Valor Econômico
O desafio é religar o passado às urgências
contemporâneas
Presidentes da República que compreenderam
as circunstâncias com que foram confrontados conquistaram reconhecimento da história.
Com José Sarney, foi a democracia: entregou ao país uma nova Constituição e
eleições diretas. Itamar Franco enfrentou a inflação. Mentor do Real, FHC
consolidou a estabilidade da moeda. Luiz Inácio Lula da Silva pôde avançar
enfrentando a pobreza e a fome. Michel Temer administrou o colapso até a
eleição de 2018.
Fernando Collor de Mello, Dilma Rousseff e
Jair Bolsonaro não souberam interpretar seu tempo. O presidencialismo imperial
de Collor resultou no impeachment de 1992; a tecnocracia desenvolvimentista,
amiga do patrimonialismo, levou Dilma ao seu, em 2016.
Bolsonaro agarrou-se ao mandato, aliando-se
ao fisiologismo mais explícito da história. Mas comprometeu o processo
político, econômico e institucional do país acumulado desde 1985.
Presidente do negacionismo - científico, democrático e institucional -, alimentou a voracidade fisiológica do Centrão, comprometeu políticas públicas, a saúde fiscal e a imagem internacional do país; usou e abusou de recursos públicos, da máquina administrativa e do poder econômico.
Perdeu a eleição e pôs em risco a paz e a
unidade nacionais. Mas, admita-se, o retrocesso foi um filme de vários
protagonistas.
Na última década, o diabo esteve solto “na
rua, no meio do redemoinho” sem quem o domasse. Tempo agreste sem vereda.
O voluntarismo econômico voltou; a
exacerbação do conflito expulsou o diálogo da mesa de jantar; militares se
expandiram na arena política; o equilíbrio entre poderes foi desprezado; o meio
ambiente esteve à sorte de exterminadores.
A fome retornou, a peste se chegou. O
abismo sorriu e só não nos engoliu porque a eleição e a Justiça Eleitoral o
contiveram.
Como recuperar frutos se árvores arrancadas
não retomam o mesmo viço? O retrocesso foi superlativo, mas o pressuposto é
recuperar raízes: o conceito de democracia e sua pedagogia, reconstruir a
higidez institucional e a racionalidade econômica, restabelecer um padrão
fiscal confiável.
E, ainda assim, o país não voltará à
euforia de fins da década de 2000: o Cristo Redentor permanecerá estático por
bom tempo. Simplesmente buscar o ponto de ruptura pode ser inútil. Sob ruínas
em vários aspectos, o mundo mudou e requer, agora, nova arquitetura.
Na roda dos recomeços, o país necessita
tanto de um novo pacto político quanto de modernização.
Algo como a temperança de Tancredo Neves
somada ao arrojo de Juscelino Kubitscheck: distensão com os olhos no século
XXI. O resgate é do passado, mas a fuga precisa ser para frente.
Este é o desafio histórico do Lula 3:
encontrar o fio da meada e religar o passado às urgências contemporâneas,
recuperar o espírito nacional, compreender dificuldades, aproveitar
oportunidades. Redivivo para a política, o novo-velho presidente tem
consciência do drama e atenderá aos apelos das circunstâncias que requerem
reconexão, renovação e melhoria?
Ressentimento e oportunismo,
autossuficiência e arrogância são maus conselheiros. Voltar à Hora H do
impeachment de Dilma é ilusão e já ali desvios e devaneios abalavam a estrada.
Erros repetidos somados não perfazem acertos. É preciso refazer com ajustes.
Os condicionantes da história são
radicalmente novos: o planeta está abalado pela revolução tecnológica,
envelhecido nas relações do trabalho, ultrapassado em modelos de educação, questionado
nos sistemas de representação política e mais exposto à pandemias e guerras.
Melhor abraçar os novos problemas do que fugir deles: a superação está no
futuro.
Ao redor de Lula, no entanto, não há a
constelação de quadros de 2002.
A formulação política e programática
envelheceu e importantes colaboradores se foram com o tempo, a morte e o
escândalo.
Inútil e improdutivo recrutar quadros em
forças ultrapassadas, profetas do ontem fissurados nos erros de sempre.
Obrigado a engolir indicações, ainda assim o presidente da República deve
favorecer o futuro.
Hoje, os atores políticos conectados com o
mundo moderno são poucos. Será necessário identificá-los e promovê-los.
Seria proveitoso que Lula se distanciasse
de bajuladores que o façam outra espécie de “mito”. Ao pé de si, o presidente
necessita que o digam: “és mortal”.
A realidade brasileira pede um núcleo duro
capaz de compreender que o mundo moderno gira em torno da reconstrução do
processo democrático, institucional e econômico, com inovação.
O paradoxo é apenas aparente: voltar atrás
para seguir em frente; roteiro de um “De Volta Para o Futuro” político e real.
A magia requer capacidade de articulação com o velho que desmorona, mas ainda
respira.
Será fundamental “fazer política”, mas com
vistas à transformação. Política sem objetivo programático é só politicagem. Um
novo núcleo duro surgirá - e parte já surgiu na transição. Seu desafio é de
visão e timing.
A sociedade de Lula, seus companheiros e
inimigos já não existe; restam nostalgia e melancolia. O refazimento requer a
ousadia do contemporâneo. Desesperadamente, o país precisa que Lula se mantenha
entre os presidentes que compreenderam a história.
*Carlos Melo é cientista
político e professor senior fellow do Insper.
Muito bom o artigo.
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