sexta-feira, 8 de julho de 2022

Armando Castelar Pinheiro*: Ascensão e queda do neoliberalismo

Valor Econômico

Uma evidência da decadência da ordem neoliberal é o crescente apoio à redução da globalização

Concluí a leitura do novo livro de Gary Gerstle, The Rise and Fall of the Neoliberal Order (Oxford University Press, 2022). O livro é interessante, traçando um histórico das ideologias que comandaram as políticas públicas, em especial a econômica, nas últimas oito décadas.

A história começa com o New Deal, as políticas orquestradas pelo governo democrata de Franklin Delano Roosevelt (FDR), nos EUA, em resposta à Grande Depressão dos anos 1920-30. As políticas de estímulo fiscal inspiradas em J. M. Keynes são o elemento mais conhecido do New Deal, mas não o único. Houve também o surgimento de inúmeras agências reguladoras, do sistema de seguridade social e um aumento da intervenção do Estado na economia.

O adjetivo liberal, como as políticas eram chamadas, refletia sua preocupação com o social, coordenada pelo Estado. Gerstle explora, em especial, o papel dos sindicatos, bastante fortalecidos por FDR, o que permitiu aos trabalhadores pressionarem por maiores salários e melhores condições de trabalho.

O autor atribui a tolerância dos empresários a esse ganho de poder econômico e político dos sindicatos ao papel que essas políticas exerceram em reduzir a atração do comunismo soviético, visto como o grande inimigo que unia os americanos de diferentes inclinações ideológicas. Esse raciocínio foi tão influente, que até presidentes republicanos como Eisenhower e Nixon ajudaram a fortalecer essas políticas nos anos 1950 e 1970.

Nem todo mundo, porém, as aprovava, e grupos diversos se formavam, na Europa e nos EUA, para combatê-las. Mas suas críticas não tinham influência alguma. Isso começa a mudar nos anos 1970. Cresceu nessa época a visão de que a regulação estatal era capturada pelas grandes empresas. Era preciso acabar com isso, para defender os consumidores, que começavam a ganhar precedência sobre os trabalhadores na política econômica. Ocorre então um processo de desregulamentação que fechou agências e liberou setores para operar sob razoável liberdade, como os de transporte aeroviário, ferroviário e rodoviário de carga.

Só nos anos 1980, com Ronald Reagan é que o neoliberalismo em si entrou com tudo em cena. Agora, além de desregulamentar, cortou-se impostos, para reduzir o tamanho do Estado, enfraqueceram-se os sindicatos, e se influiu no judiciário, indicando juízes alinhados com essas ideias e reinterpretando a jurisprudência em que se apoiavam as políticas do New Deal. Um elemento importante é que nessa época a União Soviética estava enfraquecida e deixava de ser uma preocupação tão grande para políticos e empresários mais de direita. Com isso, deixava de haver interesse em sindicatos fortes. E, de fato, a proporção de trabalhadores sindicalizados despenca nesse período.

Bill Clinton e George Bush II foram grandes apoiadores do neoliberalismo, promovendo a desregulamentação, controle dos gastos públicos (Clinton) e corte de impostos (Bush). Clinton associou a ideia de mercado livre ao setor de tecnologia de informação, que começava a crescer com rapidez nesse período. Clinton e Bush também adotaram políticas de promoção da diversidade, em especial pelo ângulo racial. Se os mercados deviam ser livres, as pessoas também.

Gerstle aponta duas razões principais para a queda do neoliberalismo nos anos seguintes. Uma, a decadência de grandes centros industriais, que perderam competitividade frente aos fabricantes estrangeiros - japoneses, europeus etc. Isso gerou desemprego, aumento de alcoolismo e suicídios, queda da expectativa de vida e piora da distribuição de renda. Isso afetou mais homens brancos, enquanto os homens negros sofriam mais com o aumento das prisões como forma de combater a criminalidade. Segundo o autor, os EUA são o país com maior população encarcerada do mundo, em termos absolutos e relativos.

Outra, para compensar a estagnação da renda, Clinton e Bush estimularam o consumo e a aquisição de moradias via o crédito - por exemplo, desregulando e expandindo a atuação de estatais como Fannie Mae e Freddie Mac. Isso acabou gerando a Grande Crise Financeira de 2008-09, com a explosão do desemprego e a perda de credibilidade de políticas de liberação de mercados.

Gerstle aponta como evidência da decadência da ordem neoliberal a eleição de Trump e a popularidade de políticos como Bernie Sanders e "socialistas". Outro sinal seria o crescente apoio à redução da globalização. Um processo que começou com a guerra comercial EUA-China e deve se fortalecer muito nos próximos anos. O autor explora pouco esse tema, mas a guerra Rússia-Ucrânia está sendo um grande catalisador desse processo.

A principal lacuna do livro, na minha visão, é ser muito focado nos EUA. Talvez fosse inevitável: o livro já tem 422 páginas, se tentasse cobrir mais países, acabaria impossível de ler. Mas, pelo menos no caso do Brasil, é fácil enxergar a mesma evolução: políticas como as do New Deal começando com Vargas e indo até os militares; o neoliberalismo entrando timidamente nos anos 1980 e com bastante força nos anos 1990, chegando mesmo a influenciar as políticas do PT sob Lula, voltando com Temer e presente em partes do governo Bolsonaro. Na verdade, impressiona reconhecer o quanto e quão bem essas ideias viajam.

*Armando Castelar Pinheiro é professor da FGV Direito Rio e do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador-associado do FGV Ibre 

 

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