Folha de S. Paulo
Alguns esforços imediatos terão que ser
feitos para reduzir os riscos de uma recaída autoritária
A democracia constitucional
brasileira resistiu a um presidente de extrema direita e seu intenso vandalismo
institucional. Sem disparar um só tiro, a maioria dos eleitores apeou do poder
um governante hostil ao estado
democrático de direito e cercado de apoiadores fortemente armados.
Esse é um feito que devemos celebrar, especialmente em uma conjuntura na qual
diversas outras democracias ao redor do mundo têm sucumbido a processos de
autocratização.
O fato, porém, é que foi por um triz. Não
há como negar que o projeto autoritário e regressivo de Bolsonaro atraiu
amplos setores do eleitorado, como demonstra a adesão de um número
significativo de pessoas às manifestações
antidemocráticas que se sucederam ao término do pleito eleitoral.
Isso é sinal de que o pacto democrático estabelecido em 1988 se esgotou? Penso que não. Mas alguns esforços imediatos terão que ser feitos para reduzir os riscos de uma recaída autoritária. O primeiro desafio, no plano das relações políticas e sociais, é buscar arrefecer a polarização visceral, que contaminou o tecido democrático brasileiro, a partir de 2014.
Dada a natureza não racional dessa
polarização, a cultura, as artes, o humor, os esportes e mesmo as lideranças
religiosas moderadas serão essenciais para a reconstrução de uma sociabilidade
política menos conflitiva. Se é fato que a cordialidade brasileira sempre foi
um mito, voltado a encobrir o arbítrio e a discriminação, a cordialidade também
pode servir como uma aspiração de identidade nacional. O brasileiro precisa
voltar a querer ser mais cordial, boa praça e curioso. Não podemos nos
contentar com uma vida política marcada pela grosseria, pela intolerância e
pelo obscurantismo.
O ressentimento e a desconfiança, que
alimentam essa polarização visceral, somente serão reduzidos, no entanto, se as
pessoas também testemunharem que seus temores mais profundos, como o fechamento
de igrejas ou invasão de suas casas, não se realizarão. Mais do que isso,
precisarão experimentar, na vida real, uma maior prosperidade, o que depende da
boa gestão econômica do país.
O segundo desafio está relacionado ao
comportamento das instituições, que foram degradadas neste período. Há um
conceito desenvolvido por agências que lidam com desastres, que determina que
devemos nos concentrar em "reconstruir melhor aquilo que tínhamos no
passado", para que possamos mitigar os riscos de uma nova catástrofe no
futuro.
Chamo atenção aqui para apenas dois
aspectos de nossa vida institucional. O primeiro deles diz respeito ao processo
orçamentário. O orçamento brasileiro tornou-se um campo de batalha pelo
dinheiro público entre grupos privilegiados. Sem que o Brasil adquira a
capacidade de estabelecer de forma transparente suas prioridades socialmente
relevantes que, de fato, contribuam para a redução das desigualdades e a
promoção do desenvolvimento sustentável, o Estado continuará a ser visto como
vilão a ser eliminado.
O segundo aspecto se refere à integridade
na aplicação da lei. A impunidade e o arbítrio por parte do Estado fomentam
comportamentos oportunistas e antissistema por parte de atores sociais, assim
como a criação de um mercado perverso de imposição da ordem, seja por
milicianos ou governantes autoritários.
Se o próximo governo não der respostas mais
consistentes a essas promessas não cumpridas da democracia, teremos mais uma
vez um encontro marcado com a extrema direita. Lembrando sempre que dessa vez
foi por um triz.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
Concordo cem por cento.
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