shower, perguntando do que se tratava, percebi que estávamos num outro momento histórico. A clássica e austera direita dava margem a um sensacionalismo radiofônico que, sob a máscara de moralidade, usava as cenas de crime e sexo para garantir audiência.

Quando o então secretário de Cultura, Roberto Alvim, fez um discurso imitando o líder nazista Joseph Goebbels, dizendo que a arte brasileira seria heroica e imperativa, percebi também um novo tom.

Carlos Pereira - Conversão moral importa?

O Estado de S. Paulo

Democracia não requer governantes com ela comprometidos

Mesmo diante do mais acachapante “ato de contrição” do presidente Jair Bolsonaro, com a sua “declaração à nação”, como uma tentativa de se redimir dos ataques feitos a ministros da Suprema Corte e de ameaças de não cumprimento das suas decisões, muitos têm vaticinado que a “conversão” do presidente aos ritos, procedimentos e liturgias da democracia não seria sustentável. Acreditam que é só uma questão de tempo para que a dissimulação de Bolsonaro fique estampada e que a democracia brasileira venha finalmente a sucumbir.

Vaticínio semelhante tem sido feito por alguns analistas, tais como Robert Kagan (The Washington Post), Martin Wolf (Financial Times) ou David Frum (The Atlantic), em relação aos riscos que a democracia americana estaria correndo diante de um possível retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos em 2024. Argumentam que, diante da baixa performance do governo Joe Biden, com sua popularidade diminuindo, abrir-se-ia caminho para que o ex-presidente retornasse a Casa Branca, o que, para esses analistas, necessariamente acarretaria uma crise da democracia liberal americana que eventualmente evoluiria para o seu colapso.

Demétrio Magnoli - Merkel, a chanceler minimalista

O Globo

No seu longo adeus, Angela Merkel pode ainda se tornar a mais longeva chanceler da Alemanha republicana, ultrapassando seu mentor Helmut Kohl. Mas, ao contrário de Kohl e de outros dois icônicos primeiros-ministros do pós-guerra, Merkel não deixa um legado óbvio, compacto, sintetizável numa única pincelada.

O democrata-cristão Konrad Adenauer (1949-63), arquiteto e primeiro chanceler da RFA, fundou a Alemanha moderna, atlanticista e europeia. A Otan — o alinhamento geopolítico com os EUA — e o projeto da Comunidade Europeia — a parceria estratégica com a França — são seus legados.

Willy Brandt (1969-74) reinventou a social-democracia alemã, inscrevendo o antigo partido de Karl Marx na moldura do Ocidente da Guerra Fria, uma obra completada por seu sucessor, Helmut Schmidt. Além disso, num lance de gênio, fissurou a armadura ideológica da Alemanha Oriental com sua Ostpolitik, a política de abertura para o Leste, lançando a semente da reunificação.

Mirtes Cordeiro* - Os idosos dos tempos de agora

Falou e Disse

Cada vez fica mais distante a ideia das pessoas idosas em casa, sentadas em suas cadeiras à espera de ajuda dos familiares, ou acomodadas com os problemas impostos pela vida.

O mês de outubro teve início com a comemoração pelo Dia Internacional da Pessoa Idosa. A data foi instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1991, e serve como um alerta para a sociedade civil sobre a necessidade de proteção e de cuidados com os idosos.

De repente, me descobri uma pessoa idosa. Aconteceu quando decidi parar de trabalhar, após viver e trabalhar durante 72 anos.

A vida é assim; a gente nasce, cresce, passa por vários momentos carregados de felicidade, amor, afeto, desilusão, angústia, satisfação e segue em busca de algo a cada dia, sempre o que consideramos melhor e possível para nós e para o outro. Sim, porque no trajeto a gente vai agregando maridos ou companheiros, filhos, amigos, os amigos dos amigos, a vizinhança, os gatos e os cachorros… tive vários.

