sábado, 13 de agosto de 2022

Carlos Góes - imposto maternidade

O Globo

Ao empurrar as mulheres para fora do mercado de trabalho, as normas sociais acabam induzindo menor geração de riqueza no país

Há alguns anos, Damares Alves pronunciaria uma frase folclórica: “menino veste azul, e menina veste rosa”. Gafe política à parte, a fala da ministra enfatiza que parte da sociedade brasileira abraça normas de gênero muito rígidas.

Quais seriam as consequências socioeconômicas destas normas? Uma série de trabalhos científicos de alta qualidade foca em um aspecto: o fato de que as normas sobre a maternidade têm um impacto grande e de longo prazo sobre a inserção e performance das mulheres no mercado de trabalho.

Os melhores estudos dessa área, conduzidos pelos economistas Henrik Kleven, Camille Landais e seus coautores, usam dados administrativos muito detalhados de muitos trabalhadores ao longo do tempo.

Com isso, os pesquisadores conseguem comparar o que ocorre com a renda de homens e mulheres nos anos anteriores e posteriores ao nascimento de um filho, em relação a trabalhadores similares que não tiveram filhos.

Em todos os países onde esses dados detalhados estão, há uma queda grande na renda total das mulheres nos anos seguintes à maternidade, mas quase nada ocorre com a renda dos homens. Essa queda é uma combinação dos seguintes fatores: parte das mulheres sai da força de trabalho para cuidar dos filhos; e, entre as mulheres que continuam trabalhando, há uma redução nas horas trabalhadas e uma queda no salário por hora trabalhada.

Esse efeito não é nada pequeno. De acordo com tais dados de melhor qualidade, ao longo dos dez anos após a maternidade, a perda de rendimento de mulheres varia entre um mínimo de 21%, na Dinamarca, a um número intermediário de 44%, nos Estados Unidos, e a até 61%, na Alemanha.

Existe um grande “imposto maternidade”.

Um argumento comumente utilizado diante desses dados é que a biologia explicaria essas diferenças. À primeira vista, essa narrativa não parece absurda. Afinal, o parto e a amamentação recaem sobre as mulheres.

Contudo, os dados indicam que esse componente biológico é pequeno. O mesmo grupo de pesquisadores recentemente publicou um estudo com dados dinamarqueses em que se mede o imposto maternidade para filhos biológicos e adotivos.

Embora haja um efeito de queda nos rendimentos um pouco maior nos dois primeiros anos após o parto para filhos biológicos, no médio prazo o efeito é idêntico.

Isso sugere que são normas e instituições sociais e econômicas — e não a biologia — que determinam a magnitude desse tipo de fardo para as mulheres.

Nos últimos meses, tais pesquisadores, juntos ao economista brasileiro Gabriel Leite Mariante, divulgaram um novo trabalho, que expande essa análise mesmo para países para os quais esses dados de altíssima qualidade não estão disponíveis.

Aplicando uma nova metodologia, eles conseguem estimar de forma razoavelmente confiável o imposto maternidade mesmo com dados de pesquisas domiciliares.

Com isso, eles conseguem expandir essa análise para um total de 120 países e fazer um panorama global dessa penalidade. Curiosamente, o imposto maternidade aumenta à medida que os países se tornam mais desenvolvidos.

A lógica é a seguinte. Quando os países são muito pobres, há pouca oportunidade para que pessoas deixem a força de trabalho, já que boa parte da população está empregada em atividades de subsistência e precisa trabalhar para sobreviver. Quando a renda dos países passa a aumentar, passa a haver maior especialização entre trabalhos domésticos e aquele fora da casa — com o fardo do trabalho doméstico recaindo desproporcionalmente sobre as mulheres.

Esses fatos ajudam a explicar porque, mesmo nos países muito igualitários, persiste um hiato entre os rendimentos de mulheres e homens. Normas e instituições sociais são muito persistentes e se refletem no imposto maternidade, tornando difícil eliminar o hiato completamente.

O trabalho também mostra que o Brasil tem um imposto maternidade maior do que o esperado para o seu nível de desenvolvimento. A penalidade de rendimento sobre as mulheres nos dez anos após a maternidade é de 25% na média de países com renda similar a nossa. No Brasil, ela é de 38%.

Como visto, longe de ser um debate puramente moral, como pensa Damares, normas sociais têm impactos econômicos reais. Ao empurrar as mulheres para fora do mercado de trabalho, elas acabam induzindo menor geração de riqueza no país. Nossas filhas se tornam mais pobres, mas nossos filhos também.

 

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