quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Nicolau da Rocha Cavalcanti - Aos que se irritam com os jornais

O Estado de S. Paulo

Se alguém deseja estar num genuíno estado de exasperação com a vida, pare de ler jornal e dedique-se às redes sociais e ao Whatsapp

Com alguma frequência, ouve-se que já não seria necessário ler um jornal todos os dias porque a informação chega agora “por outros meios”. Também se escuta a seguinte reclamação: estou pensando em parar de ler os jornais porque, com suas críticas excessivas e outras tantas tolerâncias, perderam o equilíbrio. Chegam a irritar. Qual é o sentido de ler algo se depois fico irritado?

Sim, ler um bom jornal sempre envolve algum incômodo. Entra-se em contato com gente que pensa diferente, que nos contraria, que diz, de forma muito convicta, algo que nos parece uma insensatez. O jornal é uma forma de contato habitual, diário, com a pluralidade da sociedade. (Desconfie de jornais com os quais se concorda do início ao fim. Eles não retratam o mundo em sua complexidade. Abdicaram do jornalismo para se tornarem pirulitos agradáveis ao paladar do leitor.)

No entanto, eis a ironia da vida, todas as pessoas que conheço que pararam de ler jornais para não ficarem irritadas, depois que abandonaram a leitura diária da imprensa, ficaram ainda mais irritadas com o mundo, com os outros e com os próprios jornais. Se alguém deseja estar num genuíno estado de exasperação com a vida e com o que acontece ao seu redor no âmbito político, social e cultural, pare de ler jornal – e dedique-se ao Whatsapp e às redes sociais.

A leitura diária de jornais funciona como um exercício privilegiado de pluralidade. Quem a abandonou está menos preparado para lidar com as diferenças existentes na sociedade. O mundo torna-se uma fonte mais intensa de perplexidade e irritação. Sem a leitura de jornais, ficamos menos capazes da compreensão e mais propensos ao atrito.

Conhecer – ler, estudar e dialogar – a partir de outras perspectivas produz desassossego. Tira da zona de conforto. Mas desassossego sério, que impregna o corpo e a alma, é gerado pela ignorância: a incompreensão do que está acontecendo ao seu redor, a sensação de que se deveria viver num tempo diferente. Há um fenômeno cada vez mais frequente. Tem gente que, de tão incomodada com o que vê ao seu redor, quer voltar no tempo, vivendo, por exemplo, no século 19. E alguns ainda tratam essa utopia como “conservadorismo”.

Aqui, entramos no outro ponto: os jornais são necessários para conhecer a realidade contemporânea? Sim, definitivamente sim. Em relação a tudo aquilo com que não temos contato imediato – ou seja, a imensa maioria dos assuntos –, o jornalismo é a fonte mais confiável sobre o tempo presente.

Na definição clássica, o direito é a arte do justo. Pode-se dizer que o jornalismo é a arte do presente: a arte de narrar o tempo presente. Ele tem método, mas não é a rigor uma ciência. O jornalismo é um modo de apreender, a partir de critérios objetivos e verificáveis, a realidade. Não é o mundo da pura subjetividade. Há um grande respeito pelo factual. Por isso, além de estar sob contínua revisão, o jornalismo é sempre feito coletivamente. Tem necessariamente uma dimensão institucional. Nunca é mero afazer solitário, encerrado numa única individualidade, numa única subjetividade.

Uma observação: jornalismo não é o título da matéria, o tuíte sobre a reportagem ou o resumo dos jornais que nos chega por meio de newsletters. Se estamos lendo apenas isso, já abandonamos o jornalismo. De um jeito diferente, estamos vendo apenas a primeira página do jornal exposta na banca de jornal. Jornalismo é o conteúdo inteiro das reportagens, com o contexto dos fatos, suas relações, suas consequências e a continuação no dia seguinte.

Os jornais são importantes no acesso à realidade porque não representam apenas uma foto dela. A leitura diária dos jornais oferece um filme do tempo presente. E é essa continuidade, um dia após o outro, que produz a mágica: somos enxertados na compreensão do fluxo do tempo presente, com seus movimentos e também com seus imobilismos. A leitura diária dos jornais proporciona uma experiência radicalmente diferente da leitura esporádica.

A complexidade da vida e da ação humana, com suas múltiplas camadas, inviabiliza a pretensão da autossuficiência na compreensão da realidade, na organização e síntese dessas informações. Queremos conhecer o Congresso sem repórteres no plenário, nos corredores e nos bastidores? Queremos julgar o Judiciário lendo apenas lacrações? Queremos entender as reivindicações políticas de grupos minoritários ouvindo apenas o nosso entorno social?

Não há conhecimento qualificado do mundo contemporâneo sem jornalismo. A frase “não preciso dos jornais, já estou informado por outros meios” significa, no melhor dos casos, que se abdicou do acesso direto ao jornalismo e, agora, se informa pela leitura que outras pessoas fazem do jornal que se deixou de ler.

Podemos e devemos exigir jornais melhores. O jornalismo é sempre imperfeito. Mas abandonar sua leitura não produz autonomia. É uma opção por alhear-se do tempo presente. É começar a desligar os aparelhos. Pode-se admirar outras épocas, o contemporâneo tem também suas deficiências, mas a vida sempre transcorre no presente.

 

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