Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
‘Eles não são loucos’ recupera a transição
de 2002. Da formação da equipe econômica de Lula nos gabinetes de Malan e Fraga
às viagens internacionais antes da posse, nada poderia ser mais diferente
Na tarde do dia 16 de julho de 2002,
Stanley Fischer, à época no Citigroup, recebeu o então deputado José Dirceu.
Corria a quarta campanha presidencial petista, que acabaria por levar Luiz
Inácio Lula da Silva, pela primeira vez, ao Palácio do Planalto.
Dirceu voara aos Estados Unidos na condição
de embaixador da “Carta ao Povo Brasileiro” por sugestão de Luiz Gushiken, que
vira na viagem uma maneira de levar Dirceu a reconhecer a importância da carta
idealizada por Antonio Palocci.
Gushiken, que se tornou secretário de
Comunicação do governo petista, mirou no que viu, acertou no que não viu.
Dirceu foi ao encontro com o empresário Josué Gomes, filho do então vice de
Lula, o senador José Alencar. As credenciais do anfitrião, ex-diretor-geral do
FMI e ex-professor, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, de dois
ex-presidentes de bancos centrais, Ben Bernanke (Fed) e Mario Draghi (BCE),
intimidavam.
Ao receber a carta, Fischer foi direto ao
ponto: “Vocês foram muito inteligentes ao colocar um empresário de candidato a
vice-presidente”. Virou-se para Josué Gomes e completou: “Você não estaria com
um candidato se temesse levar prejuízo nas suas empresas por causa de políticas
econômicas erradas”. E voltando a Dirceu, concluiu: “Isso [Alencar na vice] vale
mais do que este pedaço de papel”.
Três semanas antes, a jornalista Sonia
Racy, durante fórum do Partido Republicano numa estação de esqui no Colorado,
registrara o ceticismo do próprio Fischer e o descrédito de outro economista
estrelado, Allan Meltzer: “Um candidato como Lula, que se diz admirador de
Fidel Castro e Hugo Chávez, não tem a confiança dos mercados”.
A história está contada em “Eles não são loucos” (Portfolio-Penguin, 2022), livro de João Borges sobre a transição do governo Fernando Henrique Cardoso para o de Lula. O jornalista, que passou pela GloboNews e hoje é diretor de comunicação da Federação Brasileira dos Bancos, era assessor de imprensa do presidente do BC, Arminio Fraga, o que o torna testemunha de muitos dos fatos narrados.
Seus relatos iluminam, por contraste, a
transição para o terceiro governo Lula. Ante o muro de desconfiança
internacional que a campanha petista enfrentava num país pendurado no FMI, o
que se vê hoje é quase uma rendição externa a Lula, prioritariamente pelo papel
a ser desempenhado na agenda climática.
Antes mesmo que o presidente eleito se
deslocasse para sua visita aos Estados Unidos antes da posse, o presidente Joe
Biden enviou dois assessores sêniores para encontrá-lo, o conselheiro de
segurança nacional, Jake Sullivan, e o diretor para assuntos do hemisfério
ocidental, Juan Gonzalez.
Não poderia haver maior contraste com a
viagem de 2002. Para reconstituí-la, o autor fez quatro entrevistas com Dirceu,
a primeira delas logo depois de sua saída da prisão, com a tornozeleira
eletrônica ligada à tomada. Contou ainda com a memória do tradutor dos
encontros, Marcos Troyjo, hoje presidente do banco dos BRICs, e do embaixador
do Brasil em Washington, Rubens Barbosa. E, principalmente, teve acesso à
agenda da viagem guardada pelo seu principal organizador, o empresário Mário
Garnero.
De permanente só o descuido em relação aos
patrocinadores das incursões. Vinte anos antes de Lula embarcar para a COP27 no
avião de José Seripieri Filho, o dono da Qsaúde preso numa operação contra
caixa 2 na campanha de José Serra, Donna Hrinak, então embaixadora dos EUA no
Brasil, registraria seu espanto ao ver Dirceu, às vésperas da viagem, pousando
no heliporto de Garnero para encontrá-la.
A desconfiança externa em relação ao Brasil
era tamanha que Roberto Setubal, à época presidente do Itaú, abandonou o
discurso escrito que preparara para o encontro da Câmara de Comércio
Brasil-Estados Unidos, às vésperas do segundo turno de 2002, e disse: “Não
tenho dúvida de que o Lula será o próximo presidente do Brasil. Esta não é uma
eleição populista. Ele está sendo eleito porque está fazendo uma boa campanha.
Ele é honesto e fala ao coração do povo [...] Isso não é uma revolução, é uma
transição democrática. Eu diria que, neste momento, a comunidade empresarial
brasileira está preparada para apoiar o Lula”. Quinze anos depois, Setubal
resumiria a reação da plateia ao autor: “Foi um silêncio de ouvir moscas
voando”.
Os temores da comunidade financeira
internacional, paradoxalmente, facilitaram o acordo fechado com o FMI naquele
ano como atesta o diálogo entre Murilo Portugal, que era o representante do
Brasil no Fundo, e a número 2 da instituição, Anne Krueger.
“O senhor sabe que não fazemos acordo com
países em ano de eleição”, foi a resposta.
“Então nesse caso vamos fazer uma coisa de
que não gostamos. Mas vamos fazer.”
“O quê?
“Se o Lula ganhar, logo depois da eleição,
nós vamos sacar do FMI tudo o que temos direito. São cerca de 16 bilhões de
dólares, e vamos colocar esse dinheiro no cofre do Lula. Em janeiro, vocês
conversam com ele. E a senhora sabe que ele não fala a língua de vocês.”
