domingo, 10 de abril de 2022

Paulo Fábio Dantas Neto*: Sobre a arte de capitanear em política

Em hora de marola, Luiz Ignácio resolveu acelerar a marcha da sua arca, viajando com metade da lotação possível.  No instante em que a maré do seu adversário deixa de ser vazante, nosso Noé antecipa o confronto direto, sem que o lado direito da sua embarcação tenha ganhado peso adequado, seja em tripulantes políticos, com seus mapas, seja em passageiros-eleitores, com suas demandas. Nessas condições, o candidato a estivador, por mais perito que seja, não terá como equilibrar a arca exclusivamente com o peso do próprio corpo. O barco tende a adernar à esquerda. Ainda que não emborque (sua vantagem nas pesquisas e a alta rejeição de Bolsonaro afastam paranoias apocalípticas), terá deixado ao mar, sem acesso a porto seguro, possíveis aliados e eleitores carentes de moderação. A ampla parte do eleitorado não pintada para a guerra pressente, todo dia, o naufrágio de suas esperanças. Quem sobreviver lembrará do gosto salgado do abandono.

O lado esquerdo do barco, com lotação esgotada por muitos crentes e muitos áulicos, sempre poderá culpar moderados que não compareceram ao embarque no bote anunciado como se fosse arca. Alguns teriam faltado porque, hipócritas, jamais se dispuseram a viajar de verdade; outros porque, hesitantes, não souberam fazer a hora e esperaram acontecer. Oxalá o naufrágio da democracia não ocorra mesmo ou, ao menos, não seja fatal como pode ser e sobrem tempo, lugar e pessoas para tal discussão retrospectiva se travar.

Espraiam-se controvérsias sobre motivos dessa imprudência de Lula. Primeira pergunta é se a imprudência é estratégica ou se resulta de perda de rumo. Pode ser que o próprio Lula e/ou a maior parte do comando da sua pré-campanha estejam vendo as pautas-bomba que ele tem veiculado como um caminho, ainda que tortuoso, para alcançar um porto onde se poderá constituir depois um centro político distinto do Centrão - embora não possa exclui-lo, como informa a realidade – para reconstruir o País, como prega a consigna atual do PT.

Merval Pereira: A grandeza moral de Gil

O Globo

Além das qualidades evidentes de sua obra literária na música popular brasileira, e a valorização da cultura afro como integrante fundamental da cultura nacional, Gilberto Gil deu demonstrações na sexta-feira, dia de sua posse na Academia Brasileira de Letras, de generosidade e elegância em seu discurso, ao abordar dois temas delicados de sua relação pessoal com a história da ABL.  

Quando surgiu a possibilidade, que já havia sido acalentada muitos anos antes pelo então presidente da ABL, Marcos Vilaça - a quem Gil agradeceu em seu discurso -, de indicá-lo para se candidatar a uma das cinco vagas abertas durante os dois anos de fechamento devido à pandemia, seus apoiadores preocuparam-se de evitar o encontro que acabou acontecendo, por esses sortilégios do destino.

Gil, devido a composições por causa de datas e outras circunstâncias, concorreu à cadeira 20, vaga com a morte do jornalista Murilo Mello Filho, que teve como antecessor o General Aurélio de Lyra Tavares. Como a tradição manda que o acadêmico entrante relembre seus antecessores, o que fez com que Darcy Ribeiro dissesse que por isso somos imortais, Gil teria que falar do General que compôs a Junta Militar que governou o Brasil de 31 de agosto a 30 de outubro de 1969.

Luiz Carlos Azedo: Só o Gravatinha salva a terceira via

Correio Braziliense / Estado de Minas

A saída de Moro da disputa pela Presidência reforçou a polarização Lula x Bolsonaro e pôs os partidos de centro em situação desesperada, em busca de um candidato que os unifique

Sérgio Cabral, pai (vascaíno), João Saldanha (botafoguense), Maurício Azedo (flamenguista) e Nelson Rodrigues (“pó de arroz”) foram grandes cronistas esportivos da imprensa carioca, todos torcedores apaixonados, com legiões de leitores, capazes de levantar o moral das torcidas dos respectivos clubes depois de um tremendo chocolate — escalpelando os técnicos dos times, é claro. Formados na escola de jornalismo de Samuel Wainer, a Última Hora, passaram pelos principais jornais do Rio de Janeiro. PS: Maurício era meu tio.

