Correio Braziliense
Não existe apenas uma via de ascensão social,
pautada pelas políticas públicas inclusivas, de caráter social-democrata;
também há o empreendedorismo e o esforço individual na via iliberal, com outros
valores
“Toca para a frente, berrou o cabo. Fabiano
marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusação
medonha e não se defendeu.
— Está certo, disse o cabo. Faça lombo, paisano.
Fabiano caiu de joelhos, repetidamente uma lâmina de facão bateu-lhe no peito,
outra nas costas. Em seguida abriram uma porta, deram-lhe um safanão que o
arremessou para as trevas do cárcere. A chave tilintou na fechadura, e Fabiano
ergueu- se atordoado, cambaleou, sentou-se num canto, rosnando.
— Hum! hum!
Por que tinham feito aquilo? Era o que não podia saber. Pessoa de bons
costumes, sim senhor, nunca fora preso. De repente um fuzuê sem motivo.
Achava-se tão perturbado que nem acreditava naquela desgraça. Tinham-lhe caído
todos em cima, de supetão, como uns condenados. Assim um homem não podia
resistir.
— Bem, bem.
Passou as mãos nas costas e no peito, sentiu-se moído, os olhos azulados
brilharam como olhos de gato. Tinham-no realmente surrado e prendido. Mas era
um caso tão esquisito que instantes depois balançava a cabeça, duvidando, apesar
das machucaduras.
Ora, o soldado amarelo…”
Essa passagem de Vidas secas, de Graciliano Ramos (1852-1953), publicado em 1938, um clássico de nossa literatura moderna, retrata a relação de poder no sertão nordestino, num determinado momento na vida de uma família de retirantes, que foge de miséria e da seca. Fabiano é brutalmente agredido, depois de se retirar de um carteado, para o qual fora intimado pelo soldado amarelo, sem pedir autorização. Hoje, é uma situação corriqueira nas grandes cidades brasileiras, e não só nas periferias.
Mais do que a fuga da seca causada pela
inclemência da natureza (Arrastaram-se para lá, devagar, Sinhá Vitória com o
filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano
sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao
cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra
Baleia iam atrás.), o que oprimia Fabiano e sua família eram as relações de
dominação estabelecidas pelos próprios homens, cujas vidas são apresentadas em
toda a sua complexidade.
Assim como existe um racismo estrutural na
sociedade brasileira, há também um processo de exploração, humilhação e
alienação estrutural da maioria da população brasileira, o que explica o fato
de o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva liderar a disputa eleitoral para a
Presidência da República com ampla vantagem entre os eleitores de mais baixa
renda (até dois salários mínimos) e de menor escolaridade, principalmente no
Nordeste. Lula é um ex-retirante que chegou à Presidência. Ou seja, encarna o
sonho de qualquer nordestino ou cidadão pobre das periferias dos grandes
centros que pretende mudar de vida e a de seus filhos.
Mobilidade e inclusão
Para entender a exclusão estrutural,
precisamos considerar o regime escravocrata que vigorou no Brasil do início do
século 16 ao final do século 19, marcado pela exploração de mão de obra
africana trazida para o Brasil pelos colonizadores portugueses. A escravidão
deixou marcas profundas de desigualdade em todas as estruturas de poder.
Após a abolição, em 1888, pessoas negras
não tiveram acesso à terra, indenização ou reparo por tanto tempo de trabalho
forçado. Muitos permaneceram nas fazendas em que trabalhavam em serviço pesado
e informal. Foi a partir daí que se instalou o racismo estrutural, a exclusão
de pessoas negras dentro das instituições, na política, e em todos os espaços
de poder.
Esse conjunto de práticas discriminatórias,
institucionais, históricas, culturais, porém, não ficou restrito aos negros,
atingiu também os indígenas (cuja resistência à miscigenação foi combatida com
o extermínio físico e cultural) e a população mestiça e pobre, que viria a
migrar para os grandes centros com a urbanização e, principalmente, a
industrialização.
O mapa socioeconômico das eleições mostra
claramente que as classes médias e a elite econômica do país, majoritariamente,
desejam a continuidade do governo Bolsonaro. Mesmo que eventualmente discordem
de suas posições mais extremistas, da sua misoginia e autoritarismo. E que a
população de mais baixa renda, excluída de quase tuto, exceto o direito ao voto
secreto, direto e universal, também majoritariamente, apoia a oposição e deseja
a mudança, com a volta de Lula ao poder.
É uma divisão perigosa, porque revela um
conflito estrutural, de natureza de classe. Historicamente, isso tem se
resolvido com a força bruta das soluções autoritárias, que buscam a
modernização do país por vias que mantêm a secular exclusão da grande massa da
população, despreparada cultural e tecnicamente para um novo ciclo de
transformações, como o que estamos vivendo.
Está vivíssima a velha segregação social, que explica as cidades partidas, a existência de elevadores sociais e de serviço em edifícios residenciais e suas dependências de empregadas. Mas não podemos ser maniqueístas, não existe apenas uma via de ascensão social, pautada pelas políticas públicas de caráter inclusivo, social-democrata ou social-liberal; existe a via iliberal, que também tem o empreendedorismo e o esforço exclusivamente individual como fatores de mobilidade social, de formação da nova classe média e de uma nova elite econômica, com outros valores.
O Brasil está rachado,o rei das rachadinhas que o diga.
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