O Globo
A crise institucional que se prenuncia com
a disputa entre as Forças Armadas e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em
torno das urnas eletrônicas, e do Supremo Tribunal Federal (STF) é o tema
central de artigos da edição recente da Revista Insight Inteligência. O de
Christian Lynch, professor de Pensamento Político Brasileiro do IESP - UERJ
analisa o espectro do poder moderador no debate político republicano, disputado
hoje pelos militares e judiciário. O outro, de Wallace da Silva Mello,
professor da UENF, discute as influências do intervencionismo militar em nossa
história: positivismo, autoritarismo e culturalismo conservador.
Lynch investiga as origens da disputa entre magistrados e militares em torno da
herança do antigo poder moderador imperial, “ora interpretada por uma perspectiva
liberal, judiciarista e normativista, ora por outra, autoritária, militarista e
excepcionalista”. Baseada nessa doutrina judiciarista, se ancoraria a
pretensão dos atores judiciários de tutelar a República contra sua classe
política corrompida na década de 2010. E seria em nome da doutrina militarista
do “poder moderador” que as Forças Armadas interviriam em nome da segurança
nacional até a década de 1980, ameaçando fazê-lo novamente trinta anos depois”.
A criação de um poder moderador político, na visão de Christian Lynch,
“dependeria da separação entre chefias de Estado e de governo e, portanto, do
abandono do sistema presidencial de governo por outro, parlamentar ou
semipresidencial”. Também a existência de um poder moderador jurídico exigiria
que o “Supremo deixasse de ser um órgão de cúpula do Judiciário para se tornar
formalmente um tribunal constitucional de estilo europeu, acima dos três
poderes”.
O professor Wallace da Silva Mello analisa o intervencionismo militar no
pensamento político e social brasileiro sob o ponto de vista das influências
principais. Ele acredita que “elementos relevantes” foram pouco explorados no
estudo da relação dos militares com o poder político, “sobretudo a dimensão
social da leitura e interpretação conservadora” que grupos civis e militares
fizeram do Brasil.
Para o autor, três matrizes do pensamento social e político brasileiro
fundamentaram o intervencionismo militar no país: “o positivismo político e
filosófico, o autoritarismo das décadas de 1920-40 e o pensamento conservador
culturalista, cujo expoente é Gilberto Freyre”. Elas contribuíram – ainda que
de diferentes formas – “para a consolidação de uma imagem ou função dos
militares, em especial do Exército, como atores legítimos de intervir no jogo
político no Brasil”.
Trechos de pronunciamentos, discursos ou entrevistas de militares permitem,
segundo o autor, perceber a presença de ecos dessas matrizes intervencionistas
nos dias atuais, sobretudo no governo Bolsonaro. Cita Christian Lynch, dizendo
que as Forças Armadas se constituíram no “mais célebre grupo burocrático a
reivindicar o papel de “vanguarda iluminista”. Desde o final do Império,
porta-vozes deles de inspiração positivista e jacobinista, como Benjamin
Constant e Lauro Sodré, passaram a veicular a tese de que os soldados seriam
“cidadãos fardados”: os militares seriam os mais patrióticos de todos os
cidadãos; os únicos dotados de, num ambiente de decadência cívica e da classe
política civil (a “pendantocracia”) e da apatia do povo, darem a vida pela
Pátria.
O pensamento autoritário, na opinião de Wallace da Silva Mello, teve em
Oliveira Vianna um dos mais produtivos autores do período. A leitura que faz da
história do Brasil é crítica, sobretudo acerca do processo de ocupação do solo
e de expansão territorial. Segundo o autor, Oliveira Vianna denunciava as
elites e seu “idealismo utópico”, que buscava adaptar ideias e modelos de
outros povos no Brasil. Para Lynch, embasados na identificação da distância
entre o país real (estado social) e o país legal (instituições), autores como
Oliveira Vianna propõem “um pedagogismo, no sentido de educar as elites
nacionais, de modo que houvesse uma renovação intelectual e política que
permitisse a identificação das mazelas que o país apresentava”.
Poucos trabalhos causaram tanto impacto no pensamento político e social
brasileiro quanto os de Gilberto Freyre, ressalta o professor Wallace Monteiro.
Lynch, citado no trabalho de Wallace da Silva Mello, diz que “o pensamento e a
obra de Gilberto Freyre podem ser entendidos com base na linhagem do
conservadorismo culturalista, junto com José de Alencar e outros
autores”. O Exército é “alçado a uma posição de vanguarda nacional
esclarecida, que atua a favor da nação”. A crítica e o medo do comunismo também
aparecem como um elemento para valorizar e justificar a participação dos
militares na política.
Os militares se acham.
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