sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Luiz Werneck Vianna*: A questão social e a democracia política: mais uma oportunidade

Estamos prestes a recuperar o fio da meada que num momento desastrado deixamos escapar das nossas mãos a partir das tratativas que ora se realizam por iniciativa de importantes lideranças políticas no sentido de forjar uma aliança com vistas à próxima sucessão presidencial em torno das candidaturas de Lula e de Alkmin. Foi da convergência das forças sociais e políticas que ambos representam que se pavimentou o terreno para a derrota do regime militar de 1964 e a democratização cujo melhor fruto foi a promulgação da Carta de 88, a mais efetiva defesa com que contamos a fim de conter a sanha destrutiva do governo Bolsonaro que objetiva instaurar mais um ciclo de autoritarismo político no país.

Naquelas infortunadas circunstâncias, por ensaio e erro, descobriu-se o caminho que poderia levar a interrupção do regime autoritário de então pela ação combinada dos vetores sociais animados pelos temas da democracia política, com ênfase nos processos eleitorais, tal como na eleição de 1974 com a vitória da candidatura de Orestes Quércia ao Senado, com aqueles originários da questão social vigorosamente expressos pelo sindicalismo operário, especialmente do ABC em São Paulo e que se espraiou em todo o país.

A fórmula vitoriosa tinha como consigna a democracia política aliada à questão social e se fez presente ao longo do tempo em que se elaborou o texto constitucional de 88. O fio da meada começa a escapar do nosso controle quando o PT se recusa a subscrever a Carta, e, mais gravemente ainda, na sucessão presidencial de 1989, quando em um processo autofágico as forças que conduziram a democratização competem entre si e favorecem a vitória de um cavaleiro da fortuna que viria a sofrer um impeachment logo depois.

José de Souza Martins*: A política do atraso

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Bolsonaro mostrou-se aquém do poder e com grandes dificuldades para compreender o que a função presidencial dele exige

No cenário das eleições deste ano, há vários componentes que confirmam mudanças na tradição brasileira de confrontos eleitorais. Resultam das contradições acumuladas nas estruturas de referência das mentalidades, das ações, das atitudes dos políticos e do povo. É o lado invisível e só acessível à ciência do que é próprio das realidades sociais, que são sempre realidades em transe e em transição. A sociedade se move todo o tempo, não necessariamente na direção dos que querem movê-la nem dos que acham que a movem e manipulam.

A circunstância da política no Brasil foi desconstruída pela ação conjunta de Bolsonaro, dos bolsonaristas e do vírus da covid-19. O verdadeiro político, como o verdadeiro empresário, é aquele capaz de criar e de inovar em face do imprevisto. Não é isso que estamos vendo.

O componente mais significativo dessas mudanças é o de que, no governo do que é aqui definido como direita, as forças sociais espontâneas peneiram os atos do governante e de seus ministros e coadjuvantes. Reduzem cada vez mais a malha do peneiramento e nela retêm uma categoria política residual, a do que o governante propriamente é.

O principal aspecto da nova realidade, de que tem sido ele protagonista, é que os recursos do escamoteamento de suas limitações serão agora menos eficazes. Seu teatro do autoritarismo militarizante é frágil, seus coadjuvantes são amadores e demasiadamente cúmplices, o que aumenta o poder revelador das contradições políticas de que ele é produto.

Fernando Abrucio*: O impacto da geringonça bolsonarista

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Visão predatória e de curto prazo do país guia aliança do Centrão com o bolsonarismo

Todos os países democráticos precisam montar coalizões para produzir governabilidade. Nestes tempos de grande complexidade social, essas alianças se tornaram ainda mais amplas e, por vezes, inusitadas. Assim é o caso da Alemanha atual, com a parceria entre social-democratas, verdes e liberais - a chamada “coalizão semáforo” por causa das cores dos três partidos. Também foi o caso recente de Portugal, com sua Geringonça, que gerou uma improvável junção na esquerda durante cerca de seis anos.