No entanto, é o trabalho que marca a vida desde cedo. Primeiro pela necessidade de sobrevivência, mas também porque o trabalho exerce um papel fundamental na vida do ser humano na relação com a natureza e através das relações, nós, homens e mulheres, transformando as nossas vidas e nossas consciências pelo exercício da criatividade, da inteligência, em magia da utopia, o “lugar” ideal que não é o agora, na concepção grega da palavra.

Bruno Carazza* - Contagem regressiva

Valor Econômico

Duas certezas e uma dúvida a um ano das eleições

Em 2018, Bolsonaro subverteu a lógica das campanhas políticas brasileiras. Sua coligação era composta apenas pelos nanicos PSL e PRTB, e ele não firmou alianças nos Estados. Na distribuição do tempo de propaganda no rádio e na TV, ficou com apenas 8 segundos por bloco, mais 11 inserções diárias de 30 segundos cada - em comparação, Geraldo Alckmin (PSDB) tinha 5 minutos e 32 segundos por bloco, mais 434 comerciais de meio minuto ao dia.

O diretório bolsonarista declarou gastos de R$ 2.456.215,03, vindos essencialmente de financiamento coletivo. Os valores eram muito inferiores aos de seu rival no segundo turno, Fernando Haddad (PT), cujas despesas ficaram em R$ 37.503.104,50, sendo que 95,12% tiveram origem nos fundos eleitoral e partidário.

O trunfo de Bolsonaro não estava na arrecadação, na propaganda gratuita ou nas coligações partidárias, sequer em dobradinhas com lideranças regionais. Em janeiro de 2018, o então candidato já contava com uma rede de 5 milhões de seguidores no Facebook, 800 mil no Instagram e 850 mil no Twitter, além de 400 mil inscritos em seu canal no Youtube - sem falar num contingente incalculável de grupos de WhatsApp e outros aplicativos de mensagens.

Sergio Lamucci - O cenário externo se complica para o Brasil

Valor Econômico

A um ambiente já repleto de incertezas domésticas, soma-se um quadro internacional mais adverso

A expectativa de um crescimento anêmico da economia brasileira em 2022 se baseia especialmente num conjunto de problemas domésticos, como as elevadas incertezas fiscais e políticas, o agravamento da crise hídrica e uma inflação persistente e disseminada, que requer juros cada vez mais altos. A novidade das últimas semanas é que o cenário internacional se tornou mais complicado, uma evidente má notícia para países emergentes como o Brasil.

A principal fonte de indefinição externa agora é a China, que enfrenta as consequências das dificuldades da Evergrande, a gigante do setor imobiliário, e passa por uma crise energética local - aliás, o risco de uma crise de energia de proporções globais aumentou, como se vê na alta dos preços do gás e do petróleo. Além disso, aproxima-se o momento em que o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) vai começar a retirada dos estímulos monetários, provavelmente já em novembro.

Há, obviamente, muita indefinição sobre as projeções de crescimento para 2022. No setor privado, há desde estimativas muito baixas, como o 0,4% da MB Associados e o 0,5% do Itaú Unibanco, até previsões entre 1,5% e 2%, como o 1,6% do Bradesco e o 1,8% da Tendências Consultoria Integrada. Mesmo essas projeções um pouco mais elevadas não são animadoras, além de serem consideravelmente menores do que os 2,5% do Ministério da Economia, uma previsão baseada na visão invariavelmente otimista do ministro Paulo Guedes e do secretário de Política Econômica, Adolfo Sachsida. O consenso do mercado para 2022 está em 1,57%, segundo o Boletim Focus do Banco Central (BC). Em 2021, o crescimento deve ficar por volta de 5%, estimam os analistas.

Marcus André Melo* - Groko à brasileira

Folha de S. Paulo

As regras não apenas importam: são decisivas

O UK IP obteve em 2015 12,6% dos votos, mas conquistou apenas uma única cadeira (ou 0,15% do total de 650) no parlamento britânico. No entanto, nas eleições para o parlamento europeu, no mesmo ano, ele foi o partido mais votado, o que lhe garantiu 24 cadeiras e a maior bancada.

