sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Pedro Doria: Um baseado na cara de Moro

O Globo

A cena é surpreendente. Na última segunda-feira, durante uma transmissão de quatro horas, o ex-ministro Sergio Moro falava sobre a possibilidade de um segundo turno entre o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ex-presidente Lula (PT) quando um dos dois entrevistadores começou a tossir. Quem conhece Monark, um dos âncoras do Flow, sabe exatamente o que ele estava fazendo. Mas, caso alguém tivesse dúvida, o editor na mesa de corte decidiu realçar. Por três segundos, cortou a câmera de Moro para a de Monark justamente na hora em que ele pegava o isqueiro sobre a mesa para reacender seu baseado, àquela altura já queimado para além da metade. Maconha, diferentemente de tabaco, apaga. Tem de reacender mesmo de tempos em tempos. O ex-ministro da Justiça, pessoalmente um homem conservador, seguiu falando sobre o que achava de Bolsonaro e Lula.

Os candidatos estão conversando direto com os eleitores em inúmeros programas de nicho, sejam podcasts, vídeo ou ambos, para audiências que às vezes se contam na casa dos poucos milhares, noutras para lá dos milhões. É, por muitos motivos, um tipo de campanha digital de melhor qualidade do que a de 2018, empesteada de mentiras e ancorada nos perfis falsos das redes sociais.

Nos dias seguintes à entrevista de Moro ao Flow, amplamente debatida nas redes sociais, o pré-candidato pedetista ao Planalto, Ciro Gomes, levou ao ar um react em seu canal do YouTube. Ciro vem chamando Moro para um debate faz já algumas semanas, principalmente pela arena da internet. O ex-juiz escorrega. Numa briga em que a arma é a retórica, ele teria mesmo dificuldades. Um react, na linguagem da internet, é a transmissão ao vivo da reação de alguém a outro vídeo. Abrem-se duas telas, toca um trecho de Moro no Flow, dá-se uma pausa, Ciro comenta e por aí vai.

Enquanto isso, à primeira vista, Lula parece estar usando um método antigo de campanha. Foge da grande imprensa, onde estão os jornalistas mais preparados politicamente. São eles que fariam as perguntas que, enquanto der, ele não deseja ser obrigado a responder. O jeito antigo seria dar entrevistas para as rádios do interior, com seus âncoras sempre entusiasmados com a chance de entrevistar um político de expressão nacional, ou para sua imprensa de propaganda. Lula faz ambos, mas também vem falando com programas realmente independentes, como o Mano a Mano, do rapper Mano Brown.

É neste cenário de programas em áudio e vídeo que a maioria das manifestações dos políticos está ocorrendo. Nem todos os candidatos perceberam que deveriam ocupar estes espaços, mas é ali que o debate ocorre. Mano Brown pode ser simpático a Lula, e é, mas também cobra. Sua lealdade está com quem o ouve, a juventude empobrecida das franjas das grandes cidades. Brown não é imprensa amiga. Monark e Igor, do Flow, são gamers com reflexões sobre política bastante superficiais. Mas a maioria das conversas sobre política, no Brasil, é assim. Fumando maconha na cara do político, coisa que seria legal em todas as democracias relevantes, numa conversa com sempre mais de três horas, os dois fazem algo que nós da imprensa não conseguimos. Botam o candidato na sala de estar do cidadão médio, batendo papo.

Bolsonaro e Lula seguem escapando das perguntas realmente difíceis, Moro e Ciro estão na disputa árdua para cruzar os dez pontos e chegar aos 15 que os tornariam competitivos, João Doria deve estar distraído. E há algo de diferente acontecendo. Até aqui, esta campanha digital está sendo marcada por debate, ainda que superficial. É um ganho.

 

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