terça-feira, 16 de agosto de 2022

Carlos Andreazza - Bolsonaro contra a República

O Globo

Há graus de democracia. Algo de democracia — geralmente a existência de calendário eleitoral — não raro legitimando a atividade autoritária que mina os múltiplos mecanismos controladores do exercício do poder.

A democracia que se pendura na realização de eleições periódicas é frágil. A democracia brasileira está frágil. Mas ainda uma democracia. É conversa de fácil convencimento. O senso comum associa democracia à realização de eleições. Como pode ser golpista aquele que peleja no voto?

Daí por que prefira falar em ataques à República.

Bolsonaro foi eleito. Tentará a reeleição. Tentará vencer a eleição cujo sistema desacredita. Não há incoerência nisso. Trata-se de um populista autocrático. Depende da chancela do voto para legitimar a posição que define o mito. Mesmo sob fraude, eleito por 58 milhões de votos. Não é isso? Eleito com 58 milhões de votos; no entanto lutando contra o establishment que não o deixa governar.

O voto é potência — fortaleza personalista — para o populista autocrático, que instrumentaliza a democracia e manipula o fetiche de que o eleito poderia tudo. Como pode um tribunal de togados sem votos limitar a vontade daquele que exprime o desejo soberano do povo? O voto é também disfarce — ou não será democrata o que disputa eleição?

Jogo de ganha-ganha. Em caso de derrota, o conspiracionismo contra o sistema eleitoral protegeria a potência do mito, a só perder roubado, ao mesmo tempo que empossaria o novo líder de uma oposição radicalizada.

Não é a democracia o alvo — não o primário — do bolsonarismo. A corrupção da democracia será produto natural da corrosão da República.

É a República o que não o deixa imperar. É a República o que golpeia. O conjunto republicano; encarnado, por exemplo, no programa nacional de vacinação. A cultura vacinal brasileira é manifestação republicana concreta, alcançando igualmente a mim e àquele no Brasil profundo. Ataque-se! E, se a República tem materialidade num sistema eleitoral inclusivo, moderno e rápido, que oferece as mesmas condições para o voto, a mesma tecnologia para votação, território adentro, para todos: ataque-se!

É a República — com sua estrutura impessoal — o que impede a plenitude de autocratas como Bolsonaro.

É a República a inimiga.

O bolsonarismo ataca a República. Sem tanques nas ruas. Sem fechamento do Congresso. Uma pregação constante que tem por objetivo plantar a desconfiança generalizada. Coisa alguma será crível. Não haverá instituição confiável (só cooptável). Corte constitucional desacreditada, enfraquecida — e a ser ocupada. Funcionando, de kassio em kassio. Parlamento criminalizado — suas lideranças de súbito sócias do Planalto, pacto firmado via orçamento secreto e a distribuição de codevasfs. Funcionando, sob barros e nogueiras. Funcionando, com a agenda do presidente da Câmara sob sigilo.

O bolsonarismo ataca a República. Diariamente. Isso cansa e distrai. Mobiliza reações da sociedade; que se concentra em defender que haja eleições e que o resultado seja respeitado. Ocorre, porém, que o sujeito que trabalha por desqualificar o sistema eleitoral, e que atrai a energia dos democratas, é o mesmo que se lança a disputar votos com força para muito além daquela, já imensa, de um presidente em busca de reeleição. A isso não se tem dado a devida atenção.

Não se tem dado a devida atenção ao impacto de um pacote condicionador de votos sem precedentes, que derramará, daqui até o final do ano, mais de R$ 60 bilhões em financiamento à campanha de Bolsonaro.

Maquia-se a inflação com desoneração violenta e circunstancial dos combustíveis — com o que se agrada sobretudo os mais ricos e a classe média. E se tenta conquistar parte dos pobres amortecendo os efeitos da inflação de alimentos por meio da elevação momentânea do valor do Auxílio Brasil.

Impossível saber se resultará. Se será capaz de bancar uma virada de Bolsonaro. Não tenho dúvida de que crescerá. Como cresce — crescerá — a conta a ser paga, sob o próximo governo, por todos nós. Uma pancada de estímulos, para fins eleitorais, que induz o consumo — que induzirá a permanência mais longa da inflação alta e de juros altos.

É o que teremos, por ressaca, quando a maquiagem aos postos de gasolina vencer; quando a deflação embusteira apresentar sua rebordosa. Inflação prolongada, muito endividamento — não nos esqueçamos dos R$ 50 bilhões em precatórios rolados adiante — e a inexistência de receitas capazes de fazer frente à fatura.

Teremos o desmantelamento da República. Bom para Bolsonaro, em caso de vitória — alguém que governa sob estado de emergência e cujo ministro da Economia celebra superávit. Crise econômica num país de instituições débeis pode ser gatilho para endurecimentos. Em caso de derrota, bom para Bolsonaro também, a ser o líder de uma oposição sectária num país em que, ao déficit republicano, se somará uma economia em frangalhos.

O golpismo é permanente. O golpe foi a PEC Kamikaze.

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