sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Vera Magalhães - Guedes sem teto e sem chão

O Globo

Não é de hoje que Paulo Guedes cede nacos de suas propaladas convicções liberais ao bolsonarismo. Se, no início, o ministro da Economia ainda tentava dar ares filosóficos a essa capitulação, contando, talvez para si mesmo, uma narrativa do encontro da “ordem” com o “progresso”, diante da clara inviabilidade de sustentar qualquer um dos dizeres da bandeira nos dias de hoje, ele resolveu só deixar de resistir e ceder as chaves do cofre para o projeto de reeleição a todo custo de Jair Bolsonaro.

O teto de gastos parecia ser o último umbral que Guedes não estava disposto a cruzar rumo ao populismo indisfarçado para reeleger um presidente de resto indefensável, mas a quem ele insiste em servir, aparentemente a qualquer preço.

A cada pedaço de coerência que negociava, Guedes explicava — de novo a si mesmo, à imprensa e ao mercado —que o fazia para que sua saída do posto não resultasse na entrada de algum aventureiro que explodiria o teto e o compromisso fiscal. Aos que o questionavam, o ministro sempre tinha o argumento de que, sem ele, a vaca iria para o brejo.

Bernardo Mello Franco - Queiroga no palanque

O Globo

O ministro Marcelo Queiroga já havia rasgado o diploma de médico para não contrariar as ordens de Jair Bolsonaro. Agora quer transformar a vassalagem em capital eleitoral.

Ontem o doutor foi à Paraíba para a inauguração de um trecho atrasado da transposição do rio São Francisco. Sem máscara, subiu no palanque e fez discurso de candidato. Ele é cotado para disputar o Senado ou o governo de seu estado natal.

De colete verde-oliva, o aspirante a político se comparou ao conterrâneo Epitácio Pessoa, que governou o país na época da gripe espanhola. “O presidente Bolsonaro chamou outro paraibano para ajudá-lo a vencer a pandemia da Covid-19”, empolgou-se.

O ministro atacou governadores que tentaram driblar a demora do Planalto a comprar imunizantes. “Quantas vacinas eles trouxeram? Nenhuma”, provocou. Ele omitiu o fato de que o Consórcio Nordeste encomendou 37 milhões de doses da Sputnik V, mas o negócio foi barrado pela Anvisa.

Eliane Cantanhêde - Bolsonaro, a ilha

O Estado de S. Paulo

Bolsonaro está cercado de desgraças por todo lado, a pandemia é a pior delas

Ao reagir ao relatório final da CPI da Covid imitando uma gargalhada tétrica do pai, o senador Flávio Bolsonaro mostra o quanto as verdades narradas em mais de mil páginas preocupam o núcleo do poder, inclusive porque o presidente Jair Bolsonaro já se debate num turbilhão de problemas que traga o Brasil e os brasileiros para o fundo do poço.

Se já não tem uma única resposta razoável para o relatório da CPI e os nove crimes que lhe são atribuídos durante a pandemia, tudo fica muito pior com inflação, miséria, famílias disputando ossos, a classe média irada com supermercado, gasolina e luz, as empresas apavoradas com tudo isso, mais juros e dólar e o mercado em polvorosa.

Só faltava Bolsonaro enterrar o teto de gastos, como fez com o Plano Real. Não falta mais. Paulo Guedes derreteu. Sua equipe bateu em retirada. Logo, a CPI não é o único flanco, é apenas mais um. E que flanco!

Começa agora um empurraempurra. A PGR adianta que as ações penais contra Bolsonaro já vêm sendo descartadas por iniciativa da própria procuradoria e que por aí não há muito o que fazer, só sobra o crime de responsabilidade, que tem natureza política e depende da Câmara. Mas a Câmara também finge que não é com ela.

Luiz Carlos Azedo - A implosão da equipe econômica

Correio Braziliense

Se havia alguma esperança no sentido de garantir o teto de gastos, foi volatilizada por Paulo Guedes, que jogou a toalha nas negociações com o Centrão.

