sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Maria Cristina Fernandes - A trajetória de um partido improvável

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Celso Rocha de Barros reconstitui a trajetória do partido que tanto emergiu quanto viveu a maior crise quando o país parou de melhorar. Ausente da “transição pelo alto”, aposta na recomposição dos trilhos da democracia

Ambos são conhecidos pelo diminutivo de seus nomes, presidiram os maiores sindicatos de metalúrgicos do país, de São Bernardo do Campo e de São Paulo e, no mesmo ano, elegeram-se para comandar as duas maiores centrais sindicais do país, CUT e Força Sindical. Em 2 de outubro, o destino dos deputados federais Vicente Paulo da Silva (PT-SP) e Paulo Pereira da Silva (SD-SP) voltou a se cruzar.

Depois de cinco e quatro mandatos consecutivos, respectivamente, tanto Vicentinho quanto Paulinho ficarão fora da próxima legislatura. Some-se aí o insucesso da reeleição de Orlando Silva (PCdoB-SP), o parlamentar mais próximo de uma terceira central sindical, a CTB, e se configura o quadro de desempenho da bancada sindical. Do auge, em 2010, quando fez 81 parlamentares, restarão 33, uma redução de um quarto em relação à atual legislatura da Câmara dos Deputados.

No mesmo 2 de outubro, Luiz Inácio Lula da Silva fez seu melhor primeiro turno das seis eleições presidenciais de que participou, mas foi surpreendido pela resiliência do bolsonarismo que colocou o presidente da República no segundo turno a uma distância inferior à projetada pela campanha petista e pelos institutos de pesquisa.

O resgate daquilo que se passou entre a emergência dos metalúrgicos na política e a vantagem apertada de Lula na nona disputa presidencial do partido é tema de Celso Rocha de Barros em “PT, uma história” (Companhia das Letras, 2022). Como previu Perry Anderson, ao defini-lo como o único partido de massas surgido do movimento sindical depois da Segunda Guerra Mundial, nunca foi uma história previsível.

O livro, concluído em março deste ano, é baseado em 56 entrevistas e levou três anos para ser escrito na prosa direta e provocativa do sociólogo. Doutor em sociologia em Oxford, servidor federal, Rocha de Barros começou a escrever sobre conjuntura no site “Na prática, a teoria é outra”, até virar colunista na “Folha de S.Paulo”.

“Sua jornada, de Garanhuns a São Bernardo, representava o auge do processo varguista de industrialização”, diz o sociólogo na abertura do capítulo sobre a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência. Oito anos antes, Fernando Henrique Cardoso havia se despedido do Senado dizendo que seu desafio no Palácio do Planalto seria a superação da era varguista.

FHC cumpriu parte do desmonte com as privatizações. Lula, apesar de ter ascendido no movimento sindical com o vaticínio de que a “CLT é o AI-5 do Trabalhador”, não apenas preservaria a contribuição sindical como manteria, sob seu alcance, as centrais sindicais. A ampliação da estrutura sindical não o impediria de perder as rédeas da nova organização do mundo do trabalho, principalmente no setor de serviços.

Quem acabaria por colocar uma pedra na era Vargas seria a dupla Michel Temer-Jair Bolsonaro, um com a reforma trabalhista e o segundo ao ampliá-la a partir da Lei da Liberdade Econômica. Quando a covid-19 aportou no Brasil, esse novo arcabouço já vigia. Foi assim que a economia dos aplicativos ganhou corpo, deu gás ao nanoempreendedorismo e forneceu ao bolsonarismo sua tessitura social.

Além de ampliar a desregulamentação do trabalho iniciada por Temer, Bolsonaro também ampliou, para os miseráveis, o crédito que Lula havia aberto para os mais pobres, com o consignado para o Auxílio Brasil. O livro recupera a adoção da política pelo governo Lula. Um dia, o ex-presidente virou-se para seu então ministro da Fazenda e disse: “Palocci, quer subir o juro, sobe, f..-se, quer dar juro alto pro mercado, f..-se, mas você vai ter que aumentar um juro para os trabalhadores que seja bem mais baixo”.

Se a expansão do crédito, à época de Lula, teve a interferência decisiva dos sindicatos, que negociaram o limite dos juros, a da era Bolsonaro foi feita sem intermediários, até mesmo dos grandes bancos, que temeram o risco reputacional e caíram fora do mercado.

Não foi apenas a desintermediação das políticas públicas na Era Bolsonaro que impactou na redução da bancada sindical. Mais importante parece ter sido a crise no financiamento sindical e a novilíngua da política. Os movimentos sociais que ascenderam à Câmara dos Deputados ou que lá se mantiveram o fizeram sem subvenções e na disputa pelas redes sociais.

Foi neles que o eleitor identificou o contraponto ao poder de plantão. Os sem-terra mantiveram sua representação mas os sem-teto e o movimento LGBTQ+ estarão melhor representados do que jamais o foram.

Se a campanha de Lula tem sido vítima, mais uma vez, do discurso de costumes, não é pela ausência de familiaridade com a pauta. O livro resgata os primórdios da adesão dos movimentos identitários ao PT, ainda nos anos 1980, das feministas aos gays, passando pelos negros - “Era o partido mais aberto para os movimentos e, o que parecia decisivo, não tinha um grande ‘dono’ carismático”.

O partido teve, inclusive, que apartar a luta interna dos próprios movimentos nos trabalhos da Constituinte. Numa audiência pública, um militante negro do PT, também servidor da Câmara, reclama que as questões de gênero tenham sido objeto de uma comissão, enquanto as de raça haviam sido relegadas a uma subcomissão: “Quero que alguém me prove se nos navios negreiros, nos quilombos, nas senzalas existiu a prática do homossexualismo, que desconheço no meio da nossa raça”.