Os três primeiros eram amigos do peito, desde muito jovens, e comunistas de carteirinha, mas quase chegavam às vias de fato na Redação e no bar da esquina quando o assunto era futebol. Nelson Rodrigues, notável dramaturgo (Vestido de Noiva, Toda Nudez Será Castigada), era um reacionário empedernido, apologista do regime militar, que viria a apoiar a campanha da anistia após saber que o filho, Nelsinho, militante de ultra-esquerda, fora cruelmente torturado na prisão.

Sobrenatural de Almeida, um dos personagens criados por Nelson Rodrigues, era um fantasma que aparecia quando as coisas não iam bem para o Fluminense. Era o culpado por tudo o que acontecia de ruim em campo, ou seja, uma entidade mítica, à qual o cronista recorria para explicar o que acontecera em campo, sem encher a bola do adversário, é claro.

Mas havia outro personagem, um fantasma do bem, que aparecia nos estádios antes das vitórias do Fluminense: o Gravatinha. A escolha do nome tinha tudo a ver com a torcida “pó de arroz”, majoritariamente formada por torcedores de classe média carioca, com fama de ser elitista.

Eliane Cantanhêde: Corrida de obstáculos

O Estado de S. Paulo

Discutir semipresidencialismo é chato, mas é melhor do que viver de crise em crise

Fernando Collor fora deputado federal por um único e modesto mandato e Dilma Rousseff nem sequer passara por Câmara e Senado, nunca tinha disputado uma eleição, fosse qual fosse. Deu no que deu. Os dois perderam condições de governabilidade e sofreram impeachment. Do outro lado, as referências de presidentes bem-sucedidos são as de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, que passaram pelo Congresso e pela Constituinte de 1988, um marco na história.

Agregue-se a eles Michel Temer, deputado federal a partir de 1987, presidente da Câmara três vezes e por anos do MDB e, quando assumiu a Presidência e veio a gravação de Joesley Batista, da J&F, ele balançou, mas não caiu. Tinha base política e assiste ao resgate de seu governo. Essas constatações são importantes diante de um processo crescente de degradação política, coroado pelo absurdo orçamento secreto.

O presidencialismo de coalizão, capaz de jogar pastores e assessores da base parlamentar do presidente em funções chaves, que movem montanhas de dinheiro, está em crise no mundo todo. É preciso rever o modelo, as práticas e abusos. E por isso está na mesa, oportunamente, num ano eleitoral, o “semipresidencialismo”.

Pedro S. Malan*: É assustador 2

O Estado de S. Paulo

Nossas ‘três eleições’ de 2022 são teste relevante para a capacidade e a disposição de nossa democracia para reagir à cacofonia e ao caos.

Uma nova baixa para a democracia global (A new low for global democracy, no original) é o título de trabalho recente publicado pela The Economist Intelligence Unit que classifica o “estado da democracia” por meio de cinco critérios: processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política democrática e liberdades civis. Na edição mais recente – fevereiro de 2022 –, a nota média para o conjunto de 167 países atingiu um novo limite inferior.

Ainda que encerrem certo grau de subjetividade, avaliações dessa natureza indicam algo relevante. Há muitos descontentes com a democracia e com a globalização e ambos os descontentamentos estão relacionados, no que talvez constitua uma tendência. Vale citar Adam Przeworski: “Não acredito que a sobrevivência da democracia esteja em jogo na maioria dos países, mas não vejo nada que possa acabar com o nosso descontentamento atual. Ele não será aliviado por acontecimentos políticos ocasionais ou pelos resultados de eleições futuras. A crise não é apenas política; tem raízes profundas na economia e na sociedade. É o que me parece mais assustador”.

Meu artigo do mês passado (É assustador, 13/3) abre da seguinte forma: “Começamos muito mal esta terceira década do século 21. É assustador imaginar os desdobramentos desta crise global, que transcende em muito a questão ucraniana (...). (...) terão consequências globais, geopolíticas e econômico-sociais que se projetarão por anos. As incertezas, os riscos e a volatilidade, que já não eram pequenos, acentuaram-se sobremaneira com os choques de oferta, as pressões inflacionárias e a inevitável redução da taxa de crescimento global”.

Rolf Kuntz: No cardápio, inflação e desemprego

O Estado de S. Paulo

A melhor contribuição de Bolsonaro, neste ano, seria encerrar o mandato sem grandes iniciativas e sem ameaça à democracia.