Quatro anos mais tarde, o partido mudou o nome —para Brexit Party—, mas sequer obteve uma cadeira. Nas eleições para o parlamento europeu, no mesmo ano, obteve ainda mais votos —31% do total— aumentando o tamanho da bancada para 29: sete vezes o número de cadeiras (4) do Partido Conservador, da então primeira ministra Theresa May.

Celso Rocha de Barros – Duas perguntas a Paulo Guedes

Folha de S. Paulo

Você trabalhava com o gabinete paralelo, com a turma da Prevent Senior?

Paulo Guedes é blindado por boa parte do establishment brasileiro, inclusive pela mídia. O motivo é simples: 100% dos analistas concordam que, se Guedes for demitido, Bolsonaro o substituirá por um jumento cracudo com uniforme da SS.

A blindagem persiste mesmo com os resultados ruins que Guedes acumula. Desemprego e inflação estão altos e a população briga por carcaças na porta dos açougues. Guedes gosta de se gabar porque o PIB brasileiro caiu menos do que o de outros países em 2020, mas isso não é mérito dele. Os pesquisadores do Centro de Pesquisa em Macroeconomia da Desigualdade da Universidade de São Paulo calcularam quanto teria sido a queda do PIB de 2020 se o auxílio emergencial não tivesse sido o proposto pelo Congresso, mas o proposto inicialmente por Guedes. O resultado com o auxílio-Guedes teria sido de -7,9%, bem pior do que os -4,1 % obtidos com o auxílio-Congresso. Dar ao governo Bolsonaro o crédito pelo auxílio do Congresso é como dizer que foi o Jair quem comprou as vacinas do Dória.

Até aí, já tivemos vários ministros da economia que fracassaram. O que eu quero é perguntar duas outras coisas para o ministro Paulo Guedes.

Guedes, você, ou alguém da sua equipe, ajudou o Jair a matar centenas de milhares de brasileiros durante a pandemia? E: Guedes, onde você estava no dia 7 de setembro enquanto o Jair tentava um golpe de Estado?

Luiz Carlos Azedo - A Lava-Jato na eleição

Correio Braziliense / Estado de Minas, 3/10/2021

Mantém-se um quadrante ético na disputa eleitoral. Os demais são a crise sanitária, a economia popular e a questão democrática

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi absolvido em 19 dos 21 processos movidos contra ele pela Operação Lava-Jato, desde a anulação de suas condenações nos casos do triplex de Guarujá e do sítio de Atibaia, em razão de a 13a Vara Federal de Curitiba não ser o “juízo natural” de ambos os processos, na interpretação do ministro Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin — como sempre questionou a defesa, é bom lembrar. No dia 4 de março passado, a maioria da Corte decidiu por 8 a 3 que quatro processos que lá tramitavam teriam que ser refeitos. O STF também considerou o ex-juiz federal Sergio Moro parcial no julgamento.

A condenação de Lula — confirmada em segunda instância pelo Tribunal Regional Federal da 4a. Região (TRF-4, em Porto Alegre) — o havia excluído da disputa eleitoral de 2018, na qual era favorito, o que abriu caminho para a eleição do presidente Jair Bolsonaro. Entretanto, a decisão do Supremo sobre o juiz natural alterou completamente o cenário, fazendo com o ex-presidente Lula voltasse a ser uma alternativa de poder. Na pesquisa Ipespe divulgada quinta-feira passada, por exemplo, Lula é o favorito à Presidência. Aparece com 30% de intenções espontâneas de votos, contra 23% do presidente Bolsonaro; Ciro Gomes (PDT) tem 2%; e os demais, 1% (Sergio Moro, João Doria, João Amoedo e Henrique Mandetta) ou não pontuam.

Antonio Risério* - Esquerda: embate entre democráticos e identitários trava avanço

A raça, o gênero, a identidade se tornaram as bases de uma ideologia nascida nos EUA, que pretende substituir o socialismo em crise, diz Pascal Bruckner

O Estado de S. Paulo /Aliás

Vemos hoje, em plano internacional, a esquerda inteiramente rachada. De uma parte, uma esquerda democrática, universalista. De outra, a chamada esquerda identitária o udi ver sitária, inscrita no multiculturalismo, com sua ânsia de divisórias, pregando “apartheids”e guetificações. E a disputa ideológica entre essas duas esquerdas está deflagrada.

