Folha de S. Paulo
Rússia pode ter meios de bancar sanções e
prolongamento da crise na Ucrânia
As retaliações
do "Ocidente" contra a Rússia divulgadas até agora não devem
tirar o sono do Vladimir Putin, que talvez nem durma. Quem sabe seja um Vampiro
Highlander movido a venenos energéticos da defunta, mas viva, KGB.
Além da piada, e daí? Se Putin pode
aguentar as sanções, pode ainda por muito tempo comer
a Ucrânia pelas bordas e, assim, manter o salseiro na política e na
finança do "Ocidente".
Se por mais não fosse, isso nos interessa, habitantes do extremo ocidente, periferia do mundo, do Brasil. Para contínua e quase geral surpresa, o real e a Bolsa continuam a se valorizar, a subir dos buracos profundos onde a epidemia, a dívida e Jair Bolsonaro haviam jogado os preços dos ativos financeiros do país.
Até quando dura esse amor do dinheiro pelas
xepas financeiras do Brasil? Quanto pode durar com uma crise fervendo baixo e
por tempo considerável na Ucrânia? Até quando pode durar, dado que teremos
alta de juros nos EUA a partir do mês que vem e campanha eleitoral
mais séria a partir de abril?
A ameaça de guerra não fez coceira na
calmaria financeira do Brasil, relativa e recente, é bom lembrar. Mas convém
não descuidar do rolo na pobre Ucrânia.
Joe Biden disse que "cortou" o
financiamento da Rússia nos Estados Unidos. Não é bem assim. Instituições
financeiras americanas não podem comprar dívida nova do governo russo faz algum
tempo; agora, não vão poder negociar títulos de dívida no mercado secundário.
Não há sanção à vista para empresas privadas (fora aquelas que façam mutreta
com Putin, financiem guerra, assassinato, envenenamento etc.).
Apenas um sexto da dívida externa russa é
do governo (e equivale a 5% do PIB, US$ 80 bilhões); no mais, é privada. As
empresas têm tido e terão mais dificuldade de se financiar e refinanciar,
decerto.
Falta de acesso a crédito externo novo pode
dar problema, a médio prazo (como uma desvalorização do rublo, entre outros).
Mas a Rússia tem superávit externo (mais de 2% do PIB) e US$ 600 bilhões de
reservas. Aguenta o tranco; Putin, um autocrata, aguenta ainda mais, a não ser
que a elite russa (militares, oligarcas) tenha poder de botá-lo para fora,
coisa do que o "Ocidente" não parece fazer a menor ideia.
Se Putin pode pagar para quase anexar um
pedaço da Ucrânia (parte das republiquetas separatistas de Donetsk e Lugansk),
talvez tente ver quanto custa outro lance de audácia temerária. E a crise se
arrasta: petróleo
mais caro, talvez trigo, milho, soja e óleo de cozinha também, mais
inflação. Rússia
e Ucrânia têm peso nos mercados mundiais de grãos e de alguns metais
também, para nem falar na energia, claro.
O mercado financeiro americano já está
malparado. Inflação, gasolina cara, fiasco no Afeganistão e
peitadas de Putin derrubaram e derrubam o prestígio de Joe Biden, de resto. O
que vai fazer de mais drástico?
Sanções que ameacem o fornecimento de gás e
petróleo para a União
Europeia podem dividir os europeus, pois a dependência da energia
russa e a capacidade de financeira de aguentar trancos é variada. Há, pois,
pelo menos risco de haver opiniões diferentes do que fazer com os russos.
Se não se meter em um conflito aberto de
grande escala, um risco e um custo enormes, Putin pode levar a guerra de
fricção adiante. Não é uma previsão, é uma hipótese, uma situação que pode
causar danos mais relevantes na economia mundial.
Sem estratégia e sem instrumentos ou armas
para dissuadir a Rússia sem causar estrago geral, para si inclusive, o
"Ocidente" talvez tenha de tourear Putin por muito tempo, com os
estragos previsíveis. Essa conta chegaria também à nossa porta.
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