Valor Econômico
Constituição de 1988 acabou com “muito
Brasília e pouco Brasil”
A visão de que Brasília, como sede do poder
e, portanto, da burocracia estatal, impede o progresso do país é similar e tão
perigosa quanto a de que o Congresso Nacional é povoado por políticos
corruptos. Não é coincidência o fato de que, quando essas percepções escalam na
opinião pública, a democracia seja colocada em xeque. Casos de corrupção
envolvendo protagonistas políticos são a justificativa usada por grupos da
sociedade que ainda veem a democracia como um aborrecimento.
No livro “A construção de um Estado para o século XXI” (Cobogó, 2022), Francisco Gaetani e Miguel Lago explicitam velhos e conhecidos problemas do serviço público, mas são iconoclastas ao derrubarem mitos que predominam na maneira como parte da sociedade vê o Estado brasileiro. Didática, a obra é desprovida de “economês” (dialeto criado por economistas que consideram o conhecimento da Economia um recurso de poder extraordinário que os coloca numa categoria acima das dos demais cidadãos) e trata os temas de maneira profunda.
A tese de que o serviço público é de baixa
qualidade, por exemplo, é corrente entre não usuários dos serviços, mas não é
corroborada por aqueles que mais recorrem ao Estado. Pesquisa feita pelo
Datafolha em 2019, antes, portanto do início da pandemia, mostrou que, dentre
as pessoas que avaliaram negativamente o Serviço Único de Saúde (SUS), 68% se
declararam como “não usuários” do sistema público. No caso dos usuários
frequentes do SUS, a avaliação positiva foi superior à negativa (30% contra
26%).
“O fato, porém, é que essa ideia de que ‘o
governo não serve para nada’ é mais forte nas classes médias do que nas classes
populares. Contudo, é preciso registrar que, no Brasil, as primeiras evitam o
serviço público sempre que podem, enquanto as segundas não têm outra opção”,
observam Gaetani e Lago.
Outro tema, este ainda mais controverso, é
o da estabilidade do funcionalismo no emprego. Os funcionários têm estabilidade,
mas será que todos os 11,5 milhões (considerando os três poderes na União, nos
Estados e municípios) são estáveis?
“Apenas os servidores estatutários têm
estabilidade na carreira. Eles representam a grande maioria do funcionalismo,
mas não a sua totalidade. Em 2019, cerca de 10 milhões eram estatutários, cerca
de 850 mil eram temporários e cerca de 550 mil, celetistas (sob a égide da
Consolidação das Leis do Trabalho). Quando pensamos em 11,5 milhões parece
muito, mas em termos comparativos, o Brasil tem poucos funcionários.”
Gaetani e Lago lançam mão do conceito de
funções “regalianas” (palavra que deriva do latim “regalis”, cujo significado é
“real”) para tratar das atividades típicas de Estado, daquilo que está
estreitamente ligado ao exercício da soberania do chefe de Estado. “Designa os
poderes exclusivos que apenas o soberano pode exercer e sem os quais não há
como haver soberania. São funções regalianas as que garantem a segurança
externa - Forças Armadas e diplomacia -, a segurança interna - forças policiais
e Justiça - e a soberania monetária - a emissão de moeda [a cargo do Banco
Central]”, explicam os dois autores, que, para viabilizar esta obra de suma
importância ao debate nacional, tiveram o apoio fundamental da ONG
Republica.org, criada e dirigida por Guilherme Coelho.
“[O setor público] deve organizar uma série
de serviços que, dada a escala e o volume, seriam mais bem conduzidos pelo
Estado, do ponto de vista econômico, do que por agentes do mercado. Esse é o
caso de estruturas universais que atendem à integralidade da população. É o
caso de algumas infraestruturas de abastecimento, algumas modalidades de
transporte e algumas atividades comuns a todos os cidadãos, como educação e
saúde. Sistemas de saúde públicos tendem a ser mais econômicos do que sistemas
de saúde privados, pois o próprio pagador controla os custos da atividade,
tornando a ação de saúde menos fragmentada e com menos custos de transação.”
Para se ter um ambiente de negócios
dinâmico, uma economia de mercado funcional, é importante que o setor público
se ocupe de estruturas universais que são mais eficientes, do ponto de vista
gerencial, sob sua responsabilidade do que sob a batuta do setor privado,
explicam Gaetani e Lago. O mesmo diz respeito à concorrência, aspecto fundamental
para a legitimação da economia de mercado como melhor sistema de geração de
riquezas numa democracia. “A proteção da concorrência é uma das mais
importantes instituições para o bom funcionamento do mercado. Um mercado sem
concorrência é um monopólio ou um cartel, que causa prejuízos à sociedade e à
economia.”
O governo faz muita coisa, porém, pelas
razões mencionadas, é possível ver que o setor público produza uma série de
ações diversas, complexas, com grande multiplicidade de objetos e setores. “A
pessoa que reclama por pagar impostos e não receber nada em troca não entende
que toda a regulação de trânsito quando ele se move é feita pelo setor público,
que todas as empadinhas comidas no boteco da esquina passaram (ou deveriam ter
passado) por um controle da Vigilância Sanitária, que fiscaliza a higiene dos
estabelecimentos comerciais privados, entre tantas outras coisas. A questão,
portanto, não é se perguntar se o Estado faz coisas pelo cidadão, mas, sim,
perguntar-se quais são aquelas que o Estado deve priorizar e se o Estado as faz
bem”, dizem os autores.
Outro ponto crucial nessa discussão é sobre
a ideia de que existe pouco Brasil e muito Brasília. Trata-se de afirmação
historicamente verdadeira, mas que, desde a Constituição de 1988, está longe de
ser uma realidade. “Ao contrário, o que se viu desde então foi uma expansão das
competências, dos orçamentos próprios. Os municípios deixaram de ser unidades
administrativas para se tornar entes federativos. Em 1950, o Brasil dispunha de
1.889 municípios. No período anterior ao golpe de 1964, esse número cresceu
para 2.766. No período final do regime militar, em 1980, chegava-se a 3.991
municípios. Logo após a Constituição, esse número chegou a 4.491 e só estagnou
a partir de meados dos anos 1990, com já pouco mais de 5 mil, graças às novas
regras estabelecidas no Fundo de Participações dos Municípios (instrumento do
governo federal que gere os repasses federais).”
Acredito que haja um detalhe que precisa ser levado em conta: muitos críticos liberais atacam o estado de forma injusta e até leviana, na ilusão de que o mercado representa o âmbito mais eficiente para o desenvolvimento.
ResponderExcluirTirando esse detalhe, e reforçando a importância do funcionalismo público dos escalões inferiores que representam 99 por cento do setor, o fato é que a crítica a uma nababesca cidade encravada nos rincões do planalto, longe das grandes cidades, ou seja, da pressão popular, é uma postura importante.
Brasília vive no mundo da fantasia, onde os altos escalões do poder podem usufruir de uma segurança e uma paz, aliado a um padrão de vida elevado, que não reflete a vida dos seus representados.
Apenas fazer essa distinção necessária.
Grande abraço,
Almir Albuquerque
Panorâmica Social
O sistema de saúde e educação funcionam muito bem no interior,na minha cidade só não se formam quem não quer,e o SUS funciona muito bem.
ResponderExcluir