quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Mônica Sodré* - O que houve, então, com a nossa democracia?

O Estado de S. Paulo

Não parece exagero afirmar que estamos diante de um processo de autocratização, que se expressa em várias frentes

As democracias são uma conquista civilizatória relativamente recente, de trajetória não linear, e nada garante que vão durar. Hoje, 80% da população mundial vive em países só parcialmente livres ou não livres e o nível de liberdade global tem caído por 16 anos consecutivos.

No Brasil, somos apontados desde 2019 como um dos dez países com maior tendência autocrática do mundo. Há 7 anos deixamos de ser classificados como uma democracia liberal – nas quais há eleições livres, regulares, direitos de expressão e associação e respeito ao Estado de Direito – e caímos uma categoria, sendo classificados como democracia eleitoral pelo Varieties of Democracy (V-DEM), um dos think tanks globais mais prestigiados. No relatório de 2021, figuramos como uma das cinco lideranças globais no processo conhecido como “autocratização”, acompanhados por Hungria, Polônia, Sérvia e Turquia.

A literatura sobre regimes democráticos no mundo nos permite afirmar que estamos diante de uma nova onda de autocratização, cuja característica é singular: ela é lenta e a ruptura democrática se dá gradualmente e sob disfarce legal, num processo que envolve elementos políticos e de justiça. Aqui, não parece exagero afirmar que estamos diante deste processo, que se expressa em várias frentes.

Sua manifestação pode ser percebida pela busca de controle pelo Estado do dia a dia da sociedade, traduzido no uso de mecanismos de vigilância, que ocorre quando o Exército compra, sem licitação pública, ferramenta que extrai dados de celulares e permite recuperar imagens e localizações, bem como registro de redes sociais. Ou quando o Parlamento busca modificar uma legislação antiterrorismo ampliando sua possibilidade de interpretação e no aguardo de manifestação de comissão na Câmara dos Deputados.

Na sociedade civil, isso é visível quando se busca reduzir seus espaços, ao tentar que a Secretaria de Governo fique responsável pela supervisão e pelo monitoramento das organizações não governamentais, e não pela interlocução política com elas, ou quando se extinguem conselhos participativos, espaços políticos consolidados de envolvimento da sociedade na formulação de políticas públicas. Quando informações de interesse público, como a agenda do chefe do Executivo, passam a ser classificadas como sigilosas ou quando se busca, como foi feito por sua decisão, ampliar o número de atores com responsabilidade de decretar sigilo em documentos oficiais.

Na educação, o processo de autocratização se manifesta na tentativa de revisionismo histórico-científico, quando o Ministério da Educação (MEC) exclui “violência contra a mulher” e “quilombolas” de edital de livros didáticos ou quando o Ministério da Defesa afirma que o golpe de 1964 fortaleceu a democracia.

Sua expressão se dá, também, na incitação à violência, quando o número de armas registradas do País salta de quase 638 mil, em 2017, para 1,5 milhão, em 2021. Quando a violência grave contra jornalistas cresce a taxas anuais superiores a 20%, havendo um recorde de 69,2% nestes últimos sete meses, com relação ao mesmo período de 2021.

É possível notá-lo, também, quando as instituições são esvaziadas por dentro, tendo sua autonomia reduzida ou suas funções descaracterizadas. É o que ocorre quando o Ministério Público Federal, cuja função é defender os interesses da sociedade, opta por não agir.

Quando indígenas, minorias cujo direito de existência é assegurado pela Constituição, têm recorde de assassinatos em 25 anos, mostrando quão distantes estamos da declaração da ONU de 1948, que afirma que todos nós nascemos livres e iguais em direito e dignidade, e quão distantes estamos também dos preceitos constitucionais.

Ou, ainda, quando a fragilização das instituições dá espaço ao uso distorcido das liberdades, inclusive de opinião, e deputados federais defendem intervenção militar pró-governo, atacam ministros e exaltam o Ato Institucional n.º 5. Ocorre, também, quando 1/3 das emendas de relator tem sua destinação não informada, a despeito da exigência de transparência da principal Corte do País.

No que diz respeito às Forças Armadas, a cada novo ataque do presidente da República às instituições e à democracia, surgem dúvidas sobre a posição e coesão dos militares. A dúvida não é infundada nem uma questão acessória numa democracia recente pós-regime militar, e parte de uma premissa: a ruptura democrática ainda não se deu.

Parte da população e dos analistas espera uma forma flagrante para determinar a existência e o momento dessa ruptura, ignorando dois fatos: não foi o consenso que orientou o grupo nos golpes de 1955 e de 1964, o que não impediu a história de acontecer da maneira que conhecemos. Em segundo lugar, já estamos diante de um processo de erosão político-institucional, característico das democracias atuais, em que dia após dia tudo parece igual, até que de repente tudo está diferente. Os fatos falam por si. As saídas são a consciência, a política, a qualificação de lideranças políticas, a união de democratas e a própria democracia.

*Cientista-política, é diretora executiva da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (RAPS) 

2 comentários:

  1. Anônimo9/9/22 19:47

    Quantas palavras pra tentar dizer que a gente vive uma ditadura ou em
    um projeto de ditadura, nunca se viveu tão livre aqui nesse país
    Hoje a ameaça que nós temos e vivemos com medo são do STF, que pode a qualquer momento usar uma conversa de WhatsApp pra mandar te prender, mandar a Polícia Federal na sua casa e fazer busca e apreensão
    Isso sim é que faz o brasileiro ter medo.
    Vivemos em um país em que o presidente não prende, não persegue, não fecha jornal, não cancela na internet seus opositores e não censura ninguém Deixa de conversa fiada , A esquerda e o Lula é que deixaram claro que pretende fazer controle da mídia e reestatizar as empresas privatizadas e o socialismo é anti liberdade individual você está parecendo que está fazendo defesa de tese de sociologia baseada no Gramsci
    A esquerda é socialismo e socialismo é Ditadura!

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