O Estado de S. Paulo
Não parece exagero afirmar que estamos
diante de um processo de autocratização, que se expressa em várias frentes
As democracias são uma conquista
civilizatória relativamente recente, de trajetória não linear, e nada garante
que vão durar. Hoje, 80% da população mundial vive em países só parcialmente
livres ou não livres e o nível de liberdade global tem caído por 16 anos consecutivos.
No Brasil, somos apontados desde 2019 como
um dos dez países com maior tendência autocrática do mundo. Há 7 anos deixamos
de ser classificados como uma democracia liberal – nas quais há eleições
livres, regulares, direitos de expressão e associação e respeito ao Estado de
Direito – e caímos uma categoria, sendo classificados como democracia eleitoral
pelo Varieties of Democracy (V-DEM), um dos think tanks globais
mais prestigiados. No relatório de 2021, figuramos como uma das cinco
lideranças globais no processo conhecido como “autocratização”, acompanhados
por Hungria, Polônia, Sérvia e Turquia.
A literatura sobre regimes democráticos no mundo nos permite afirmar que estamos diante de uma nova onda de autocratização, cuja característica é singular: ela é lenta e a ruptura democrática se dá gradualmente e sob disfarce legal, num processo que envolve elementos políticos e de justiça. Aqui, não parece exagero afirmar que estamos diante deste processo, que se expressa em várias frentes.
Sua manifestação pode ser percebida pela
busca de controle pelo Estado do dia a dia da sociedade, traduzido no uso de
mecanismos de vigilância, que ocorre quando o Exército compra, sem licitação
pública, ferramenta que extrai dados de celulares e permite recuperar imagens e
localizações, bem como registro de redes sociais. Ou quando o Parlamento busca
modificar uma legislação antiterrorismo ampliando sua possibilidade de
interpretação e no aguardo de manifestação de comissão na Câmara dos Deputados.
Na sociedade civil, isso é visível quando
se busca reduzir seus espaços, ao tentar que a Secretaria de Governo fique
responsável pela supervisão e pelo monitoramento das organizações não
governamentais, e não pela interlocução política com elas, ou quando se
extinguem conselhos participativos, espaços políticos consolidados de
envolvimento da sociedade na formulação de políticas públicas. Quando
informações de interesse público, como a agenda do chefe do Executivo, passam a
ser classificadas como sigilosas ou quando se busca, como foi feito por sua
decisão, ampliar o número de atores com responsabilidade de decretar sigilo em
documentos oficiais.
Na educação, o processo de autocratização
se manifesta na tentativa de revisionismo histórico-científico, quando o
Ministério da Educação (MEC) exclui “violência contra a mulher” e “quilombolas”
de edital de livros didáticos ou quando o Ministério da Defesa afirma que o
golpe de 1964 fortaleceu a democracia.
Sua expressão se dá, também, na incitação à
violência, quando o número de armas registradas do País salta de quase 638 mil,
em 2017, para 1,5 milhão, em 2021. Quando a violência grave contra jornalistas
cresce a taxas anuais superiores a 20%, havendo um recorde de 69,2% nestes
últimos sete meses, com relação ao mesmo período de 2021.
É possível notá-lo, também, quando as
instituições são esvaziadas por dentro, tendo sua autonomia reduzida ou suas
funções descaracterizadas. É o que ocorre quando o Ministério Público Federal,
cuja função é defender os interesses da sociedade, opta por não agir.
Quando indígenas, minorias cujo direito de
existência é assegurado pela Constituição, têm recorde de assassinatos em 25
anos, mostrando quão distantes estamos da declaração da ONU de 1948, que afirma
que todos nós nascemos livres e iguais em direito e dignidade, e quão distantes
estamos também dos preceitos constitucionais.
Ou, ainda, quando a fragilização das
instituições dá espaço ao uso distorcido das liberdades, inclusive de opinião,
e deputados federais defendem intervenção militar pró-governo, atacam ministros
e exaltam o Ato Institucional n.º 5. Ocorre, também, quando 1/3 das emendas de
relator tem sua destinação não informada, a despeito da exigência de
transparência da principal Corte do País.
No que diz respeito às Forças Armadas, a
cada novo ataque do presidente da República às instituições e à democracia,
surgem dúvidas sobre a posição e coesão dos militares. A dúvida não é infundada
nem uma questão acessória numa democracia recente pós-regime militar, e parte
de uma premissa: a ruptura democrática ainda não se deu.
Parte da população e dos analistas espera
uma forma flagrante para determinar a existência e o momento dessa ruptura,
ignorando dois fatos: não foi o consenso que orientou o grupo nos golpes de
1955 e de 1964, o que não impediu a história de acontecer da maneira que
conhecemos. Em segundo lugar, já estamos diante de um processo de erosão
político-institucional, característico das democracias atuais, em que dia após
dia tudo parece igual, até que de repente tudo está diferente. Os fatos falam
por si. As saídas são a consciência, a política, a qualificação de lideranças
políticas, a união de democratas e a própria democracia.
*Cientista-política, é diretora executiva da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (RAPS)
2 comentários:
Arrasou no artigo!
Quantas palavras pra tentar dizer que a gente vive uma ditadura ou em
um projeto de ditadura, nunca se viveu tão livre aqui nesse país
Hoje a ameaça que nós temos e vivemos com medo são do STF, que pode a qualquer momento usar uma conversa de WhatsApp pra mandar te prender, mandar a Polícia Federal na sua casa e fazer busca e apreensão
Isso sim é que faz o brasileiro ter medo.
Vivemos em um país em que o presidente não prende, não persegue, não fecha jornal, não cancela na internet seus opositores e não censura ninguém Deixa de conversa fiada , A esquerda e o Lula é que deixaram claro que pretende fazer controle da mídia e reestatizar as empresas privatizadas e o socialismo é anti liberdade individual você está parecendo que está fazendo defesa de tese de sociologia baseada no Gramsci
A esquerda é socialismo e socialismo é Ditadura!
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