Areação ao identitarismo cresce em países da Europa e nos EUA. No Brasil, ao contrário, a discussão não existe. Temos hoje uma esquerda de costas para o mundo, fugindo dos debates da esquerda internacional. Oque vigora aqu ié a acomodação, compartidos de esquerda evitando confrontos internos, ocupados apena sem aumentar o número de seus militantes, passando ao lar godas questões que possam provocar dissenso.

Raras vezes, causas justas, como as dos identitários, terão se pervertido tanto pelos descaminhos da ignorância e do autoritarismo. Caiu-se numa mescla de ceticismo epistêmico, na teoria, e de delírio persecutório na prática, descambando para o fundamentalismo e o fascismo. Tudo é conspiração contra os “oprimidos”. O poder está em todo lugar–a verdade, em nenhum. E não teremos como construir um futuro coletivo com base na fragmentação e no ne os segregacionismo, que caracterizam o identitarismo, hoje ideologia dominante no “establishment” acadêmico-midiático e em parte do ambiente empresarial.

Recentemente, Alejo Schapire observou que esta esquerda multicultural-identitária teve de dar uma tremenda guinada, para jogar fora o antigo ideário marxista e adis posição democrática, afim de celebrara intolerância, o puritanismo, as ditaduras extra ocidentais, o obscurantismo, o neorracismo de um modo geral. Em O Fim da Utopia, Russell Jacoby já assinalava: “Estamos assistindo não apenas à derrota da esquerda, mas à sua conversão e talvez inversão”.

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Um projeto para o País

O Estado de S. Paulo

Mais do que ser anti-Lula ou anti-Bolsonaro, o que faz falta é ter um projeto para o País. Essa é a melhor resposta contra as forças do atraso

Com recorde de desaprovação popular e sem ter o que apresentar como realização de seu governo, Jair Bolsonaro repete, com frequência crescente, o seu mantra: não fosse ele, o PT teria voltado ao poder. Na lógica bolsonarista, o governo não precisa apresentar nenhum resultado. O dever de Bolsonaro na Presidência da República se resumiria apenas e tão somente a manter Lula longe do Palácio do Planalto.

Essa tática, que parece tão resolutamente antipetista, é uma farsa, já que atende perfeitamente aos interesses do PT. A quase completa ausência de resultados do governo Bolsonaro é o cenário dos sonhos de Lula. Não há como negar. O desgoverno de Bolsonaro é caminho muito favorável para Lula voltar ao poder.

Mas o mantra bolsonarista – não fosse Bolsonaro, o PT teria voltado ao poder – tem ainda outra evidente contradição. Nenhum candidato é eleito apenas para ocupar um espaço vazio. Jair Bolsonaro não foi eleito para impedir que Lula, diretamente ou por meio de algum de seus postes, voltasse ao poder. Bolsonaro foi eleito – eis a verdade que o bolsonarismo tenta esconder – para governar.

É acintoso o desconforto de Bolsonaro e de seus apoiadores com essa realidade tão básica: um presidente da República é eleito para governar. Quando confrontados com a ausência de resultados do governo Bolsonaro, seus apoiadores logo revidam com a subespécie do mantra bolsonarista: apesar de tudo, em 2022, no segundo turno com Lula, voto é em Bolsonaro.

Deve-se ressaltar que a manobra também é comum entre os lulistas. Quando confrontados com o legado de corrupção, incompetência e negacionismo do PT, os lulistas logo revidam: mas, num segundo turno entre Lula e Bolsonaro, em quem você vota? E ficam indignados se o interlocutor mostra que o exercício dos direitos políticos numa democracia é necessariamente mais amplo do que essa asfixiante disjuntiva.

Poesia| João Cabral de Melo Neto - Tecendo a Manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.