quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Tiago Cavalcanti* - Um marco na história

Valor Econômico

É essencial reconhecer que o país é mais conservador do que quando Lula assumiu pela primeira vez em 2003

 “Vamos juntos pelo Brasil, olhando mais para aquilo que nos une do que para as nossas diferenças.

Vou governar para 215 milhões de brasileiros e brasileiras e não apenas para aqueles que votaram em mim. Não existem dois Brasis. Somos um único país, um único povo, uma grande nação”.

Essas foram algumas das primeiras palavras proferidas por Lula no domingo, dia 30 de outubro de 2022, logo após ser eleito presidente da República pela terceira vez.

Apesar de serem mensagens sobremaneira esperadas de quem vai governar um país desigual, heterogêneo e socialmente diverso, o marcante discurso de Lula contrastou fortemente com a retórica do atual presidente nos últimos quatro anos.

Em outubro de 2018, após o primeiro turno e com a vitória final quase assegurada, conforme as pesquisas da época, Bolsonaro soltou para seus apoiadores na Avenida Paulista o que seria o padrão de seus discursos nos anos seguintes:

“Essa turma (do PT), se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia. Vamos varrer do mapa os bandidos vermelhos do Brasil”. Naquele mesmo dia, Bolsonaro atacou a imprensa e outras importantes instituições brasileiras.

O presidente continuou ao longo de seu mandado se dirigindo principalmente ao seu núcleo duro de apoiadores em “lives” e “twitters”, confrontando as instituições e sem diálogo com seus opositores, mesmo durante momentos críticos da pandemia.

Bolsonaro buscava colocar na conta dos governadores a crise econômica que inevitavelmente viria com o aumento de casos de covid-19. Sem se responsabilizar por suas ações e ignorando o papel de líder da nação, o presidente não coordenou com os governadores e prefeitos as políticas para enfrentar a maior crise sanitária desse século.

O discurso do presidente na pandemia era principalmente contra qualquer restrição de movimento de pessoas, quando pouco se sabia sobre a letalidade e contágio da doença. Além de não incentivar a vacinação e promover de forma irresponsável tratamentos com eficácias duvidosas sobre os efeitos da doença.

Bolsonaro não entendeu que parte dos seus votos em 2018 não eram realmente a seu favor e de pessoas que não necessariamente acham que a resolução de conflitos deve ser feita de forma individual, sem qualquer mediação institucional.

Isso culminou no caso emblemático da deputada Carla Zambelli, que sacou e apontou sua arma nos Jardins, em São Paulo, contra um cidadão após uma discussão no sábado antes da eleição.

Logo após o acontecido, Flávio Bolsonaro, senador e filho mais velho do presidente “twittou” o caso e concluiu: “A arma serve pra isso, cidadão de bem se defender de bandidos”. Eduardo Bolsonaro, deputado federal e outro filho do presidente deu “like” e “retwittou” a mesma mensagem.

Se isso não for o empoderamento para as pessoas usarem armas de fogo em qualquer situação trivial, o que será?

Parte dos votos de Bolsonaro em 2018 era também de pessoas que não apoiavam a política ambiental do seu governo e que eram opostas às políticas educacionais do Ministério da Educação, que, com quatro trocas de ministros em quatro anos, priorizou questões ideológicas ao invés de resultados educacionais.

Assim, pela primeira vez desde 1998, o presidente incumbente não ganha a eleição. Isso, com uma economia dando sinais de recuperação e após a PEC Kamikaze de julho passado, que, achando brechas na legislação, permitiu ao governo federal distribuir cerca de R$ 41 bilhões na forma de diversos auxílios financeiros claramente eleitoreiros.

Lula, em seu discurso, deixou claro que sua eleição não é um voto apenas de apoio ao PT: “Esta não é uma vitória minha, nem do PT, nem dos partidos que me apoiaram nessa campanha. É a vitória de um imenso movimento democrático que se formou, acima dos partidos políticos, dos interesses pessoais e das ideologias, para que a democracia saísse vencedora”.

Unir o país será um dos principais desafios de Lula, que conseguiu agregar no seu palanque adversários do passado e políticos de diferentes partidos. É inclusive preciso um forte diálogo com as pessoas que apoiaram o presidente Bolsonaro, como por exemplo, o grupo importante e crescente de evangélicos.

Além disso, é essencial reconhecer que o país é provavelmente mais conservador do que quando Lula assumiu o poder pela primeira vez em 2003. Por isso, vai ser uma necessidade inadiável escutar as demandas dos diversos grupos. Neste momento, ninguém melhor do que o presidente eleito Lula para esta missão.

Qualquer governo só tem sucesso pleno se a economia for bem. Assim, é fundamental o novo governo não repetir erros primários, que resultaram em desperdícios e má alocação do dinheiro público. O crucial é concentrar as ações no cuidado às pessoas, na proteção ao meio ambiente, melhoria da infraestrutura pública e promoção da criatividade e inovação.

É inescapável termos estabilidade financeira e fiscal para que o governo tenha efetiva capacidade de cuidar das pessoas, incluindo políticas de aumento real do salário mínimo, de investimentos na capacidade humana das pessoas e inclusão produtiva dos mais carentes, compromissos explícitos de Lula durante a campanha.

*Tiago Cavalcanti é professor de Economia da Universidade de Cambridge e da FGV-SP

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