terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Carlos Andreazza: Me embosca que eu gosto

O Globo

O governo tem uma só dimensão: engrenagem a serviço da reeleição. Para isto existe e opera: para que o presidente, sujeito de índole golpista, permaneça no poder. O autocrata vai às urnas — e contra as urnas dispara suspeições. Padrão. Há método nessa atitude. Atacar é a maneira de eletrizar seus radicais. Ataca as urnas eletrônicas para ser competitivo nas urnas eletrônicas; e para que seus extremistas tenham ouvidos treinados ao apito caso a competitividade eleitoral não seja suficiente. Trata-se de um golpista, afinal.

E o golpista vai às urnas. Vai às urnas o autocrata que ministra golpismos desde a cadeira de presidente da República.

Jair Bolsonaro pretende ser, e creio que será, competitivo investindo na sociedade com Ciro Nogueira/Arthur Lira/Valdemar Costa Neto, pactuada no modo como o Orçamento de 2022 foi transformado-transtornado — com Guedes, com tudo — num grande orçamento secreto; e apostando no despertar, iniciada a campanha, do sentimento antilulopetista, rejeição que estaria adormecida. Esses seriam os caminhos para que crescesse até a vitória.

Não sairá, porém, do nada. Bolsonaro tem base social sólida, de resistência já testada, um lugar de partida que o colocaria bem próximo do segundo turno. Base de natureza sectária cuja mobilização — com efeito nas redes — depende de alimentos derivados de teorias conspirativas; daí por que o presidente precise forjar inimigos artificiais e fabricar conflitos, de preferência contra marcos representativos do valor de República, especialmente aqueles símbolos que possam encarnar a ideia de um establishment que não apenas não o deixaria governar — mas que operaria para derrotá-lo/derrubá-lo.

Conforme a conveniência, Bolsonaro gira seu carrossel de inimigos, preferencialmente escolhendo os cavalinhos da vacinação, com que pode avançar também contra governadores, os usurpadores de uma liberdade ameaçada só sob a fantasia bolsonarista, e do sistema eleitoral, ambos não à toa aqueles que melhor dão concretude ao sentido de República, tanto o programa nacional de imunização quanto a universalização da urna eletrônica, exemplos de um Brasil que chega igualmente a todos.

Bolsonaro, para quem a caneta de governante deveria ter a tinta de um imperador, odeia a República, cujo funcionamento limita-lhe o ímpeto de soberano; e precisa antagonizar com a compreensão de establishment segundo a mania de perseguição bolsonarista. E instituição nenhuma servirá mais perfeitamente ao exercício desse complexo conspirativo que a Justiça Eleitoral. É urgente entender isso. Isto: que Bolsonaro não parará, pois parar — parar a máquina de confrontos — equivaleria a inexistir.

É urgente que o Tribunal Superior Eleitoral entenda isso; o que significará também seus dirigentes não oferecerem combustível ao motor de desinformação, a ser jamais combatido — senão abastecido — com afirmações imprecisas, paraíso para especulações, como que a Justiça Eleitoral “já pode estar sob ataque de hackers”.

Não dá.

É urgente que o TSE entenda isso.

Isto: o governo, que tem uma só dimensão, a da reeleição, governo do golpista Bolsonaro, é também um governo militar; e é um militar do Ministério da Defesa — do agente político Braga Netto, general a serviço do presidente golpista — a ter assento em comissão do TSE. Está lá um general, sob delegação direta — influência direta — do general ministro da Defesa, por sua vez dedicado postulante a ser candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro, por sua vez o centro irradiador das ondas de mentiras cujo propósito é desacreditar o sistema eleitoral.

A pergunta é óbvia: por que — independentemente do governo de turno — devem militares ter lugar em comissão de tribunal eleitoral? (Deveríamos estar discutindo o fim dos tribunais militares.) Não há justificativa, senão — aí, sim, pensando no governo de turno — uma de natureza política. Outra pergunta óbvia, portanto, impõe-se: por que um tribunal eleitoral faria escolhas sob cálculos políticos? E de resto cálculo político equivocado, a partir de pressuposto impossível: que, ao contemplar os militares com representação no TSE, contemplaria — agradaria — o governo militar e sossegaria o desconfiado Bolsonaro. Mas Bolsonaro é um golpista, não um desconfiado, e jamais esteve preocupado com transparência eleitoral.

Com transparência deveria estar preocupado o tribunal, motivo por que — por princípio — nunca deveria haver aceitado que questões formuladas numa comissão de transparência fossem mantidas em sigilo. Politicamente falando, se a questão de princípio fraqueja: o TSE jamais deveria ter aceitado que fossem mantidas em sigilo, a pedido do integrante militar, questões formuladas pelo integrante militar — braço do general Braga Netto, braço do golpista que comanda um governo militar — da comissão de transparência. Ou nada se terá aprendido com a modalidade como Bolsonaro manipula e vaza conteúdos?

Aí está, o que ocorre quando o emboscado convida a emboscada a se instrumentalizar, a se armar, em casa: as perguntas elaboradas pelo homem de Braga Netto de súbito pervertidas pelo presidente em conclusão, os militares tendo identificado “diversas vulnerabilidades” nas urnas eletrônicas.

Aprenda-se.

 

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