O presidente Bolsonaro, inicialmente avesso a qualquer pactuação com os partidos políticos, também montou sua geringonça, presente no casamento entre bolsonarismo e o Centrão. O efeito desse pacto, aparentemente estranho, já é visível - e negativo - para o país, mas poderá ter impactos ainda mais profundos se não entendermos qual bicho surgiu dessa junção.

O casamento entre o bolsonarismo e o Centrão nasceu de uma circunstância de sobrevivência e de uma oportunidade de fortalecimento inédito. A circunstância de sobrevivência foram os vários fatos que desgastaram Bolsonaro e sua família: a prisão de Fabrício Queiroz, o amigo que sabe tudo do passado; as crises com o STF e a possibilidade de abertura de um processo de impeachment após cada arroubo autoritário e desmedido do chefe maior e/ou do séquito.

Cristian Klein: O tempo que corre contra a terceira via

Valor Econômico

Campanha presidencial se faz com antecedência

A quase oito meses das eleições, pesquisas de opinião podem ser um preditor impreciso sobre o que vai acontecer nas urnas em outubro. Sobretudo em disputas para as quais o eleitor ainda não está muito atento, tem pouca informação e que são mais passíveis de uma reviravolta. É o caso das corridas municipais e estaduais. E menos da presidencial.

À essa altura, há quatro anos, o então candidato do PSL Jair Bolsonaro, embora fosse considerado um azarão, já aparecia consolidado em segundo lugar, e variava entre 15% a 20% das intenções de voto, em quaisquer dos nove cenários testados pelo Datafolha entre os dias 29 e 30 de janeiro de 2018.

Se havia uma surpresa - embora nem todos quisessem acreditar ou levar a sério - ela já se cristalizava. Não pelo estalar de dedos, mas pelo trabalho de pré-campanha que vinha desde 2015, com uso intenso das redes sociais, participação em programas populares de rádio e televisão e corpo a corpo em aeroportos e cidades país afora.

Na mesma pesquisa, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva liderava nos cinco cenários em que era apresentado como candidato, oscilando de 34% a 37%. Sem o petista, que acabara de ser condenado a prisão, em segunda instância, cinco dias antes, em 24 de janeiro, Bolsonaro assumia a liderança nas quatro demais simulações.

Reinaldo Azevedo: Opositores de Lula esperam o bárbaro

Folha de S. Paulo

As direitas que se opõem ao petista desenharam a sua estratégia à espera de um extremista que não vai disputar a eleição

A única polarização na disputa presidencial se dá entre Lula (PT) e todos os outros, excetuando-se Ciro Gomes (PDT), já digo por quê. E é do tipo aritmética, não ideológica: o petista ou tem mais votos do que a soma dos adversários ou empata com eles.

Tanto os candidatos de direita como os de extrema-direita —Bolsonaro e Sergio Moro— insistem, no entanto, em caracterizar o moderadíssimo ex-presidente como um radical de esquerda.

E aí as respectivas campanhas dessa turma semelham parafuso espanado e começam a girar em falso, limitando-se a falar com os fiéis de sempre. Vão mudar a tempo para tentar exaltar as próprias virtudes em vez de lutar contra um adversário comum, construído por seus delírios? Não sei. Faço análises, não previsões.

Bruno Boghossian: Bolsonaro trava a terceira via

Folha de S. Paulo

Solidez do voto bolsonarista será obstáculo para candidaturas alternativas

Uma característica marcante do eleitorado de Jair Bolsonaro dá pistas dos rumos que a corrida presidencial pode tomar nos próximos meses. Há quase dois anos, o presidente segura um núcleo maciço de apoiadores, que citam seu nome de forma espontânea, antes mesmo de conhecer a lista de possíveis candidatos.

A última pesquisa divulgada pelo Ipespe repete um padrão registrado desde 2020. Logo no início da entrevista, 23% dos eleitores citam Bolsonaro como nome preferido para o primeiro turno. Depois, ao saber quem são os pré-candidatos, 24% declaram voto no presidente.

