sexta-feira, 18 de março de 2022

José de Souza Martins*: A duração das cotas raciais

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Estamos no beco sem saída de estruturas sociais do passado. O regime de cotas não nos liberta desse passado, embora faça justiça tópica a uma parte dos desvalidos

Neste 2022, cumpre-se o prazo de dez anos para a revisão da lei que estabeleceu o regime de favorecimento de algumas categorias raciais e sociais no acesso às universidades públicas e às escolas técnicas federais. O que abriu uma disputa política tanto em relação à própria continuidade desse direito excepcional quanto em relação à sua eventual reformulação.

A adoção do regime de cotas para ingresso nas universidades públicas brasileiras começou com uma brincadeira política em 20 de novembro de 1993, dia da Consciência Negra. Estudantes, já universitários, da PUC e da USP, deram a chamada “pendura” no restaurante de um dos melhores hotéis de São Paulo. Comeram, beberam e não pagaram a conta como ato de reivindicação de reparação em nome dos negros que, durante vários séculos, foram escravos das fazendas brasileiras.

A manifestação revelou grande força simbólica e se desdobrou em movimentos sociais em favor da adoção do regime de cotas para ingresso nas universidades públicas. A manifestação deu sentido à relevância das ações afirmativas nas reformas sociais necessárias num país politicamente bloqueado à superação de suas estruturas sociais arcaicas.

Os que apoiam, especialmente, o regime de cotas raciais baseiam-se no correto pressuposto de que aqui a cor da pele insere-se em nossa cultura do preconceito que agrava, no plano individual, desigualdades sociais históricas. Mas baseiam-se também no equivocado pressuposto de que raça é cor genérica e que seus matizes são equivalentes, como negro e pardo. Quando, na verdade, referem-se a origens étnicas diferentes nas consequências em injustiças sociais crônicas.

Portanto, agem em nome e em defesa dos interesses do negro genérico, uma categoria abstrata. O critério é superficial. Nem por isso deixa de ser legítimo como reivindicação implícita de uma revisão ampla de nossa concepção de justiça social, dos direitos sociais de todos, não só dos negros, e da própria concepção de igualdade, aqui geralmente reduzida ao jurídico.

De certo modo, num país como este, todas as vítimas de preconceito e de injustiça são sociologicamente negras, mesmo não o sendo nem se reconhecendo como tais nem como tais sendo reconhecidas. Aqui, negra é a cor da injustiça.

No mesmo ano de 2012, em que foi questionada no STF a constitucionalidade do regime de cotas, por dez anos, adotado pela UnB, foi promulgada a Lei nº 12.711, do Congresso Nacional, que dele também trata. A lei contém, implicitamente, uma concepção de reparação de injustiça com base em mais curiosa ainda concepção de injustiça social.

O benefício abrange pretos, pardos, indígenas, pessoas com deficiência, as que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas e estudantes de famílias com rendimento igual ou inferior ao salário mínimo. É nela sutil a concepção de que cor e raça são deficiências. Uma lei feita por gente que não conhece o que é a realidade social brasileira.

No fundo, para consertar uma sociedade deformada por descabidos privilégios sociais de alguns, o Congresso oficializou um sistema de privilégios compensatórios que confirmaram o privilégio estamental como fundamento da sociedade brasileira ainda nos dias de hoje. O que indica que estamos no beco sem saída de estruturas sociais do passado. O regime de cotas não nos liberta desse passado, embora faça justiça tópica a uma parte dos desvalidos.

Na movimentação que se abriu, em vez de uma avaliação objetiva das consequências positivas ou negativas do regime de cotas, os favoráveis e os contrários dividem-se. Na direita, quanto a suprimi-lo, no espírito das iniquidades do neoliberalismo, de quem pode mais chora menos.

Na esquerda, a proposta mais radical é a de estendê-lo por mais meio século, na suposição imobilista e antidialética de que a sociedade não muda. O que nega o pressuposto da própria política de cotas, que é o de que com ela a sociedade muda e já não mais precisa de privilégios estamentais para ser justa. O que foi ponderado pelo ministro relator do processo no STF, Ricardo Lewandowski.

Uma questão que a adoção das cotas não levou em conta é a de que esse regime deveria ter sido adotado em nome de uma demanda própria da universidade. A do seu direito e da sua obrigação de recrutar, em todas as categorias sociais e raciais, pessoas capacitadas e de grande potencial para a formação universitária nas diferentes áreas de conhecimento.

Em todas há jovens que se tivessem a oportunidade de uma ressocialização para as altas solicitações da formação universitária poderiam se tornar grandes profissionais e cientistas em benefício da sociedade e da ciência e, só em decorrência, em benefício próprio.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).

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