O Globo
Coração de Dom Pedro I acabou destronado
por um pinto presidencial, num evento nada republicano
Coitado do coração de Pedro I. Penou pelo
amor da marquesa de Santos, bateu forte por dançarinas, atrizes, escravas,
damas da corte, uma freira e sabe-se lá quantas outras mulheres. Deve ter
disparado nos muitos retornos furtivos ao Palácio de São Cristóvão, onde o
esperavam — cada uma a seu turno, mais ou menos resignadas — as imperatrizes
Leopoldina e Amélia.
Há de ter se angustiado, o pobre coração,
ao deixar para trás — e para nunca mais — quatro filhos pequenos e embarcar de
volta a Portugal, a fim de garantir o trono da filha Maria da Glória. E de ter
sofrido com a deslealdade do irmão Miguel, com a indiferença da mãe, Carlota
Joaquina.
Durou pouco, esse coração: menos de 36 anos. Nem por isso lhe faltaram emoções: acelerou aos 9, fugindo, de madrugada, das tropas de Napoleão. Aos 23, é provável que tenha descompassado, às margens plácidas de um riacho de águas vermelhas, enquanto proclamava a Independência do Brasil. Parou definitivamente às 14h40 de um 24 de setembro de 1834, no mesmo quarto em que batera pela primeira vez fora do ventre materno.
O restante do corpo foi sepultado em Lisboa
e, no sesquicentenário do 7 de Setembro, trasladado para São Paulo. Mas, por
vontade expressa daquele em cujo peito pulsara tão intensamente, o coração
ficou na cidade do Porto.
Lá, cansado de guerra, se desfazia aos
poucos numa taça de formol. Até ser requisitado para o que deveria ser a
celebração do ducentésimo aniversário do dia em que o jovem príncipe, montado
numa mula e coberto de lama, cortou os laços que prendiam sua nova pátria à
pátria antiga.
Viajou em vão, o nobre coração. Cruzou o
mar-oceano (aquele cujo sal são lágrimas de Portugal) para ser figurante num
comício eleitoral. O coração que foi do imperador Pedro I do Brasil e do rei
Pedro IV de Portugal acabou destronado por um pinto presidencial, num evento
nada republicano.
Como pode um coração em frangalhos, já
esquecido do ofício de bombear sangue, competir com corpos cavernosos
perenemente irrigados, em ereção priápica?
—Que país é este? — pode ter se perguntado
ao ver a multidão de verde e amarelo pedir intervenção das Forças Armadas,
destituição de ministros do Supremo Tribunal, rejeição de uma eventual derrota
nas eleições.
— Que diabos quer dizer “imbrochável”? —
terá se questionado o coração daquele que escrevia cartas eróticas ilustradas
com falos e ejaculações e assinava “Demonão”, mas nunca precisou se gabar da
própria virilidade em solenidades oficiais.
Sem entender por que o tiraram da Irmandade
da Lapa, onde estava posto em sossego, para fazer figuração macabra numa
disputa por votos, o coração terá reconhecido os acordes da melodia que
escreveu em 1822 e virou o Hino da Independência. Ali se fala em “grito
varonil”, “alma intrépida e viril”, expressões condizentes com o machismo
estrutural de então. Mas nada que evocasse o esconjuro perpétuo da disfunção
erétil, ilusão inalcançável numa época em que ainda não existiam o citrato de
sildenafila e a prótese peniana.
— Que diferença 200 anos fazem no corpo e
na alma de uma nação — há de ter pensado lá com seus átrios e ventrículos o
desacorçoado coração.
Pobre pintinho presidencial, tão rejeitado hoje em dia! Se o dono não fizer propaganda enganosa, ninguém se interessaria pela coisinha... Talvez com o viagra dos militares possa haver algum tratamento precoce, receitado pelo especialista Eduardo Pazuello...
ResponderExcluirÓtimo texto! Bolsonaro poderia lê-lo entre uma mentira e outra.
ResponderExcluirÓtimo e engraçado artigo.
ResponderExcluir