Esse cenário indica uma vantagem e uma desvantagem para Bolsonaro. O primeiro número mostra que o presidente conseguiu cristalizar um eleitorado na casa dos 20% –o que lhe garante boas chances de chegar ao segundo turno. O dado seguinte, no entanto, sugere que ele empolga pouca gente além desse eixo fiel.

Vinicius Torres Freire: Covid volta a matar mais velhos

Folha de S. Paulo

Depois da nova variante, pessoas mais frágeis voltam a ser vítimas mais frequentes da epidemia

ômicron seria uma onda de Covid de sintomas mais "brandos", se dizia. Talvez ainda se comprove que seja. Mas sabia-se que a proliferação imensa da nova variante mataria muito simplesmente porque infectaria muitos. Mataria em particular os mais frágeis, os mais velhos. Pois mata.

Em quatro semanas de janeiro, 38,4% dos mortos por Covid no estado de São Paulo tinham 89 anos ou mais (770 mortos de um total de 2.004). Em período equivalente de dezembro, eram 23,3%. Em novembro, 21%.

Houve também mais mortes "insignificantes", como dizem os bolsonaristas. Em dezembro, nenhuma criança com menos de 5 anos havia morrido por causa da doença. Em janeiro, foram 9. Dessas, 6 eram bebês com menos de 1 ano.

Luiz Carlos Azedo: A atuação do atual ministro da Saúde já é uma tragédia sanitária

Correio Braziliense

O número de mortes chegou a 625.085 pessoas. Nas últimas 24 horas, foram 672 óbitos. O aumento de casos nessa escala poderia ter sido evitado, não fossem a sabotagem oficial e o negacionismo

Enquanto o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, brinca de faz de conta que vacina as crianças e cria, a cada semana, novos embaraços e manobras diversionistas que confundem os pais das crianças, a escalada de morte por covid-19 no Brasil já contabiliza 672 óbitos nas últimas 24 horas, o que é um absurdo, em se sabendo que a variante ômicron é proporcionalmente menos letal. O aumento de casos ocorre numa escala que poderia ter sido evitada, não fossem a sabotagem oficial e o negacionismo dos que não se vacinaram, seguindo a orientação do presidente Jair Bolsonaro.

De quarta-feira para ontem, segundo dados reunidos pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), foram mais 228.954 novos casos. O número total de mortes chegou a 625.085 pessoas, de um total de 24,7 milhões de infectados. É mais do que evidente que a situação está fora do controle: na quarta-feira, foram registrados 570 mortes e 224.567 novos casos.

A cada dia surge uma nova polêmica criada pelo Ministério da Saúde, apesar das duras críticas de sanitaristas, infectologistas, virologistas, biólogos e outros especialistas. Para agradar a Bolsonaro, Queiroga e seus assessores trabalham para desacreditar as vacinas e confundir a sociedade quanto à segurança das doses pediátricas. Com ampla tradição de imunização em massa, graças a campanhas de divulgação de sucessivos governos, pela primeira vez, nos últimos 50 anos, isso não ocorre por iniciativa do Ministério da Saúde, que opera uma estratégia de desconstrução da política de saúde pública.

Hélio Schwartsman: Otan, Rússia e os jogos de guerra

Folha de S. Paulo

Na crise da Ucrânia, ponto de equilíbrio mais evidente é uma solução diplomática

A guerra é um assunto sério demais para ficar nas mãos de generais. Foi por isso que cientistas decidiram entrar no negócio. No Ocidente, fizeram-no principalmente por meio da Rand Corporation, o "think tank" criado em 1945 que se tornou um parque de diversões para matemáticos elaborarem cenários de guerra.

Não necessariamente o mundo se tornou mais pacífico. Alguns desses cientistas podiam ser mais "falcões" que os militares.

A empreitada, porém, foi útil. Como os matemáticos soviéticos estavam fazendo a mesma coisa que os americanos, desenvolveu-se uma linguagem comum formalizável que permitiu que a Guerra Fria fosse travada com os dois lados atuando sob as mesmas regras de base racional.

Antonio Corrêa de Lacerda*: Teto de gastos ou de investimentos?