O deputado federal Hugo Motta (Republicanos-PB), ao apresentar o seu novo parecer sobre a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) dos Precatórios, implodiu a equipe econômica do governo, apesar de o ministro da Economia, Paulo Guedes, não ter pedido o boné — ainda. O texto cria, artificialmente, um espaço fiscal de R$ 83 bilhões, em 2022, o que permitiria o pagamento do Auxílio Brasil no valor de R$ 400 até o fim do mandato do presidente Jair Bolsonaro. A gota d’água foi a manobra fiscal do cálculo da inflação, ao mudar o período de cálculo do IPCA (o índice oficial de inflação).

Num passe de mágica, o relator da PEC dos Precatórios pretende aumentar o orçamento da União em R$ 39 bilhões, mudando o período de correção do teto de gastos, que deixará de ser feito de junho a junho, para ser de janeiro a dezembro. O problema é que a mudança, digamos, não altera a realidade da criação de riqueza no Brasil — ou seja, as taxas de crescimento —, nem a desvalorização do real ante o dólar — isto é, a alta do custo de vida. A economia é como os pássaros, que podem nadar, mergulhar, cantar, lutar e até falar, mas não podem dar leite.

Vinicius Torres Freire - Do golpe político ao golpe econômico

Folha de S. Paulo

Teto estava para cair, Bolsonaro-Guedes nada fizeram para reformar a casa e a crise explodiu

Era possível engordar o Bolsa Família sem chutar o pau do teto de gastos? Com alguma mutreta, era. Seria uma gambiarra até tolerada por alguns porta-vozes dos donos do dinheiro grosso. Por exemplo, seria possível colocar parte da despesa com precatórios, uns R$ 50 bilhões, fora do teto de gastos, dando uma desculpa furada para manter as aparências. O governo foi muito além da imaginação.

Com a mutreta básica dos precatórios, seria possível bancar o gasto de uns R$ 82 bilhões com o "Auxílio Brasil", despesa quase R$ 47 bilhões maior do que a orçada para o Bolsa Família em 2022.

Mas então faltariam R$ 18 bilhões, por baixo, para corrigir o gasto extra imprevisto com Previdência etc., pois a inflação será maior que a estimada no projeto de lei do Orçamento de 2022. Faltariam ainda uns R$ 18 bilhões extras para bancar as emendas paroquiais que sustentam o poder dos líderes do centrão. Faltaria ainda dinheiro para o Bolsa Caminhoneiro que Bolsonaro prometeu. Etc.

Não haveria dinheiro para os cerca de 18 milhões de pessoas que vão deixar de receber o auxílio emergencial e não receberão Bolsa Família/Auxílio Brasil, note-se.

Reinaldo Azevedo - Casa engraçada tinha teto e mais nada

Folha de S. Paulo

Se alguém sabe como responder agora, e não depois, às urgências da miséria sem furar o teto, que nos diga já!

Sou favorável ao teto de gastos. Se ele for possível. Alinho-me com todas as "ideias magras e severas", para empregar a expressão de um dos meus prediletos, desde que sejam ética e moralmente aceitáveis e resolvam problemas. Se, ao contrário, a solução se torna causa de novos sortilégios, busque-se outro caminho.

Maquiavel nunca escreveu que "os fins justificam os meios". Mas dá para entender por que se faz tal confusão. No capítulo 18 de "O Príncipe", diz que o governante sábio não tem de se manter fiel às suas promessas quando já se extinguiu a causa que o levou a fazê-las.

Transcrevo um trecho: "Busque, pois, um príncipe triunfar das dificuldades e manter o Estado, que os meios para isso nunca deixarão de ser julgados honrosos, e todos os aplaudirão. Na verdade, o vulgo sempre se deixa seduzir pelas aparências e pelos resultados".

Bruno Boghossian - A turma 'eu votei no Guedes'

Folha de S. Paulo

Investidores e simpatizantes terão que decidir até onde vão carregar a defunta agenda ultraliberal

A turma que dizia "eu votei no Paulo Guedes" e tentava camuflar o apoio a Jair Bolsonaro em 2018 parece ter entrado numa fria. Depois que o ministro aceitou profanar um dos principais dogmas da cartilha ultraliberal, alguns investidores, empresários e simpatizantes terão que decidir até que ponto aceitam carregar o caixão em que essa agenda repousa.