Muito mais arrumadinho, o mundo de outros tempos oferecia um cardápio de problemas com opção possível entre inflação e desemprego. Essa escolha parece uma desvairada fantasia, num Brasil com 12 milhões de desocupados, equivalentes a 11,2% da força de trabalho, e preços com alta de 11,3% em 12 meses. No quarto ano de mandato do presidente Jair Bolsonaro, multidões buscam alguma ocupação para garantir a sobrevivência, enquanto preços em alta reduzem seu poder de compra já diminuto. Mas aquele mundo certinho e misterioso para os brasileiros cabia sem dificuldade em manuais escolares, onde se encontrava um desenho especialmente fascinante.

Em 1958, o economista Alban William Phillips descreveu num estudo uma relação inversa entre inflação e desocupação. Quanto menor o desemprego, maior a inflação, e vice-versa. Para favorecer a oferta de vagas, a autoridade poderia, por exemplo, estimular o aumento do consumo, facilitando a expansão dos negócios e também das contratações. A contrapartida seria um aumento mais veloz dos preços. A teoria, resumida numa famosa “curva de Phillips”, foi discutida e criticada, mas nunca descartada integralmente.

Celso Ming: Briga defensiva contra a inflação

O Estado de S. Paulo

Entre os aspectos a analisar no pique da inflação de março está o que os economistas chamam de conflito distributivo.

É o megajogo de empurra que toma corpo na economia quando empresas e pessoas físicas tentam se compensar da inflação por meio de reajustes de preços para cima e adiamento de novas compras.

Quase ninguém esperava em março uma inflação tão alta, de 1,62% – a maior no mês de março desde 1994. Em 12 meses foi para 11,3%. Bastou a divulgação para o mercado revisar e elevar as projeções do IPCA para este ano e o seguinte.

Nesse conflito distributivo sempre alguns podem mais e outros menos. Em geral, quem mais perde são os assalariados e os que vivem de bico.

Catia Seabra: Detox à base de chuchu

Folha de S. Paulo

Aliança de Lula e Alckmin é esperança do PT em São Paulo

reaparição ao lado de Geraldo Alckmim conferiu leveza a uma semana que caía indigesta para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Após ouvir palavras carinhosas do velho rival, Lula permitiu que cinegrafistas registrassem o momento em que retribuía a gentileza a Alckmin.

As cenas foram transmitidas ao vivo, estratégia improvisada para atenuar o impacto de recentes declarações.

Lula usou as redes a seu favor. Não tem sido sempre assim. Ao vivo, já receitou cerveja como solução para guerra e recomendou o assédio a familiares de deputados em suas casas.

Também defendeu exoneração de 8.000 militares de cargos comissionados, chamou a elite de escravista e propôs debate sobre o aborto.

Líder nas pesquisas, levou a disputa à zona de conforto do presidente Jair Bolsonaro (PL): a dos costumes. Isso, sem nem ter sido indagado, e sem debate com o PT, sobre esses temas.

Vinicius Torres Freire: Bolsonaro vem aí, Lula dá foras

Folha de S. Paulo

Mesmo com inflação, presidente mantém votos com agrados e despiora no emprego

A correção da tabela do Imposto de Renda pode sair por medida provisória neste mês. Também em abril, começa a liberação do FGTS para uns 40 milhões de trabalhadores. Tem a antecipação do 13º do INSS. Acaba a cobrança de tarifa extra na conta de luz.

São medidas que não ganham eleição —nem perdem. É tudo "a vida como ela é", pequenos gestos, lembretes de que "Bolsonaro vem aí".

Em janeiro, começara a ser pago o vale-gás para cerca de 5,5 milhões de famílias do Auxílio Brasil. Em março começou o perdão de dívidas do Fies (financiamento de faculdade), que pode beneficiar um milhão de jovens ou seus pais. A antecipação do benefício do INSS não é dinheiro extra, mas alivia já a situação de uns 30 milhões de pessoas.

No mês passado, houve o baita aumento dos combustíveis. A inflação chegou ao nível mais alto em quase 20 anos, também o surto mais duradouro de carestia desde 2002-2003. O prestígio de Bolsonaro não caiu mais por causa disso. A inflação pode ter sido contrabalançada também pela despiora do mercado de trabalho.