O Estado de S. Paulo

A retomada dos investimentos é fundamental para fomentar o desenvolvimento

A Emenda Constitucional (EC) 95, aprovada no Congresso Nacional no fim de 2016, fixou uma regra impondo limite de gastos públicos para os próximos 20 anos. A medida, embora atenda ao “senso comum”, parte de uma premissa equivocada de que o Orçamento público, como analogia, deveria se equiparar ao orçamento doméstico: “|Só pode gastar o que arrecada”. No entanto, essa assertiva não vale para a macroeconomia, já que o Estado tem funções, assim como prerrogativas, que lhe são próprias.

O problema é que, no Brasil, diante da dificuldade em restringir os gastos correntes, como despesas decorrentes de emendas parlamentares, o Executivo acaba instado a reduzir os investimentos. Não por acaso o nível de investimento público, que já era baixo historicamente, caiu da média de 4% do Produto Interno Bruto (PIB) no período 20132016 para pouco mais de a metade, 2,2%, em 2017-2021.

A queda da participação do investimento público coincide com uma das nossas maiores crises, cuja superação recomendaria justamente o inverso, ou seja, uma atuação anticíclica do Estado para gerar o “efeito multiplicador” do investimento público e provocar o “efeito demonstração” para o setor privado. Aí já temos a grande contradição da questão: a limitação do gasto público engessa o papel do Estado quando ele pode ser mais do que necessário.

Fabio Giambiagi: ‘Avant première’ para 2023

O Estado de S. Paulo

O debate sobre que País queremos ter precisa ser profundo, baseado em dados e sem agressões

Este ano teremos eleições. Precisamos ter uma reflexão acerca de que País queremos ter. E esse debate precisa ser profundo, baseado em dados e sem agressões. Com esse espírito, ao longo das próximas 30 semanas, em encontros quinzenais, irei expor um conjunto de 15 propostas para discussão, com vistas a alimentar o bom debate.

Cabe aqui fazer dois esclarecimentos. O primeiro é que os pontos estão longe de esgotar o conjunto de temas sobre os quais o governo terá que se debruçar em 2023 e são listados apenas como aqueles que a mim me parecem os mais relevantes em matéria econômica. E o segundo é que se referem à economia, porque essa é a área que conheço, o que de modo algum significa que não considere outros temas importantes e sim apenas é o reconhecimento das minhas limitações.

Vera Magalhães: Dá para recuperar o Orçamento?

O Globo

A segurança com que Ciro Nogueira atira em Lula, cuspindo no prato em que comeu, e vende uma certeza que não tem na reeleição de Jair Bolsonaro vem de um fator que será chave na eleição deste ano e que qualquer presidente eleito em outubro terá imensa dificuldade em reverter: o Orçamento da União foi privatizado, está nas mãos do Centrão, e é por isso que seus caciques não estão nem aí para quem vai vencer a eleição.

O avanço muito rápido dessa apropriação dos recursos e das políticas públicas pelos aliados do governo no Congresso é o que faz com que partidos como PL e PP permaneçam no barco de Bolsonaro haja o que houver, diga ele o que disser em relação a qualquer tema, de vacinação infantil ao cumprimento de decisões judiciais.

A ideia é secar as tetas da União até as eleições, pois é esse dinheiro, via Auxílio Brasil, emendas do relator, fundo partidário e outros mecanismos orçamentários aprovados pelo Parlamento e mantidas por um presidente que faz bravata de machão, mas é refém e inseguro, que vai assegurar não só a reeleição dos mesmos caciques de hoje, mas o aumento de seu exército.

Marcello Averbug*: Repartir para crescer

O Globo

Observando a série de declarações dos economistas vinculados aos candidatos à Presidência, percebe-se, além da escassez de criatividade, a incidência de um erro elementar quando mencionam o problema da desigualdade social.

Todos eles afirmam que a economia precisa primeiro crescer para depois serem implementadas políticas atenuantes da concentração de renda. Ignoram, portanto, que o correto é exatamente o contrário. Isto é: o esmaecimento dos extremos contrastes sociais constitui poderoso promotor do desenvolvimento econômico.