Bolsonaro e o núcleo político do governo instalaram uma chaminé no teto de gastos. A ideia é escapar da regra que limita o aumento de despesas e ampliar o Bolsa Família até o fim do mandato. Guedes repetia que desrespeitar o mecanismo seria irresponsável e ameaçou ir para casa se o governo recorresse a estripulias. Agora, ele endossa a confusão.

Hélio Schwartsman - Bolsonaro ficou inteligente?

Folha de S. Paulo

Ele sabe traçar objetivos, como a busca pela reeleição

Jair Bolsonaro é inteligente? De quando em quando lanço essa pergunta, sempre definindo inteligência como a capacidade de traçar objetivos e seguir uma estratégia elaborada para alcançá-los.

O presidente passa com facilidade pela primeira parte do teste. A meta que ele se propôs é a reeleição. Faz sentido. É o melhor caminho para evitar a cadeia depois que ele perder as imunidades e o foro especial. O plano B seria obter um passaporte italiano e voar para Roma no dia 31/12/2022. A Itália, como o Brasil, não extradita nacionais.

É na segunda parte do teste que os cálculos presidenciais se tornam mais duvidosos. Até que ele começa bem. Tenta viabilizar a reeleição turbinando o Bolsa Família e o rebatizando com um nome mais facilmente identificável à sua administração. É meio simplório, mas já deu certo no passado. O próprio Bolsonaro experimentou um pico de popularidade no ano passado, enquanto o governo pagava o auxílio de R$ 600.

Ruy Castro - Ria disso, Bolsonaro

Folha de S. Paulo

O deboche da família Gargalhada contra o relatório da CPI é só uma bravata para a galera

Flavio Bolsonaro proclamou alegremente que seu pai, Jair Bolsonaro, deve ter reagido às acusações da CPI da Covid com uma gargalhada. Reproduziu a dita gargalhada para as câmeras e acrescentou: "Não tem o que fazer diferente disso". Quis dizer que Jair "Gargalhada" não está nem aí para as tremendas acusações —talvez porque conte com seu engavetamento pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, escolhido por ele à la carte para o cargo e mantido pelo cabresto sob a possibilidade de nomeá-lo para o STF.

Durante séculos, a Justiça no Brasil enxergou-se com respeito e assim foi tratada. Nomes como Diogo Feijó, Nabuco de Araújo, Clovis Bevilacqua, Pontes de Miranda e Evandro Lins e Silva serão sempre pronunciados com reverência. Ninguém exigirá que Augusto Aras se lhes compare, mas ele ainda tem uma chance de escolher entre passar à história ao lado de Raquel Dodge ou como um Geraldo Brindeiro 2.0.

Maria Cristina Fernandes – Troca de mote repagina disputa

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Quatro anos depois de a corrupção e a segurança pública dominarem o debate, a inflação, o desemprego e a penúria mudam eixo do ano eleitoral, cuja contagem regressiva já começou

Entre julho e outubro deste ano, o número de mortos pela covid-19 caiu pela metade. No mesmo período, a economia substituiu a saúde como o maior problema dos brasileiros. Só a corrupção e a violência permanecem na mesma rabeira das preocupações. É assim que começa a contagem regressiva dos 12 meses que separam o Brasil das eleições de 2022. Nem a presença de Jair Bolsonaro aproxima esta disputa daquela de 2018 porque seus passivos, desta vez, não têm como ser ignorados e suas estratégias, em grande parte, já se tornaram conhecidas. O que não significa que seja totalmente controláveis.

No ano da última eleição presidencial a inflação não fez cócegas. Fechou o ano com um índice equivalente a menos da metade do que deve ser registrado em 2022. O desemprego parecia alto, mas havia 1,6 milhão a mais de brasileiros ocupados naquele ano em relação ao que se registra hoje. Aqueles que conseguem se manter trabalhando ganham, em média, menos do que o faziam no ano em que foi eleito Jair Bolsonaro. A renda média do trabalho nas regiões metropolitanas chegou ao menor patamar dos últimos dez anos. Contribuiu para esta queda, principalmente, a redução no rendimento dos mais pobres.