A parlamentar encarregada de responder ao militante, Benedita da Silva, também é a prova de que o PT, apesar de ter, nas Comunidades Eclesiais de Base, um de seus pilares, também trouxe para dentro do partido a emergência dos evangélicos na sociedade. Se captou, desde a formação do partido, o fenômeno evangélico no país, o PT não parece ter sido capaz de acompanhar as metamorfoses de sua ascensão, como a campanha presidencial está a demonstrar.

Num café da manhã no domingo antes do primeiro turno, Gilberto Carvalho, uma das lideranças que entrou no partido pela via do operariado católico e se tornaria um dos petistas mais próximos de Lula, comentaria as dificuldades da campanha dizendo que só uma “teologia da libertação evangélica” resolveria esse divórcio do PT com a denominação religiosa.

Se os petistas conhecem há décadas as ciladas da pauta de costumes que a campanha bolsonarista tem espalhado em seu caminho, sua passagem pelo governo também deveria ter sido suficiente para aquilatar o impacto que a elevação do consumo dos mais pobres tem nesta eleição, graças ao atropelo das leis eleitorais e da Constituição.

A crítica de Gilberto Carvalho, partilhada por muitos petistas, de que o PT foi capaz de criar milhões de consumidores e não de forjar cidadãos, é contraposta aos estudos de Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Scalco, sobre o impacto da elevação de renda em comunidades periféricas de Porto Alegre entre 2009 e 2014.

Entre os achados das pesquisadoras, recuperados no livro, está a ruptura de atitudes de subalternidade causada pelo orgulho de consumir os mesmos bens, frequentar os mesmos lugares que ‘as madames’ e ‘entrar pela porta da frente’. É arriscado, diz Rocha de Barros, apostar na despolitização deste consumo: “Afinal, nos anos 1970, muita gente na esquerda achou que os metalúrgicos do ABC eram integrados demais ao capitalismo para liderar um movimento de contestação”.

Não foi a primeira vez que o PT se deparou com o impacto sobre o consumo de políticas propostas por adversários. Em entrevistas ao autor, petistas bem postos reconhecem o quanto foram pegos de calça curta pelo Plano Real. Depois da adesão uníssona a Lula da equipe que o implantou em 1994, o reconhecimento parece até natural, mas três décadas atrás parecia completamente improvável.

O PT já havia começado a moderar o discurso com a ascensão de seus sindicalistas a representantes de fundos de pensão nos conselhos de administração das empresas, mas custou a depurar o conflito vaticinado pelo ex-governador Franco Montoro - e se o PT resolvesse moderar o discurso, o que seria dos “social-democratas” do PSDB? Como o primeiro turno demonstrou, quem acabaria por engolir os tucanos seria Bolsonaro.

Militante do PT na juventude, Celso Rocha de Barros pisa sem rodeios nas feridas da legenda. Não tem dúvida de que os desvios da Petrobras são o “episódio mais vergonhoso” da história de um partido que diz ter deixado como maior contribuição para a Constituinte a formulação autônoma do Ministério Público, gestada, ironicamente, na “Carta de Curitiba”, em 1986.

O ímpeto moralizador que elegeu Fernando Collor de Mello, lembra, não era estranho ao PT. Tanto que, um ano antes, Maria Luiza Fontenelle, que tomou posse na prefeitura de Fortaleza no mesmo ano que Luiza Erundina assumiu a de São Paulo, demitiu “funcionários fantasmas” com o mesmo ímpeto com o qual o ex-presidente dizia “caçar marajás”.

Apesar do Orçamento Secreto, das “rachadinhas”, do sigilo de 100 anos de Bolsonaro, o PT chega a mais uma eleição perseguido pelo estigma da corrupção. E a razão, resgatada de um fundador do PT, Juarez Guimarães, é simples: “Corrupção é a expressão mais clara da privatização do Estado”.

O Centrão parece dar razão à tese esboçada por Rocha de Barros de que o PT, como único partido a ser punido no exercício do poder, como o foi no “mensalão” e no “petrolão”, levou os corruptos a buscar refúgio na direita, onde o poder político, econômico e judicial já demonstrou ter mais capacidade de blindagem.

Tudo isso colabora para tornar inexplicável a ausência de uma proposta clara e contundente de uma reforma do estado eficaz no combate à corrupção. A duas semanas do segundo turno, o melhor lembrete parece ser aquele do velho trotskista e fundador do PT Mario Pedrosa, resgatado no livro: “Partido de massa não tem vanguarda, não tem teorias, não tem livro sagrado. Ele é o que é, guia-se por sua prática, acerta por seu instinto. Quando erra, não tem dogmas e, pela autocrítica, refaz seu erro”.

 

2 comentários:

  1. Bons e maus momentos (e movimentos) do PT... De única alternativa ética entre os partidos a mais um partido como outro qualquer. Com a diferença que não tinha dono no começo e agora depende de (ou pertence a) Lula! E é no momento a única alternativa ao GENOCIDA...

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  2. Explicando: única alternativa ética entre os partidos era como os petistas se enxergavam e se autoproclamavam... A humildade nunca foi o forte deles! Em 2018, tudo o que queriam era ser vistos como um partido igual aos outros, não como o partido que comandou o mensalão e o petrolão, enquanto Lula tirava férias forçadas na sala especial da PF em Curitiba...

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