Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Estamos no beco sem saída de estruturas
sociais do passado. O regime de cotas não nos liberta desse passado, embora
faça justiça tópica a uma parte dos desvalidos
Neste 2022, cumpre-se o prazo de dez anos
para a revisão da lei que estabeleceu o regime de favorecimento de algumas
categorias raciais e sociais no acesso às universidades públicas e às escolas
técnicas federais. O que abriu uma disputa política tanto em relação à própria
continuidade desse direito excepcional quanto em relação à sua eventual
reformulação.
A adoção do regime de cotas para ingresso
nas universidades públicas brasileiras começou com uma brincadeira política em
20 de novembro de 1993, dia da Consciência Negra. Estudantes, já universitários,
da PUC e da USP, deram a chamada “pendura” no restaurante de um dos melhores
hotéis de São Paulo. Comeram, beberam e não pagaram a conta como ato de
reivindicação de reparação em nome dos negros que, durante vários séculos,
foram escravos das fazendas brasileiras.
A manifestação revelou grande força simbólica e se desdobrou em movimentos sociais em favor da adoção do regime de cotas para ingresso nas universidades públicas. A manifestação deu sentido à relevância das ações afirmativas nas reformas sociais necessárias num país politicamente bloqueado à superação de suas estruturas sociais arcaicas.
Os que apoiam, especialmente, o regime de
cotas raciais baseiam-se no correto pressuposto de que aqui a cor da pele
insere-se em nossa cultura do preconceito que agrava, no plano individual,
desigualdades sociais históricas. Mas baseiam-se também no equivocado
pressuposto de que raça é cor genérica e que seus matizes são equivalentes,
como negro e pardo. Quando, na verdade, referem-se a origens étnicas diferentes
nas consequências em injustiças sociais crônicas.
Portanto, agem em nome e em defesa dos
interesses do negro genérico, uma categoria abstrata. O critério é superficial.
Nem por isso deixa de ser legítimo como reivindicação implícita de uma revisão
ampla de nossa concepção de justiça social, dos direitos sociais de todos, não
só dos negros, e da própria concepção de igualdade, aqui geralmente reduzida ao
jurídico.
De certo modo, num país como este, todas as
vítimas de preconceito e de injustiça são sociologicamente negras, mesmo não o
sendo nem se reconhecendo como tais nem como tais sendo reconhecidas. Aqui,
negra é a cor da injustiça.
No mesmo ano de 2012, em que foi
questionada no STF a constitucionalidade do regime de cotas, por dez anos,
adotado pela UnB, foi promulgada a Lei nº 12.711, do Congresso Nacional, que
dele também trata. A lei contém, implicitamente, uma concepção de reparação de
injustiça com base em mais curiosa ainda concepção de injustiça social.
O benefício abrange pretos, pardos, indígenas,
pessoas com deficiência, as que tenham cursado integralmente o ensino médio em
escolas públicas e estudantes de famílias com rendimento igual ou inferior ao
salário mínimo. É nela sutil a concepção de que cor e raça são deficiências.
Uma lei feita por gente que não conhece o que é a realidade social brasileira.
No fundo, para consertar uma sociedade
deformada por descabidos privilégios sociais de alguns, o Congresso oficializou
um sistema de privilégios compensatórios que confirmaram o privilégio estamental
como fundamento da sociedade brasileira ainda nos dias de hoje. O que indica
que estamos no beco sem saída de estruturas sociais do passado. O regime de
cotas não nos liberta desse passado, embora faça justiça tópica a uma parte dos
desvalidos.
Na movimentação que se abriu, em vez de uma
avaliação objetiva das consequências positivas ou negativas do regime de cotas,
os favoráveis e os contrários dividem-se. Na direita, quanto a suprimi-lo, no
espírito das iniquidades do neoliberalismo, de quem pode mais chora menos.
Na esquerda, a proposta mais radical é a de
estendê-lo por mais meio século, na suposição imobilista e antidialética de que
a sociedade não muda. O que nega o pressuposto da própria política de cotas,
que é o de que com ela a sociedade muda e já não mais precisa de privilégios
estamentais para ser justa. O que foi ponderado pelo ministro relator do
processo no STF, Ricardo Lewandowski.
Uma questão que a adoção das cotas não
levou em conta é a de que esse regime deveria ter sido adotado em nome de uma
demanda própria da universidade. A do seu direito e da sua obrigação de
recrutar, em todas as categorias sociais e raciais, pessoas capacitadas e de
grande potencial para a formação universitária nas diferentes áreas de
conhecimento.
Em todas há jovens que se tivessem a
oportunidade de uma ressocialização para as altas solicitações da formação
universitária poderiam se tornar grandes profissionais e cientistas em
benefício da sociedade e da ciência e, só em decorrência, em benefício próprio.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).
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