César Felício - Terra de ninguém

Valor Econômico

Pacheco é especialista em se aproveitar de vácuos

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, é um político tradicional apenas na aparência. Ele tem pose, discurso e prática de político tradicional, mas na realidade não é. Sua carreira pública tem menos de oito anos de idade. Uma trajetória tão meteórica quanto a sua, de “outsider” para deputado federal em 2014 até presidenciável em 2021, não é normal. Só pode começar a ser compreendida quando se observa o que aconteceu em Minas Gerais nos últimos tempos. A possível opção presidencial do PSD em 2022 é um fruto da destruição de lideranças que marcou a década passada, no qual o caso mineiro é emblemático.

Minas Gerais tornou-se uma terra de ninguém, do ponto de vista político. A destruição da imagem pública de Aécio Neves (PSDB) e o governo catastrófico de Fernando Pimentel (PT), dizimaram as forças políticas que tracionavam o Estado desde os anos 90. Figuras do establishment mineiro tiveram que encerrar suas trajetórias. Entraram em cena dois personagens da antipolítica, o governador, Romeu Zema (Novo) e o prefeito de capital, Alexandre Kalil (PSD). São os quadros mais importantes no cenário eleitoral mineiro, mas não conseguem agregar. Continuam de certo modo lobos solitários.

Claudia Safatle - Governo quer se proteger de eventuais “pedaladas”

Valor Econômico

Guedes está “no seu limite” e pode juntar-se aos demissionários a qualquer momento

Há uma grande preocupação do governo em não criar espaços para interpretações de “pedaladas fiscais” no arranjo para pagar R$ 400 a título de Auxílio Brasil. Por isso, a forma será colocar o excedente na Constituição. Esse foi um plano B arrancado do ministro da Economia, Paulo Guedes, depois de ele ter se convencido de que não haverá a aprovação da reforma do Imposto de Renda neste ano, pelo Senado, a tempo de resolver a substituição do Bolsa Família pelo Auxílio Brasil.

Assim, para atingir os R$ 400 definidos pelo presidente Jair Bolsonaro, o governo tem, grosso modo, R$ 190 já alocados no orçamento do Bolsa Família e R$ 110 que pretende acomodar na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) dos Precatórios. Isso viabilizaria os R$ 300 originais que Guedes havia calculado. Agora, terão que ser justificados mais R$ 100 que o ministro da Economia sugere pedir um “waiver”, um pedido de dispensa para poder gastar acima do teto temporariamente.

Maria Clara R. M. do Prado - Até quando vai o caos?

Valor Econômico

Por que a CEF precisa receber recursos de emendas parlamentares se é uma autarquia do governo federal?

Na quinta-feira, enquanto Bolsonaro insistia no uso da cloroquina ao falar para um pequeno grupo de simpatizantes na Paraíba, o país vivia mais um dia de caos. Não é possível dizer hoje, com alguma perspectiva de acerto, até onde o dólar e o euro poderão subir em relação ao real nem a quanto crescerá a inflação ou a quanto cairá o PIB. Qualquer prognóstico, considerando a situação política e econômica em que se encontra o Brasil, não passaria de vaticínio.

Mas há uma certeza: nada há a ser festejado no curto ou no médio prazo. O presidente da República abandonou - não se sabe por quanto tempo, vale dizer - os discursos inflamados contra o STF e a urna eletrônica, e a favor da beligerância armada, mas deixou a nu a incapacidade de liderar. Refém do chamado “Centrão”, grupo político majoritário na Câmara Federal conhecido pelo apetite fiscal independente de convicção ideológica, o Executivo não consegue governar. O “mercado financeiro” parece ter-se dado conta disso agora ao ser confrontado com a vulnerabilidade do ministro da Economia.