Nos primórdios do ideário desenvolvimentista brasileiro, tanto durante governos democráticos quanto autoritários, era comum ouvir afirmações do gênero “antes o bolo tem que crescer para depois ser distribuído”. Mas hoje, após a frequência de insuficientes e flutuantes momentos de crescimento do PIB, tornou-se evidente que se esperarmos o alcance de elevadas e estáveis taxas de expansão econômica, a melhoria da equidade social jamais acontecerá. Na verdade, essa espera é equivocada e danosa à nação.

Enquanto políticas públicas de caráter redistributivo não forem executadas, a economia continuará na mesma pasmaceira. Isto porque tais políticas expandem o poder de compra de substancial parcela da população, num montante suficiente para impulsionar investimentos e criar empregos.

Flávia Oliveira: Por mulheres no centro

O Globo

Em desalinho com a mobilização intensa por protagonismo político, sobretudo na última meia década, as mulheres brasileiras estão praticamente apartadas da corrida presidencial de 2022. A oito meses do pleito, a senadora Simone Tebet (MDB) é a única pré-candidata anunciada. A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e a ex-ministra e ex-senadora Marina Silva (Rede) foram citadas como possíveis vices de Jair Bolsonaro (PL) e Ciro Gomes (PDT), respectivamente. Cenário mantido, será a menor participação feminina em eleições presidenciais neste século. No mesmo país que elegeu e reconduziu Dilma Rousseff (PT) ao Palácio do Planalto em 2010 e 2014.

Em 2002, Rita Camata (PMDB) e Dayse Oliveira (PSTU) foram vices nas chapas de José Serra (PSDB) e Zé Maria. Quatro anos depois, a então senadora Heloísa Helena disputou a Presidência pelo PSOL e Ana Maria Rangel pelo PRP, tendo Delma Gama como vice. Em 2010, a ex-presidente Dilma teve Marina Silva (PV) como adversária; Cláudia Durans (PSTU) foi vice de Zé Maria. Nas eleições 2014, Dilma, Marina (PSB) e Luciana Genro (PSOL) encabeçaram chapas; Célia Sacramento (PV), Sofia Manzano (PCB) e Cláudia Durans lançaram-se vice. No último pleito, Marina Silva, candidata pela terceira vez, já pela Rede, enfrentou Vera Lúcia (PSTU) numa campanha com recorde de mulheres como vices: as senadoras Ana Amélia (PP) e Kátia Abreu (PDT), a deputada Manuela D’Ávila (PCdoB), a líder indígena Sonia Guajajara (PSOL) e a professora Suelene Balduino (Patriota).

Impressiona que as mulheres estejam perdendo espaço justamente quando a escalada autoritária do presidente da República exige das instituições e da sociedade civil a defesa intransigente da democracia. O Brasil parece querer retornar para o modelo em que, de novo, no centro do palco estão os homens, brancos, heterossexuais, idoso ou de meia-idade. Mulheres, negros, indígenas, LGBTIs, jovens defenderam a diversidade, lutaram por presença em espaços de poder. Mas seguem preteridos, tanto nas chapas quanto nas propostas de governo. Poucos se lembram que, de cada cem eleitores brasileiros, 53 são do sexo feminino. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) informa que, no eleitorado nacional, 77,4 milhões são mulheres e 69,1 milhões, homens.

Pedro Doria: Um baseado na cara de Moro

O Globo

A cena é surpreendente. Na última segunda-feira, durante uma transmissão de quatro horas, o ex-ministro Sergio Moro falava sobre a possibilidade de um segundo turno entre o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ex-presidente Lula (PT) quando um dos dois entrevistadores começou a tossir. Quem conhece Monark, um dos âncoras do Flow, sabe exatamente o que ele estava fazendo. Mas, caso alguém tivesse dúvida, o editor na mesa de corte decidiu realçar. Por três segundos, cortou a câmera de Moro para a de Monark justamente na hora em que ele pegava o isqueiro sobre a mesa para reacender seu baseado, àquela altura já queimado para além da metade. Maconha, diferentemente de tabaco, apaga. Tem de reacender mesmo de tempos em tempos. O ex-ministro da Justiça, pessoalmente um homem conservador, seguiu falando sobre o que achava de Bolsonaro e Lula.

