Correio Braziliense
A intervenção militar russa
em Donets e Luhansk é a antessala de uma guerra entre a Federação Russa e a
Ucrânia, ou seja, de uma crise sem precedentes na Europa
O grande herói do trabalho da antiga União
Soviética nasceu na última noite de agosto de 1935, quando o mineiro Alexei
Stakhanov extraiu 105 toneladas de carvão em seis horas de trabalho. A cota era
de sete toneladas. A proeza do jovem operário da mina Irmino, na bacia
carbonífera às margens do rio Donets, deu origem ao chamado “stakhanovismo”, um
movimento de emulação entre trabalhadores com objetivo de aumentar a
produtividade da economia.
Em pleno esforço de industrialização pesada da antiga Rússia e de coletivização forçada do campo (que daria origem à “grande fome” na Ucrânia), o movimento empolgou os mineiros da região e se estendeu a outros ramos da economia. A máquina de propaganda de Joseph Stálin alçou à categoria de heróis comunistas operários e agricultores que se destacaram por bater recordes de produção.
Por muito pouco, o presidente russo,
Vladimir Putin, não exumou Stakhanov e Stálin, ontem, ao anunciar o
reconhecimento da independência das duas regiões separatistas da Ucrânia —
Donetsk, que projetou Alexei Stakhanov, e Luhansk —, como independentes. Em
pronunciamento que pôs mais lenha na fogueira da crise ucraniana, Putin disse
que Ucrânia moderna é uma invenção do líder comunista Vladimir Lênin, ao criar
a União Soviética.
Com todas as letras, afirmou que as terras
ancestrais do leste ucraniano são russas. “A Ucrânia é parte integrante da
nossa história”, afirmou. É que a gênese da Rússia é o principado de Kiev, a
atual capital da Ucrânia, desde que Vladimir, o Grande, que reinou de 980 a
1015, converteu o povo rus (uma controversa mistura de magiares, eslavos e
vikings) ao cristianismo.
Putin também autorizou o envio de militares
russos para “manter a paz” nas regiões separatistas da Ucrânia, em decreto
assinado ontem. Donetsk e Luhansk são regiões que falam o russo e estão sob
controle de rebeldes. Com apoio dos Estados Unidos e da Inglaterra, o governo
ucraniano se preparava para retomar a soberania sobre essas áreas, ao mesmo
tempo em que anunciava a intenção de ingressar na Organização do Tratado do
Atlântico Norte (Otan).
A reação da Rússia foi deslocar
aproximadamente 150 mil militares para a fronteira, com tanques, canhões,
mísseis, helicópteros e caças. O clima de “guerra fria” que havia se instalado
esquentou, a ponto de provocar comparações com a crise de 2008 com a Geórgia,
que também havia manifestado a intenção de ingressar na Otan, o que provocou
uma guerra quente que durou cinco dias. Com a decisão de ontem, Putin pagou
para ver, depois de muitas negociações frustradas com os principais líderes
europeus — mas, principalmente, com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden.
Fórmula Kissinger
A retaliação imediata de Biden foi a
aprovação de sanções econômicas às duas autoproclamadas repúblicas
separatistas. A intervenção militar russa nas duas regiões, porém, é a
antessala de uma guerra entre a Federação Russa e a Ucrânia, o que vai gerar
uma crise sem precedentes na Europa. Putin vem reiterando que a Otan já avançou
demais no Leste Europeu e que não vai permitir a entrada da Ucrânia no pacto
militar do Ocidente.
Uma razão é geopolítica: a estratégia de
defesa da Rússia depende da profundidade de seu território. Não existe nenhuma
barreira física de difícil transposição na planície europeia, que se estende de
Paris a Moscou. Esse foi o caminho de Napoleão e de Adolf Hitler para invadir a
Rússia. Kiev está a menos de 900km de Moscou.
A outra, é econômica: a bacia do Dombass é
uma das maiores províncias carboníferas do mundo, rica em carvão e gás natural.
Na divisão internacional do trabalho, a Rússia tem uma vocação natural de
produtor de energia para a Europa Central.
Tudo isso é de conhecimento de todos os
países envolvidos na crise, principalmente os EUA e a Inglaterra, que
encurralaram Putin, e a Alemanha e a França, que lideram a turma do deixa
disso. O problema é que a Ucrânia é dividida desde os tempos de Pedro, o
Grande, que expulsou os suecos da região em 1709. Uma parte é ortodoxa, outra é
católica; uma fala russo, outra ucraniano; uma é aliada da Rússia, outra do
Ocidente.
A fórmula de Henry Kissinger, o grande
estrategista da diplomacia dos EUA na “guerra-fria”, seria os dois lados se
unirem para barganhar com a Rússia e o Ocidente o que fosse melhor para o país,
mantendo-se fora da Otan. Mas não é o que acontece.
Pouca vergonha.
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