Flávia Oliveira - É incompetência que chama

O Globo

No pronunciamento em que anunciou o Auxílio Brasil como política social do candidato à reeleição Jair Bolsonaro, o ministro da Cidadania, João Roma, informou que no biênio 2020-2021 foram destinados R$ 359 bilhões ao Auxílio Emergencial. Expressou orgulho, em vez do necessário constrangimento. Num par de anos, o governo gastou o equivalente a uma década de Bolsa Família. Como resultado, colheu 19,1 milhões de pessoas em situação de fome e metade da população com algum nível de insegurança alimentar, segundo o levantamento Penssan; 27,7 milhões de brasileiros na pobreza, proporção (12,98%) maior do que a observada antes da pandemia (10,97%), informou a FGV Social. Conseguiu unir em desconfiança tanto especialistas em política social quanto devotos do liberalismo econômico, agora cientes do estelionato da campanha de 2018 — não por acaso o dólar bateu R$ 5,66.

Assim como não há dilema entre enfrentamento à Covid-19 e proteção da economia, política social e responsabilidade fiscal não são incompatíveis. Uma e outra não combinam é com a incompetência que grassa no governo Jair Bolsonaro, da Cidadania à Economia. Um bom programa de transferência tem foco, transparência, orçamento, meta. É tudo que o Bolsa Família construiu ao longo dos 18 anos, completados no mesmo 20 de outubro em que foi sepultado, tendo o Auxílio Brasil por epitáfio. Foi resultado de um encadeamento que começou com controle da inflação e formação do cadastro único na gestão tucana, nos anos 1990, e culminou com integração de programas e ganhos de escala nos governos petistas, a partir de 2002.

José de Souza Martins* - Carne de pescoço

Valor Econômico / Eu Fim de Semana

O Estado brasileiro entregou-se politicamente à possessão diabólica das leis econômicas, e o preço do alimento emergencial dos miseráveis e famintos subiu

No supermercado da fome, o dos restos e resíduos de comestíveis, carne de pescoço de galinha, ossos de boi, espinhas de peixe, comidas de desvalidos que, no noticiário, revelam o que é a inventiva estratégia de sobrevivência dos milhões de famintos no Brasil. São componentes da visibilidade turva da melancólica situação social brasileira.

Há uma certa hipocrisia política em atribuir essa tragédia à pandemia. A pandemia apenas agravou o que já era grave. Tampouco se trata de algo restrito à incompetência de um governo irresponsável, embora lhe deva muitíssimo.

A coisa nos vem da imprudência de tentar fazer de conta que o Brasil é um país emergente, quase de primeiro mundo, e deixar a economia correr.

Os teóricos do capitalismo de marginalização social “chutam”: basta copiar o modelo econômico dos países ricos para que todos os problemas sociais sejam resolvidos automaticamente e este também se torne rico. Mesmo que esteja se tornando cada vez mais pobre.

O Estado brasileiro entregou-se politicamente à possessão diabólica das leis econômicas. O preço da carne de pescoço, que se tornou alimento emergencial dos miseráveis e famintos, subiu. Ou seja, a fome e a economia dos pobres foram capturadas pela voracidade do lucro amoral e cego do sistema econômico socialmente insensível, de regras feitas unicamente para aumentar o muito dos que já têm tudo.

Ruth de Aquino - O choro de Giovanna e a gargalhada de Flávio

O Globo

Nós, brasileiros, não somos debochados com a morte e a dor. Somos solidários, sentimentais, abraçamos até desconhecidos. Não sei quem vamos eleger em 2022. Mas somos como o intérprete de libras que se emocionou na CPI com a fala trêmula de Giovanna, de 19 anos, órfã de mãe e pai, vítimas da Covid. O intérprete foi substituído porque não conseguiu continuar. Levou a mão à boca, prestes a chorar. 

Mal sabia ele que esse gesto seria o mais compreensível no país inteiro. Nos identificamos com ele. O intérprete nos traduziu. É impossível continuar a viver normalmente, amar, trabalhar, dormir, enquanto tivermos no poder uma família que debocha do sofrimento alheio, do luto. Uma família que dá gargalhadas com viés de escárnio, nos acusando de maricas e mimimi. 

“Você conhece aquela gargalhada dele? Hahahaha”, imitou Flávio Bolsonaro, num riso tosco. “Porque não tem o que fazer diferente disso”, disse o 01. Respondia à pergunta de como o pai recebeu o relatório da CPI da Covid que o acusa de nove crimes graves. Riem como hienas. Imitam falta de ar. São deficientes de compaixão. Fazem pouco de centenas de milhares de famílias que perderam parentes próximos. 