Os candidatos estão conversando direto com os eleitores em inúmeros programas de nicho, sejam podcasts, vídeo ou ambos, para audiências que às vezes se contam na casa dos poucos milhares, noutras para lá dos milhões. É, por muitos motivos, um tipo de campanha digital de melhor qualidade do que a de 2018, empesteada de mentiras e ancorada nos perfis falsos das redes sociais.

Nos dias seguintes à entrevista de Moro ao Flow, amplamente debatida nas redes sociais, o pré-candidato pedetista ao Planalto, Ciro Gomes, levou ao ar um react em seu canal do YouTube. Ciro vem chamando Moro para um debate faz já algumas semanas, principalmente pela arena da internet. O ex-juiz escorrega. Numa briga em que a arma é a retórica, ele teria mesmo dificuldades. Um react, na linguagem da internet, é a transmissão ao vivo da reação de alguém a outro vídeo. Abrem-se duas telas, toca um trecho de Moro no Flow, dá-se uma pausa, Ciro comenta e por aí vai.

O que pensa a mídia: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

São inaceitáveis os obstáculos contra vacinação infantil

O Globo

Era de esperar que, após os obstáculos iniciais, muitos deles criados pelo próprio presidente Jair Bolsonaro e pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, a vacinação infantil no país avançasse sem maiores sobressaltos. Mas não. Em algumas cidades, pais que levam os filhos aos postos de saúde são surpreendidos com exigências descabidas, como a obrigatoriedade de assinar um termo de consentimento, medida que contraria as normas do Ministério da Saúde e funciona como um desestímulo à vacinação.

Como mostrou reportagem do Jornal Nacional, pelo menos duas capitais — Salvador e Belém — estão cobrando o termo de consentimento para vacinar as crianças. Na capital baiana, os pais precisam preencher um longo formulário antes da imunização. A exigência se repete em cidades de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Mato Grosso.

No estado do Rio, como informou O GLOBO, o termo de responsabilidade estava sendo exigido pelas prefeituras de Itaguaí, Nilópolis, Japeri, Araruama e Mangaratiba. Em Itaguaí, autoridades de saúde chegam ao cúmulo de cobrar, além da autorização, cópia dos documentos dos responsáveis e da criança, absurdo que não tem amparo na legislação. Também funcionam como desestímulo alertas feitos nos postos sobre efeitos adversos das vacinas, que são raros. Algumas cidades recuaram após a repercussão negativa do caso.

Os argumentos para justificar a exigência são ridículos. Prefeituras alegam que é para evitar que posteriormente pais acusem o município de aplicar a vacina sem autorização — isso nunca existiu em outras campanhas. Afirmam ainda que seguem orientação do Ministério da Saúde, o que não é verdadeiro. A nota técnica do ministério recomenda que o termo seja assinado apenas na ausência dos pais ou responsáveis pelas crianças.

Poesia | João Cabral de Melo Neto: Descoberta da Literatura:

No dia a dia do engenho,

toda a semana, durante,

cochichavam-me em segredo:

saiu um novo romance.

E da feira do domingo

me traziam conspirantes

para que os lesse e explicasse

um romance de barbante.

Sentados na roda morta

de um carro de boi, sem jante,

ouviam o folheto guenzo ,

a seu leitor semelhante,

com as peripécias de espanto

preditas pelos feirantes.

Embora as coisas contadas

e todo o mirabolante,

em nada ou pouco variassem

nos crimes, no amor, nos lances,

e soassem como sabidas

de outros folhetos migrantes,

a tensão era tão densa,

subia tão alarmante,

que o leitor que lia aquilo

como puro alto-falante,

e, sem querer, imantara

todos ali, circunstantes,

receava que confundissem

o de perto com o distante,

o ali com o espaço mágico,

seu franzino com o gigante,

e que o acabassem tomando

pelo autor imaginante…