O Globo
A vitória da frente comandada por Lula traz
embutida uma oportunidade única de o Brasil encarar seu histórico de apagamento
racista
Ninguém estranhou quando o presidente
eleito, Lula,
anunciou, dias antes de ser diplomado pelo Tribunal Superior Eleitoral, a
formação do núcleo central do seu terceiro mandato. O quinteto escolhido
recebeu acolhimento geral. Apenas aqui e ali apontou-se para o fato de Fernando
Haddad, Flávio Dino, José
Múcio Monteiro, Mauro
Vieira e Rui Costa serem
todos homens e quase todos brancos (o senador eleito Dino autodeclarou-se pardo
pela primeira vez no registro eleitoral deste ano). Logo esse retrato seria
corrigido. A necessária diversidade e inclusão verdadeira viriam à medida que a
frondosa árvore de cargos ministeriais adquirisse seu formato final. O pecado
original, porém, ninguém parece ter notado.
Passamos quatro anos denunciando o esfarelamento do ensino fundamental no país, a penúria imposta às universidades; aguentamos uma pandemia que deixou o Brasil de joelhos, e choramos a morte de 692 mil vítimas da Covid-19. O imperativo nacional de “melhorar a educação e a saúde” tinha virado mantra, quase que uma só palavra. Condição primeira para sair do atoleiro. O meio ambiente corria em paralelo como ponta de lança para apresentar o Brasil ao século XXI. Justamente nessas três áreas essenciais e prioritárias para a construção de um Brasil mais bem equipado para o futuro, o governo eleito dispõe de excelso naipe de ministeriáveis desde o início da transição. Pois nenhuma dessas três esferas — Educação, Saúde, Meio Ambiente — ainda integrou a comissão de frente do novo governo.
As pastas que receberam prioridade de
decisão e urgência foram as convencionais: Fazenda, Justiça e Segurança
Pública, Defesa, Relações Exteriores e Casa Civil. Em parte por default, pois
mundo afora são os ministérios considerados de maior peso, poder ou prestígio.
Mas também para aquietar os muitos desassossegados civis, militares, políticos
ou papeleiros inconformados com a derrota nas urnas. Já era esperado que, com o
país rachado ao meio e alimentado a ódio por quatro anos de bolsonarismo, a
apertada vitória de Lula não haveria de significar uma nova Era de Aquário. Nem
poderia. Mas ela precisa significar uma arrancada muito além da extirpação de
Jair Bolsonaro da vida pública nacional. A vitória da frente republicana
comandada por Lula traz embutida uma oportunidade única de o Brasil finalmente
encarar seu histórico de apagamento racista e desigualdades sociais. Para
tentar alterar esse curso passado, só mesmo com audácia transversal e gana de
visionário. Começando pela Educação.
Tudo ainda é muito recente, sabemos.
Transcorreu só pouco mais de um mês desde a grande virada democrática nacional.
E o vencedor nem tomou posse no Palácio do Planalto ainda. Mas é nesse
lusco-fusco entre o ontem e o amanhã que determinados terrenos cedidos se
tornam irrecuperáveis mais adiante. Com a política convulsionada pela urgência
na aprovação da PEC da Transição, e diante do apetite dos legisladores em
manter a qualquer custo o que restar do seu orçamento secreto, a República
Federativa do Brasil anda aos solavancos. E os novos tempos parecem já nascer
esmaecidos — de fato, como pensar em “novos tempos” se, por ora, a figura
pantanosa do presidente da Câmara, Arthur Lira,
está empenhada em demonstrar que nada mudou? Ele quase consegue, se
considerarmos que uma das preocupações do momento, em Brasília, é ampliar ainda
mais a já generosa imunidade que gozam os parlamentares.
Dias atrás, a cientista política americana
Claudine Gay foi a primeira mulher negra nomeada para o cargo de reitora da
Universidade Harvard. Recebida com ovação na centenária instituição, ela falou
do fim da ideia da academia como uma torre de marfim:
—Não existimos fora da sociedade, mas como
parte dela. Isso quer dizer que Harvard tem o dever de participar do mundo,
engajar-se com ele e estar a seu serviço.
Se adaptado, vale para os donos do poder no
Brasil. E para quem não é dono de nada, mas votou por um Brasil com futuro,
cabe exigir o máximo possível dos eleitos. É nossa obrigação permanente.
Fato.
ResponderExcluir