Carlos Alberto Torres* - Não existe espaço para o antilavajatismo no palanque da 3ª Via

No momento em que já começam a se articular as candidaturas que disputarão as eleições presidenciais de 2022, não existe espaço para o antilavajatismo e para o antimorismo no palanque da 3ª Via. E Sergio Moro, candidato ou não a presidente, terá um papel destacado neste palanque, para fortalecê-lo e para levar a candidatura da terceira via à vitória. Sem isso, a 3ª Via não se viabilizará enquanto necessidade histórica.

Trata-se de uma questão estratégica, pois não terá qualquer chance o candidato da 3ª Via que queira derrotar a Lula e a Bolsonaro sem assumir, com nitidez, o caráter democrático do combate à corrupção e da luta para acabar com a impunidade. Esta não é uma questão acessória: ela deve ter a sua tradução no texto do programa dos candidatos da 3ª Via e na prática do discurso ativo e claro de campanha para denunciar e romper com os desvios éticos cometidos por Bolsonaro e por Lula. Esta questão deve ser uma marca inequívoca do compromisso democrático e histórico da 3ª Via.

Expressei, sinteticamente, esta opinião em post feito no grupo de Eduardo Jorge, no Facebook. Dada a forma simples e com poucas palavras com que estava redigido o texto, logo recebi da amiga Marialva Thereza Swioklo uma procedente crítica de que o texto deixaria depreender que eu estaria “indicando o ex-magistrado Moro como o candidato de sua (minha) preferência”. E prosseguia: “Sim, ele pode ser candidato, mas se os acontecimentos nos levarem à escolha de outro nome, com muito maior chance, devemos abraçar a luta para que esse candidato consiga expurgar a dupla diabólica”.

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Planalto anuncia mais gastos sem fonte de recursos

Valor Econômico

O enterro do teto de gastos provocou nova derrocada das ações e disparada do dólar

O teto de gastos, única âncora fiscal vigente desde 2016, está desabando. Depois de decidir elevar temporariamente o Auxílio Brasil para R$ 400 até depois que as urnas estiverem fechadas, em 2022, o presidente Jair Bolsonaro tirou do bolso do paletó ontem a ideia de dar a 750 mil caminhoneiros a mesma quantia, pelo mesmo prazo. Antes, o ferrenho defensor do teto de gastos, o ministro Paulo Guedes, agora auxiliar do presidente na campanha eleitoral, disse que pedirá um “waiver” para levar R$ 30 bilhões do aumento do programa fora da regra fiscal, ou então, a antecipação da revisão do mecanismo, estabelecido em 2026. Simples assim.

O ministro não vê motivos para que a exceção não seja aceita, mesmo por motivos tão escandalosos. O governo Bolsonaro começa a entrar em seu “momento Dilma”, de perda acentuada da credibilidade e da capacidade de governar, que nunca teve plenamente. O secretário especial do Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal, e Jeferson Bittencourt, titular do Tesouro, estão de saída do governo, em mais um sinal de que as boas regras do uso do dinheiro público e da alocação orçamentária correm sério risco.

Guedes, que sempre pregou o desmonte do Estado, coleciona novo fracasso, após as promessas de privatizações (de R$ 1 trilhão), de desmobilização de patrimônio público (também de R$ 1 trilhão), incapacidade de arquitetar uma reforma tributária moderna, sem CPMF, e calote dos precatórios. São as “criaturas do pântano político”, que o ministro antes criticava, que estão no comando da ofensiva para romper o teto de gastos, o que coincide com as necessidades de um presidente que tentará todas cartadas possíveis para se reeleger e que precisa desesperadamente recuperar sua popularidade.

Poesia | João Cabral de Melo Neto - Uma faca só lâmina

(ou: serventia das ideias fixas)

Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.

Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.

Mas o que não está
nele está como bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.

Isso que não está
nele é como um relógio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem ócios.

Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.

Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina,

nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzido à sua boca;

que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.