Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
O projeto de emenda constitucional que
busca instituir o ensino pago nas universidades públicas e gratuitas é
equivocado porque indiretamente privatiza o ensino universitário público
A recente iniciativa de um deputado no
sentido de, através de uma emenda constitucional, instituir o ensino pago nas
universidades públicas e gratuitas é preocupante porque representa uma ameaça à
destinação histórica dessas universidades no Brasil.
O autor e os que o acompanham incluem no
projeto um complicado conjunto de “atenuantes” para peneirar os que terão
direito à isenção de pagamento da universidade pública. Ficará comprometida a
premissa constitucional do acesso universal, regulado apenas pela competência
nos exames de seleção.
Depois da aprovação no vestibular, haverá o
peneiramento econômico para decidir quem será obrigado a pagar pela vaga
conseguida. O cérebro pode passar, mas o bolso não. Como se decide quem é
tecnicamente carente para ficar dispensado de pagar pela vaga legitimamente
conseguida? Um pai abonado não quer dizer um filho abonado.
Para um jovem que está apenas chegando ao mundo das responsabilidades de adulto, num cenário quase sempre marcado pela crise de gerações, a eventual reinstituição da dependência em relação aos pais é de fato um ato de menorização de quem está tentando ser adulto. Isso cercará de incertezas o aluno nessas condições. E certamente afetará seu desempenho escolar. A PEC é antipedagógica.
O projeto de emenda constitucional é equivocado
porque indiretamente privatiza o ensino universitário público. Não pagar por
ele passa a ser a exceção e deixa de ser a regra. Transforma o aluno que não
paga em devedor de caridade e o que paga em inquilino de vaga universitária.
O direito à universidade pública e gratuita
é um direito da nação que nos alunos investe para ter os profissionais de que
carece, não raro em funções públicas, funções de Estado. Ela escolhe os que têm
vocação para nela ingressar e por meio da formação nela recebida servir ao país
nas áreas conspícuas do conhecimento, mesmo que seja em funções da empresa
privada. Pobres e ricos que tenham a vocação da produção e distribuição de
conhecimento devem ser recrutados pelas universidades públicas e gratuitas para
que tenham eles ao seu alcance toda a estrutura de desenvolvimento dessas
vocações.
O autor do projeto e os que o apoiam
mostram que não têm clareza sobre o que é uma universidade pública. Confundem
universidade com escola de terceiro grau, que tem funções basicamente escolares.
Para ter a compreender o que ela é depende de ter-se em conta qual é a função
de uma universidade pública, num país ainda atrasado como o nosso.
As verdadeiras universidades são
instituições de pesquisa, especialmente pesquisa científica em todos os campos
de conhecimento. O ensino é decorrência desse primado. A pluralidade e a
complexidade da pesquisa, aqui, só é possível com recursos do Estado e,
portanto, na universidade pública. Cobrar mensalidades está longe de cobrir os
custos dessas instituições de ensino e pesquisa. Elas se dedicam à formação de
cientistas, técnicos e educadores para distribuir o conhecimento nelas
produzido, reproduzido e aperfeiçoado.
A característica principal e decisiva da
universidade pública é a da pesquisa desinteressada, da pesquisa pela pesquisa.
A de resolver as questões e indagações propostas pelo conhecimento já
acumulado, as pendências da história da ciência, as necessidades do
conhecimento. É assim que o conhecimento progride e é assim que por meio dele
concretos problemas da condição humana são resolvidos ou atenuados.
Além do que, a verdadeira universidade é a
instituição pública de pesquisa e ensino que atrai vocações, é um chamamento de
gente capaz, independente de classe social, sexo, cor, crença e o que mais seja.
Nesse sentido, ela não faz caridade. É o aluno recrutado, independentemente de
suas condições sociais, que se doa à universidade para a missão do progresso do
conhecimento como condição do desenvolvimento humano e da afirmação do primado
da vida e do direito de todos à vida verdadeira.
A PEC do ensino pago na universidade
pública laica e gratuita é a negação dessas premissas e nisso revela o seu
sentido oculto, que é o de minimizar a qualidade criativa do ensino e mesmo
destruí-la ao conformá-la à ideologia do balcão de negócios.
A educação pública, laica e gratuita é uma
conquista da civilização no Brasil, não só dos educadores, mas também dos
setores lúcidos, patriotas e responsáveis das elites. Os dos cidadãos que se
propuseram a completar a Lei Áurea com a libertação de todos os brasileiros da
escravidão da ignorância e do atraso social e político. Sobretudo a
universidade pública, ainda que tardia, tem tido aqui a missão civilizadora de
dar o salto histórico compensatório que trouxesse o Brasil para o século de
hoje.
*José de Souza Martins foi professor titular de sociologia na Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).
O difícil é um pobre chegar nessas universidades.
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