Valor Econômico
As cores distorcidas na política brasileira
travam a democracia
A surpresa chegou pelo correio. Cortesia da
editora, abri o pacote curioso para saber qual seria a novidade. A capa
colorida, suas 458 páginas e o título instigante só aguçaram meu interesse.
Eu nunca havia ouvido falar do autor.
Julguei se tratar de uma obra de estreia, mas, na orelha do livro, a revelação:
Edson Lopes Cardoso já conta com 73 anos, e aquele era só mais um, dos vários
livros escritos ao longo de sua vida.
“Nada os trará de volta” é uma compilação de
textos publicados por Cardoso nas últimas quatro décadas, ao longo das quais
analisa os principais acontecimentos políticos e sociais brasileiros.
À medida em que folheava o livro, um sentimento de completa alienação tomou conta de mim. Como nunca havia ouvido falar de um intelectual com uma obra tão vasta, que se formou em algumas das principais instituições do país (UFBA, UnB e USP) e se valia de tantas referências históricas e culturais num diálogo com os principais intérpretes de nossa sociedade?
“Diálogo”, porém, é apenas uma força de
expressão. Uma pesquisa nos acervos dos principais jornais me indicou que há
raríssimas aparições de Edson Lopes Cardoso na grande imprensa brasileira. Aos
poucos, fui percebendo que talvez eu não fosse o único alienado a nunca ter
travado conhecimento de sua obra.
Sim, Edson Lopes Cardoso é negro - e uma
das vozes mais lúcidas no movimento negro brasileiro. Militante, foi um dos
organizadores da histórica Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela
Cidadania e pela Vida, que reuniu mais de 30 mil pessoas em Brasília em 1995 e
teve reedições nos anos seguintes. Foi chefe de gabinete do sociólogo Florestan
Fernandes, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), durante seu
segundo mandato como deputado federal de 1991 a 1994. E é coordenador do Ìrohìn
- Centro de Documentação, Comunicação e Memória Afro-Brasileira.
A obra de Cardoso é um passeio pelos
principais acontecimentos brasileiros e mundiais das últimas décadas,
analisados à luz dos seus impactos sobre a vida da população negra. A
profundidade e a sofisticação do seu pensamento não ficam atrás de nenhum dos
cultuados nomes da intelectualidade branca brasileira.
O fato de um pensador desse porte ser
pouquíssimo conhecido e não encontrar espaço na grande mídia diz muito sobre o
nosso racismo estrutural - e do quanto precisamos avançar para a ampliação da
presença dos negros em nossa sociedade, inclusive na política.
Num de seus textos, Cardoso resgata a
figura de Manoel da Motta Monteiro Lopes, primeiro deputado federal negro de
nossa história, jurista pernambucano eleito em 1909, após ter tido diploma
negado pela classe política em 1905. De lá pra cá, outros negros conseguiram
chegar ao Congresso e também a prefeituras e governos estaduais, mas de forma
desproporcional ao tamanho da população negra.
Cardoso reconhece o papel do movimento
negro ao denunciar o racismo, ampliando a conscientização dos cidadãos, e
reivindicar direitos de pretos e pardos, mas demonstra que as principais
conquistas obtidas nas últimas décadas se deram sob a tutela de políticos
brancos, no âmbito dos partidos e dos governos.
O Brasil somente será um país
verdadeiramente democrático, segundo Edson Cardoso, caso haja representação de
peso para a população pobre e preta. “Queremos opinar e sugerir, dirigir,
decidir, queremos comando, queremos monitorar e implementar, queremos a
gerência de recursos públicos, queremos o controle das riquezas que ajudamos a construir”,
escreveu em julho de 2005.
Junto com o livro, veio o convite para o
seu lançamento em São Paulo, que ocorreu na quinta-feira passada (9/06). Por
coincidência, eu estava na capital paulista e decidi comparecer, a fim de
conhecer ao vivo o pensador que acabara de abrir meus olhos para tantas
questões.
O evento era um debate com lideranças da
Coalizão Negra por Direitos, ativistas que lançaram recentemente mais de cem
pré-candidaturas de pretas e pretos aos cargos de deputado estadual e federal,
em praticamente todos os Estados do país. Aglutinados no movimento “Quilombo
nos Parlamentos”, essas lideranças de dezenas de movimentos sociais pretendem
colocar em prática a tese de Cardoso, várias vezes repetida no livro: que a
marginalização dos brasileiros negros só será superada com a ampliação da sua
representatividade nas instâncias decisórias do poder.
Esse processo, contudo, não é nem um pouco
simples, alerta o autor. Ao longo de nossa história, já dizia Edson Cardoso num
texto de 2008, o discurso em favor da diversidade racial foi encampado por
muitos partidos, mas muito mais com o propósito de atrair os votos dos
eleitores pretos do que de batalhar para o aumento da bancada de parlamentares
de pele negra - e isso vale inclusive para a esquerda.
Conversando com representantes da Coalizão
Negra por Direitos durante o evento, pude constatar um misto de excitação com a
mobilização para o lançamento das campanhas e uma apreensão quando ao efetivo
apoio que receberão dos partidos aos quais estão associados. Apesar das
manifestações de apoio das cúpulas partidárias, os pré-candidatos pretos ainda
não têm garantia sobre o quanto receberão de recursos dos fundos partidário e
eleitoral para custear suas campanhas.
A preocupação é legítima. Segundo meus
cálculos, deputados federais que tentaram a reeleição em 2018 (quase todos
homens e brancos) receberam em média R$ 1,2 milhão de seus partidos. Candidatos
brancos novatos tiveram uma cota bem menor: R$ 133,8 mil. Para os candidatos
negros novatos, porém, o valor foi ainda menor: apenas R$ 42,8 mil em média.
Esses dados já explicam bastante porque temos tão poucos negros no Congresso
Nacional.
Como diria Edson Cardoso, “os negros
constroem nos partidos uma causa sem substância; [...] eles [os candidatos
negros] carreiam votos para a eleição dos outros [os políticos brancos]”.
Oxalá o destino da Coalização Negra por
Direitos seja diferente nas eleições deste ano.
*Bruno Carazza é mestre em
economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens
do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
Edson Lopes Cardoso,tomando conhecimento só agora.
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