Seis meses depois, o número 1 do Brasil, já
eleito, dobrara o número 1 do FMI. Em seu primeiro encontro com Lula, Horst
Köhler já concluía: “Fiquei com a impressão de que ele é um líder do século
XXI”. Um mês depois, já se abraçavam, como conta Borges no capítulo “Horst, o
amigo alemão de Lula”. Ao se encontrarem na embaixada do Brasil em Paris, Lula
lhe narrou sua história de vida e a saga de dona Lindu. “A certa altura, tocado
pela fala de Lula, Köhler aproximou-se e perguntou: ‘Presidente, posso dar um
abraço no senhor?’. Lula o acolheu num abraço demorado e, segundo [Murilo]
Portugal, ambos choraram.”
Lula não dobrou o FMI apenas com a saga
familiar, mas com uma meta de superávit ainda superior à esperada e com uma
equipe econômica que foi praticamente formada nos gabinetes do Ministério da
Fazenda e do Banco Central. O relato de Borges dos encontros de Palocci com
Pedro Malan e Arminio Fraga sugere que ambos atuaram quase como “headhunters”
do governo petista na indicação de quadros como Bernard Appy, Joaquim Levy,
Marcos Lisboa e Otaviano Canuto. Este último foi arrancado de Malan depois que
Palocci se queixou de pressão da economista Maria da Conceição Tavares para que
a equipe tivesse um nome da Unicamp.
Se a afinidade de Palocci com Malan foi
crescente, a relação do ex-ministro da Fazenda com Lula foi permeada pela
desconfiança do petista de que ele era o preferido de FHC para sua sucessão. A
vigilância era mútua. Malan conta a Borges detalhes de sua percepção sobre a
mutação do Lula que se reapresentou ao país em 2002, do discurso ao corte de
cabelo. Vinte anos depois, Malan tanto assinou carta em apoio à eleição de Lula
quanto artigo, depois da eleição, alertando-o contra a frouxidão fiscal. Ao
reagir ao artigo, Lula abandonou a animosidade daquela campanha: “Fiquei feliz
ao saber de uma carta de pessoas importantes me alertando sobre problemas
econômicos e dando sugestões”.
João Borges deixa clara sua percepção de
que o rumo do governo e da equipe econômica seria outro se Palocci não tivesse
assumido o programa de governo e a liderança do time econômico com a morte do
ex-prefeito de Santo André Celso Daniel. Reproduz as controvérsias sobre a
percepção de Lula à “Carta ao Povo Brasileiro”, mas fecha com aqueles que
apostam em adesão contrariada. Não é o que ruma para acontecer agora, quando
Lula reforça a perspectiva de indicação de Fernando Haddad, sinalizando que a
política econômica será a dele, que detém o mandato.
João Borges dá conta de uma afinidade
latente de Lula com Geraldo Alckmin que só afloraria 20 anos depois. Traz o
relato do encontro de Lula com os sete governadores eleitos do PSDB em Araxá
(MG) um mês depois do segundo turno de 2002. Sentado ao lado de Alckmin, Lula
lhe pergunta sobre seus secretários. O governador diz que está esperando que
ele forme o ministério para saber o que vai lhe sobrar, mas diz que já tem um
nome para a Agricultura, Roberto Rodrigues. “Esse não”, reagiu Lula, que
acabaria por tomar a dianteira no convite.
A afinidade já havia sido registrada no
quarto volume dos “Diários da Presidência” (Cia das Letras, 2019), de Fernando
Henrique Cardoso. Ao ser recebido por Lula para um churrasco na Granja do
Torto, o ex-presidente ouviu do sucessor que José Serra, derrotado pelo
petista, não galvanizaria o partido, Aécio Neves seria “fogo de palha” e que o
melhor nome seria Geraldo Alckmin. No relato de FHC, Lula profetizou: “Acha que
se eu não entrar na briga não tem jeito: o PSDB pode desaparecer como partido
de influência nacional”.
Pelo acesso que desfrutava junto à equipe
econômica e pelas mais de 100 entrevistas que fez, Borges recupera minúcias da
passagem de bastão entre as equipes econômicas de maneira mais detalhada do que
aquela entre os dois presidentes, já tratada pelo quarto volume dos “Diários”.
Lá estão relatados cinco encontros entre os dois presidentes na transição, um
deles com a presença da primeira-dama, Marisa Letícia, que conheceu o Alvorada
num jantar entre os dois casais.
Esses encontros eram intercalados por
declarações polêmicas de ambos. Estocavam-se num dia, brindavam no outro. Lula
discutia a indicação de embaixadores com seu antecessor, contava-lhe os
perrengues da formação do ministério e confidenciava as apreensões da vida
presidencial.
Muitos embates se seguiriam entre os dois presidentes depois do fim do governo. Mas aquela transição, de tão emblemática, seria premiada pela Universidade de Notre Dame. Ao se despedir, à porta do elevador do Palácio do Planalto, numa conversa presenciada pelos dois escudeiros, Ana Tavares e Ricardo Kotscho, e confirmada por Fernando Henrique a Borges, Lula colocou a mão no rosto do seu antecessor, abraçou-o e lhe disse: “Fernando, você deixa aqui um amigo para sempre”. O livro traz fotos inéditas da despedida, cuja impossibilidade de reprise em 1º de janeiro é uma das poucas certezas desta transição.
Verdadeira história da política brasileira, e muito bem contada.
ResponderExcluirParabéns!
Belo relato.
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