domingo, 11 de dezembro de 2022

Dorrit Harazim - Raspando o tacho

O Globo

Bolsonaro se dedica, entre choros e queixas, a cometer desmandos onde ainda é possível

Final de ano no nosso planetinha é o atropelo de sempre — uma insana correria atrás do tempo perdido. É como se a virada do calendário demandasse um acerto com todas as contas deixadas em aberto. Atarefados em zerar assuntos pendentes (imaginários ou reais), corremos o dobro para não chegar a lugar algum. Com governantes não é diferente. Tome-se o exemplo do ainda presidente Jair Bolsonaro. Com a ampulheta de seu tempo regulamentar no poder já quase esvaziada, ele se dedica, entre choros e queixas, a cometer desmandos onde ainda é possível — a possível extinção da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a nomeação do capitão da PM baiana André Porciuncula para a Secretaria Especial da Cultura brasileira, com mandato de 14 dias úteis, e a condenação à mendicância terminal do Ministério da Educação são exemplos desta semana.

É a raspa do fundo do tacho de um desgoverno funesto — mas que tem seguidores à altura de seu desvario. Não são lobos solitários. Estão e permanecerão em concertação, numa vigília ostensiva que não dá conta de suas ramificações. Até agora apenas um empresário, Milton Baldin, teve prisão decretada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). No momento da prisão, Baldin estava no acampamento bolsonarista montado em frente ao Q.G. do Exército, em Brasília, participando de atos antidemocráticos e abertamente golpistas. Semanas antes, já usara as redes sociais para convocar abertamente a turma armada dos CACs, como são chamados os “colecionadores, atiradores desportivos e caçadores”:

—[Vocês que] têm armas legais, hoje nós somos, inclusive eu, 900 mil atiradores, venham aqui mostrar presença.

No mesmo dia, a mais de 9.500 quilômetros de Brasília, uma operação policial em 11 dos 16 estados da Alemanha resultou na prisão de 25 suspeitos de planejar um golpe de Estado armado contra as instituições. À primeira vista, a notícia soou como algo ainda mais estapafúrdio que o autogolpe chinfrim tentado nesta semana pelo então presidente — agora presidiário — Pedro Castillo no Peru. À segunda vista, também. Um dos chefes dos “Reichsbürgern” (Cidadãos do Império Alemão), grupo extremista desmantelado pela polícia, tem 71 anos de idade e outros 700 anos no nome tão aristocrata quanto obsoleto: Heinrich XIII, Príncipe de Reuss. Seu parceiro no topo da pirâmide da conspiração, Rüdiger von Pescatore, também já é quase septuagenário.

Mas, entre 1993 e 1996, Rüdiger comandara o batalhão de paraquedistas #251, que, segundo a Deutsche Welle, viria a compor o KSK, tropa de elite das Forças Armadas da Alemanha. Dentre os 150 endereços vasculhados pela polícia na operação, um deles foi justamente o quartel do Comando das Forças Especiais no sudoeste do país. Em mais de 50 propriedades foram encontradas armas.

Cidadãos civis com treinamento militar ou acesso a armas envolvidos em organizações extremistas como a Reichsbürger, que nega a legitimidade do Estado alemão moderno, devem mesmo ser levados cada vez mais a sério — tanto nos Estados Unidos e na Europa quanto no Brasil. Segundo o Serviço de Inteligência Interna (BKI) da Alemanha, o grupo desmantelado contava com perto de 21 mil simpatizantes. Entre os detidos nesta semana está uma juíza federal e ex-parlamentar do partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD). Uma forte convergência do grupo alemão com operadores na Rússia, além de sua afinidade ideológica com as teorias conspiratórias da QAnon, sugerem que o extremismo de direita em países democráticos do Ocidente encontra terreno fértil.

Vale registrar mais uma informação divulgada pela Deutsche Welle: o cidadão Rüdiger, expulso da carreira militar por ter traficado armas dos estoques do Exército da antiga Alemanha Oriental, tem empresas registradas em seu nome em Santa Catarina e passava parte do seu tempo no Brasil. Também aqui temos um “príncipe” da Casa de Orléans chegado a uma conspiração. Além de um capitão que em breve estará mais ocioso do que nunca.

À primeira vista, nada a ver. À segunda também não, nem à terceira. Nazistas, porém, aqui não faltam. Pensando bem, melhor virar logo o calendário.

 

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