sexta-feira, 21 de outubro de 2022

César Felício - A Igreja Católica está na linha de fogo

Valor Econômico

Polarização política engolfa maior religião do Brasil

Independentemente do desfecho do segundo turno da eleição presidencial, já se configuram algumas derrotas para além do mundo partidário. Se não se pode considerar perdedora uma instituição milenar, no mínimo é possível dizer que a Igreja Católica Apostólica Romana vive no Brasil uma crise de grandes proporções.

De nenhuma maneira é comum - como tem sido nos dois últimos anos e se intensificou este mês - as demonstrações de desconforto da hierarquia do clero de Roma com o que ocorre dentro das sacristias e dos templos.

De dom Odilo Scherer, de São Paulo; a dom Leonardo Steiner, de Manaus, passando por dom Orlando Brandes, de Aparecida; dom Alberto Taveira, de Belém; dom Vicente Ferreira, auxiliar de Belo Horizonte e dom Jaime Spengler, de Porto Alegre; foram muitos os prelados que divulgaram em entrevistas, sermões ou publicações em redes sociais a mesma mensagem: fere o cerne da igreja a quebra da liturgia e da hierarquia que parte dos fiéis promove, ao transpor para dentro do culto a polarização que perpassa a sociedade.

Eles não nominam, mas nem precisa: o problema não é com a esquerda. Quando um vereador petista invadiu uma igreja em Curitiba para promover um ato político, o cardeal da cidade, dom José Peruzzo, não apoiou sua cassação. O problema é com o bolsonarismo, que encarnou dentro do catolicismo a subversão na acepção do termo: uma revolta contra a ordem ou o poder estabelecido, no caso o papa Francisco e seus representantes no Brasil.

A Igreja Católica parte de postulados que se chocam com o debate político hoje, tanto no Brasil quanto no mundo. O pensamento católico clássico é contrário às bandeiras identitárias que agradam a esquerda, tanto que o conceito de ideologia de gênero foi concebido por Bento XVI, e também se choca com o liberalismo econômico, que agrada a direita. Desde Leão XIII se considera na igreja que direito à propriedade é relativizado, precisa se subordinar à função social.

A doutrina católica representa portanto uma espécie de conservadorismo de esquerda, algo que não se encaixa nem em um extremo da polarização, nem no outro. Fica no meio do caminho, o que, em um ambiente de guerra civil, significa bem na linha do fogo cruzado.

A polarização na sociedade não vai acabar, alerta um religioso inequivocamente de esquerda, que é Frei Betto. Ele enxerga neste clima um risco maior: o de confessionalização do Estado e partidarização da religião. “Essa tensão vai permanecer, a polarização entrou até nas famílias. A CNBB tem tido uma postura crítica à mistura entre religião e eleição, mas é muito difícil”, comentou.

Para o frade dominicano, a esquerda tem dificuldade histórica de dialogar com o segmento religioso, o que se agravou nos últimos anos, com o advento da comunicação eletrônica. O clero contra Bolsonaro está distante do universo do TikTok, do Instagram, dos vídeos com audiência arrasa-quarteirão do YouTube. “Não conheço nenhum padre midiático a favor do Lula”, afirmou Frei Betto.

Os “padres midiáticos”, uma categoria ao qual Frei Betto, com sua coluna em jornal e 78 livros não se enquadra propriamente, por ser analógico demais, tornam-se às vezes reféns de seus rebanhos, e não seus pastores. Caso não se ajustem ao que se espera deles, enfrentam a ira.

Um com coragem para enfrentar essa ira é o Padre Zezinho, 81 anos, há décadas um sucesso na música religiosa, que anunciou no dia 13 a suspensão de sua atuação nas redes sociais até o fim do segundo turno, depois de ofensas “contra o papa, contra os bispos, contra mim, com calúnias e palavras de baixo calão”, conforme escreveu no Facebook. Ele esclarece na mensagem quais são as calúnias: “Mau padre, comunista e traidor de Cristo”.

O ovo dessa serpente começou a ser chocado nos anos 90, na visão de um ativista católico de linha conservadora, o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto. Trinta anos atrás a esquerda começou a trocar as suas bandeiras depois da queda do muro de Berlim, afastando-se gradualmente de uma visão anticapitalista para a defesa de uma sociedade mais sensível a questões da pauta de costumes.

Dentro do mundo católico, a reação a isso se traduziu em um crescimento do reacionarismo que, paulatinamente, foi transpondo os muros dos guetos em que estava confinado desde o Concílio Vaticano II.

Borba aponta que custou-se a perceber, no catolicismo, que havia esta contaminação entre ser conservador e ser reacionário, duas coisas que ele afirma serem bem diferentes.

O resultado, no Brasil, é que quem lidera a batalha no catolicismo contra a liberação do aborto hoje não se veste de púrpura e nem usa solidéu ou mitra. É gente capaz de interromper uma celebração da eucaristia para expor intolerância e uma opção política extremista. Há uma perda de liderança da hierarquia, se esvai pelos dedos a capacidade de liderança dos guias religiosos em relação a seus fiéis. “A Igreja Católica sai dessa eleição mais fragilizada e incerta da sua identidade”, opina Borba.

Por fim, essa semana também demonstra uma rendição do lado da esquerda. Em termos eleitorais, o catolicismo no Brasil é um ponto neutro. Não há um voto católico direcionado a A ou B, como há um voto evangélico. Normalmente o padrão de opção política dos católicos registrado nas pesquisas é semelhante ao padrão de voto nacional e essa é a principal razão pela qual em processos eleitorais se presta mais atenção aos evangélicos.

Esse processo culmina na carta assinada por Lula na quarta-feira. Se em 2002 a preocupação da esquerda era tranquilizar o mercado agora trata-se de acenar para os pastores. Quando um candidato com 76 anos de idade e 40 anos de estrada em disputas eleitorais precisa jurar que honrará “a dupla condição de cidadão e cristão”, fica claro que já há um vencedor nessa contenda. A esquerda há 20 anos abjurou de uma guinada radical da economia. Agora sinaliza reverenciar uma visão de mundo tradicional na sociedade brasileira. Consolida-se uma hegemonia.

 

Um comentário:

  1. Os padres são discretos demais,enquanto os pastores... Fábio de Melo apenas insinuou...

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