Janio de Freitas: São as entranhas brasileiras

Folha de S. Paulo

Demonstrações que Bolsonaro deveria ser investigado com rigor não cessam

Nenhum presidente legítimo, desde o fim da ditadura de Getúlio em 1945 —e passando sem respirar sobre a ditadura militar— deu tantos motivos para ser investigado com rigor, exonerado por impeachment e processado, nem contou com tamanha proteção e tolerância a seus indícios criminais, quanto Jair Bolsonaro. Também na história entre o nascer da República e o da era getulista inexiste algo semelhante à atualidade. Não há polícia, não há Judiciário, não há Congresso, não há Ministério Público, não há lei que submeta Bolsonaro ao devido.

As demonstrações não cessam. Dão a medida da degradação que as instituições, o sistema operativo do país e a sociedade em geral, sem jamais terem chegado a padrões aceitáveis, sofrem nos últimos anos. E aceitam, apesar de muitos momentos dessa queda serem vergonhosos para tudo e todos no país.

Hélio Schwartsman: Uma arqueologia dos crimes

Folha de S. Paulo

Polêmica surgida em julgamento de nazistas ecoa até hoje nas guerras culturais

"East-West Street", de Philippe Sands, me foi recomendado por uma amiga querida. Comprei, mas o deixei na pilha de livros a ler, que cresce em ritmo mais assustador que o preço da cenoura. A guerra na Ucrânia me fez voltar à pilha e enfrentar a obra. Não me arrependi.

Sands é especialista em direito internacional. Anos atrás, foi convidado a dar uma palestra na Universidade de Lviv, na Ucrânia. Aceitou, por razões profissionais e pessoais. Lviv, que já se chamou Lwów (nome polonês), L’vov (russo) e Lemberg (alemão), é onde seu avô materno, Leon Buchholz, nascera.

O livro é a história dessa viagem e das investigações que se seguiram. Pesquisando sobre a cidade, Sands encontrou outras coincidências. Na região de Lviv, que "mudou de país" oito vezes entre 1914 e 1944, também nasceu e estudou Hersch Lauterpacht. E ali estudou, mas não nasceu, Rafael Lemkin.

Bernardo Mello Franco: O fantasma do aborto

O Globo

Na reta final da eleição de 2010, José Serra apelou ao fantasma do aborto para tentar roubar votos de Dilma Rousseff. Em desvantagem nas pesquisas, o tucano insinuou que a adversária liberaria a interrupção da gravidez. “Ela é a favor de matar as criancinhas”, acusou sua mulher, em caminhada na Baixada Fluminense.

A baixaria foi levada ao horário eleitoral. Serra se apresentou como um político que “sempre condenou o aborto e defendeu a vida”. Para sensibilizar o eleitorado religioso, sua propaganda exibiu imagens de gestantes vestidas de branco. O tucano fez pose de coroinha e prometeu governar com “princípios cristãos”.

Passados 12 anos, o tema volta a ser usado como arma eleitoral. De olho no voto evangélico, Jair Bolsonaro acusa Lula de estimular o aborto. “Para ele, abortar uma criança e extrair um dente é a mesma coisa”, atacou, na quinta-feira.

O ex-presidente tem tropeçado na língua. Há poucos dias, sugeriu que sindicalistas fossem até a casa de deputados para “incomodar a tranquilidade” deles. Uma ideia inconsequente em tempos de radicalização política.

Elio Gaspari: Lula falou de aborto, e fez bem

O Globo / Folha de S. Paulo

Toda vez que a política brasileira é envenenada pela satanização desse assunto, uma coisa é certa: alguém chegou perto de um Curupira e está sem rumo

O Curupira é um garoto de cabelos vermelhos com os pés voltados para trás. Vive no mato, e quem se aproxima dele perde a noção de rumo. Há um Brasil enfeitiçado pelo Curupira, e ele se mostrou com as reações a uma fala de Lula sobre o aborto.

O ex-presidente disse o seguinte:

“Aqui no Brasil não faz (aborto) porque é proibido, quando, na verdade, deveria ser transformado numa questão de saúde pública, e todo mundo ter direito e não ter vergonha. Eu não quero ter um filho, eu vou cuidar de não ter meu filho, vou discutir com meu parceiro. O que não dá é a lei exigir que ela precisa cuidar”.

Lula já se manifestou dezenas de vezes pessoalmente contra o aborto. Sua fala foi noutra direção, a do reconhecimento de que é um direito da mulher decidir interromper uma gravidez. Toda vez que a política brasileira é envenenada pela satanização desse assunto, uma coisa é certa: alguém chegou perto de um Curupira e está sem rumo.

