sábado, 19 de novembro de 2022

Oscar Vilhena Vieira* - Por um triz

Folha de S. Paulo

Alguns esforços imediatos terão que ser feitos para reduzir os riscos de uma recaída autoritária

democracia constitucional brasileira resistiu a um presidente de extrema direita e seu intenso vandalismo institucional. Sem disparar um só tiro, a maioria dos eleitores apeou do poder um governante hostil ao estado democrático de direito e cercado de apoiadores fortemente armados. Esse é um feito que devemos celebrar, especialmente em uma conjuntura na qual diversas outras democracias ao redor do mundo têm sucumbido a processos de autocratização.

O fato, porém, é que foi por um triz. Não há como negar que o projeto autoritário e regressivo de Bolsonaro atraiu amplos setores do eleitorado, como demonstra a adesão de um número significativo de pessoas às manifestações antidemocráticas que se sucederam ao término do pleito eleitoral.

Isso é sinal de que o pacto democrático estabelecido em 1988 se esgotou? Penso que não. Mas alguns esforços imediatos terão que ser feitos para reduzir os riscos de uma recaída autoritária. O primeiro desafio, no plano das relações políticas e sociais, é buscar arrefecer a polarização visceral, que contaminou o tecido democrático brasileiro, a partir de 2014.

Dada a natureza não racional dessa polarização, a cultura, as artes, o humor, os esportes e mesmo as lideranças religiosas moderadas serão essenciais para a reconstrução de uma sociabilidade política menos conflitiva. Se é fato que a cordialidade brasileira sempre foi um mito, voltado a encobrir o arbítrio e a discriminação, a cordialidade também pode servir como uma aspiração de identidade nacional. O brasileiro precisa voltar a querer ser mais cordial, boa praça e curioso. Não podemos nos contentar com uma vida política marcada pela grosseria, pela intolerância e pelo obscurantismo.

O ressentimento e a desconfiança, que alimentam essa polarização visceral, somente serão reduzidos, no entanto, se as pessoas também testemunharem que seus temores mais profundos, como o fechamento de igrejas ou invasão de suas casas, não se realizarão. Mais do que isso, precisarão experimentar, na vida real, uma maior prosperidade, o que depende da boa gestão econômica do país.

O segundo desafio está relacionado ao comportamento das instituições, que foram degradadas neste período. Há um conceito desenvolvido por agências que lidam com desastres, que determina que devemos nos concentrar em "reconstruir melhor aquilo que tínhamos no passado", para que possamos mitigar os riscos de uma nova catástrofe no futuro.

Chamo atenção aqui para apenas dois aspectos de nossa vida institucional. O primeiro deles diz respeito ao processo orçamentário. O orçamento brasileiro tornou-se um campo de batalha pelo dinheiro público entre grupos privilegiados. Sem que o Brasil adquira a capacidade de estabelecer de forma transparente suas prioridades socialmente relevantes que, de fato, contribuam para a redução das desigualdades e a promoção do desenvolvimento sustentável, o Estado continuará a ser visto como vilão a ser eliminado.

O segundo aspecto se refere à integridade na aplicação da lei. A impunidade e o arbítrio por parte do Estado fomentam comportamentos oportunistas e antissistema por parte de atores sociais, assim como a criação de um mercado perverso de imposição da ordem, seja por milicianos ou governantes autoritários.

Se o próximo governo não der respostas mais consistentes a essas promessas não cumpridas da democracia, teremos mais uma vez um encontro marcado com a extrema direita. Lembrando sempre que dessa vez foi por um triz.

*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

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