O direito constitucional de as mulheres decidirem interromper a gravidez foi reconhecido pela Corte Suprema dos Estados Unidos em 1973. A decisão foi explicada no voto do juiz Harry Blackmun (republicano) e até hoje divide o país. Nações de maioria cristã como Itália, França, Argentina, Chile, Uruguai, Portugal e Espanha deram esse direito às mulheres; muita gente continua contra, mas os países não se dividiram. O que se discute é o direito. Só aborta quem quer, respeitando algumas limitações.

Dorrit Harazim: Eleição na França aumenta ansiedade global

O Globo

 ‘Melhor não haver nem uma única crise a mais — minha agenda já está lotada.’ A frase dos anos 1970 atribuída a Henry Kissinger, o até hoje mitificado guru da abusada Realpolitik americana, soa datada para 2022. É que crises globais, mesmo em cascata, são gerenciáveis, enquanto uma humanidade exausta, num mundo a cada dia mais confuso e mutante, soa outro tipo de alarme: o autoritarismo. (Nem vamos falar aqui da ameaça de derretimento do nosso único hábitat, a Terra, que teimamos em esconder de nós mesmos.)

Lá atrás, em pleno caos da Segunda Guerra Mundial, o dublê de psicólogo social e filósofo Erich Fromm havia apontado para as precondições que solidificaram a autocracia na sua Alemanha natal. Além da extrema ansiedade econômica e dos maciços deslocamentos humanos da época, Fromm citava o mundo em desarranjo, onde as pessoas não conseguiam mais imaginar quem seriam, como viveriam dali em diante. Tampouco conseguiam imaginar onde estariam seus filhos quando adultos. Por se alimentar do medo e da raiva coletivos, esse tipo de ansiedade traz em seu bojo perigos enormes para a democracia. É nessa confluência de desassossegos que nos encontramos hoje, dia em que a França decidirá pelo voto que sentido quer dar às palavras liberdade, igualdade, fraternidade.

Míriam Leitão: Olhar do indígena e do sertanista

O Globo

"Não é só o Munduruku que está sofrendo, o Rio Tapajós está morrendo, nossos peixes estão doentes. Nossa doença era a malária, hoje é o mercúrio. Deixando nós tristes, nós que somos caciques. Como vão ser as nossas crianças, nossos netos que vão viver daqui para diante? A área demarcada está sendo destruída e nós, em cima dela, doentes.” A fala é do cacique-geral do povo Munduruku, Arnaldo Kaba. Conversei com ele e duas outras lideranças. Eles são um dos mais atingidos pelo garimpo ilegal. Sete mil indígenas estão em Brasília para alertar para os riscos do PL 191.

— O PL 191, se for aprovado, vai ser o golpe final para destruir o que resta dos povos indígenas. O garimpo é uma atividade nociva aos indígenas e à natureza — disse o sertanista Sydney Possuelo, que entrevistei na Globonews.

O sertanista começou sua longa carreira na Funai com os irmãos Villas Bôas, contactou sete povos, demarcou a terra Yanomami, a maior terra indígena brasileira, e depois implantou a política do não contato com os povos isolados. Possuelo recentemente devolveu a medalha do mérito indigenista, que recebeu na década de 1990, depois que o governo deu a mesma honraria a Jair Bolsonaro. No Acampamento Terra Livre, em Brasília, Possuelo recebeu na sexta-feira uma consagradora homenagem dos povos indígenas.

Cacá Diegues: Viva a Vida!

O Globo

O que a gente pensa e deseja passa a ser a chave do juízo que faremos, na política e nas atividades sociais, de nós mesmos e dos outros

Está certo. Os caminhoneiros devem estar precisando mais do que os produtores de cultura. O Banco do Brasil reservou 8 bilhões de reais para suas necessidades, enquanto o presidente vetava o projeto, já aprovado no Congresso, que destinava metade desse valor aos produtores de cultura através da Lei Paulo Gustavo. Fausto Ribeiro, presidente do BB, anunciou que o banco e o governo estão “de braços abertos para todos os caminhoneiros”.

Numa democracia de verdade, um líder é sempre escolhido pela população para comandar a nação, atendendo às necessidades de todos os seus filhos, sem discriminação. Uma vez eleito, ele deve se tornar de todos, sem partido ou grupo social. Esse cara, num regime como o nosso, é o presidente da República. Ou seja, o capitão Bolsonaro.

Mas o capitão não gosta da gente, não quer saber de escritores, músicos, poetas, artistas de nenhuma especialidade, tem horror fóbico a quem mexe com essas coisas. Ele talvez tenha até uma certa razão – artistas estão sempre levantando problemas da nação e do povo da nação, como se coubesse a eles vigiar o que anda acontecendo de errado, anunciar o que precisa ser mudado, lutar por essas causas. Já o caminhoneiro pode ser corajoso, discordar e lutar contra o que não acha correto, mas na maioria dos casos está na cabine de seu caminhão, cantarolando com o rádio um trecho qualquer de Marília Mendonça.

Vi, essa semana, o magnífico documentário de Belisário Franca sobre Fernando Henrique Cardoso, sua eleição à presidência e os primeiros anos de governo. No documentário, “O presidente improvável”, FHC diz algo fundamental, um conceito que é a cara dele: “Não é verdade que a política seja a arte do possível; ela é, sim, a arte de tornar possível o que a gente pensa”. FHC estava certo. O que a gente pensa e deseja passa a ser portanto a chave do juízo que faremos, na política e nas atividades sociais, de nós mesmos e dos outros. Mesmo que nosso julgamento não seja tão objetivo.

Cristovam Buarque*: Os falsos adversários de Bolsonaro

Blog do Noblat / Metrópoles

Há momentos que o PT e o candidato Lula parecem falar para espelhos dentro de bolhas isoladas

Difícil, mas possível, explicar porque o eleitor poderá reeleger um presidente responsável por parte dos 660.000 mortos pelo covid, que ameaça dar golpe militar, elogia tortura, tem um governo com corrupção nos Ministérios da Saúde e da Educação, promove a destruição de nossas florestas, envergonha o Brasil no exterior, não controla a inflação, tem sido rodeado de milicianos… É possível, e a culpa não está no eleitor, ele apenas tem de escolher em qual votar no segundo turno, ou não votar em qualquer dos dois.

Apesar do lamentável balanço de seu desempenho, Bolsonaro tem dois aliados: o PT ainda hesita em falar para fora dos seus apoiadores tradicionais e os “nem-nem” cujas acusações depredam a imagem do Lula e do PT.

Sem Lula, Bolsonaro não será derrotado, mas sozinho ele não vence a eleição, precisa que os democratas não-petistas subam no seu palanque, para uma vitória no primeiro turno ou para apoiá-lo no segundo. Mas os discursos antipetistas e antilula há meses e os que serão feitos ao longo do primeiro turno tendem a inviabilizar apoio ao Lula. Os discursos “nem-nem” se transformarão em votos nulos, elegendo Bolsonaro.

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Janela para meta climática ambiciosa está se fechando

O Globo

 A temperatura média global já aumentou 1,1 °C desde o século XIX. Tal alta é responsável por todas as mudanças perceptíveis no clima, como secas prolongadas, enchentes frequentes, queimadas maiores e degelo dos polos. Para limitar o aquecimento global ao patamar atual, seria necessário zerar as emissões de CO2 imediatamente, algo absolutamente inviável. Por isso a discussão é: quanto estamos dispostos a tolerar de alta na temperatura (e suas consequências)?

Olhando para o ano de 2100, temos a opção de ver a situação piorar pouco (1,5 °C), muito (entre 1,5 °C e 2 °C) ou demais (acima de 2 °C). O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC), publicado na semana passada, estima que ainda dá para atingir o objetivo mais ambicioso, mas não há tempo a perder. Na ausência de uma queda drástica e rápida, perderemos já no final desta década a chance de chegar a 2100 com elevação média de 1,5 °C na temperatura, diz o estudo feito por 278 cientistas de 195 países.

Atingir essa meta exigiria que o mundo concordasse em cortar 43% dos poluentes até 2030 e em zerar as emissões de CO2 em 2050. Usinas elétricas movidas a carvão ou de gás deveriam fechar ou adotar a captura e o estoque de carbono. Deixar para zerar as emissões nos primeiros anos da década de 2070 significará concordar com uma alta média na temperatura global de 2 °C em 2100, o equivalente a descumprir o Acordo de Paris.

O relatório do IPCC reconhece que avanços vêm sendo feitos. O custo das tecnologias de fontes limpas de energia diminui ano a ano. Desde 2010, o preço de painéis solares e baterias para carros elétricos caiu mais de 80%. Turbinas usadas para produzir energia eólica também baratearam. Mas o ritmo de adesão às novas tecnologias ainda tem sido insuficiente.