Correio Braziliense
Até agora, Lula não havia se pronunciado
publicamente sobre o papel das Forças Armadas, consciente da influência do
ex-presidente Jair Bolsonaro junto aos militares
Somente ontem o presidente Luiz Inácio Lula
da Silva assumiu, de fato, o comando supremo das Forças Armadas, após uma
transição difícil, com gestos de descortesia em relação ao presidente da
República eleito e ao seu ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, por parte de
ex-comandantes — que culminaram com o não comparecimento do almirante de
esquadra Almir Garnier Santos, ex-chefe da Marinha, à solenidade de troca de
comando, na qual deveria passar o timão para Marcos Sampaio Olsen.
Em entrevista aos jornalistas credenciados no Palácio do Planalto, Lula afirmou que as Forças Armadas não são o “poder moderador como pensam que são”, numa alusão à ideia-força que ainda predomina entre os militares, que são o povo brasileiro em armas e tutores das instituições republicanas. Essa é uma velha doutrina, responsável por sucessivas intervenções militares e golpes de Estado, como o da Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder, e o golpe cívico-militar de 1964, que destituiu o presidente João Goulart e nos levou a 20 anos de regime autoritário.
Lula reiterou que o papel dos militares,
definido na Constituição, “é a defesa do povo brasileiro e da nossa soberania
contra possíveis inimigos externos”. Também defendeu Múcio, que vem sendo muito
criticado por ter defendido a tolerância com os acampamentos à porta dos
quartéis, principalmente o do QG Exército, que serviu de estado-maior para o
assalto ao Palácio do Planalto, ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal
(STF), no domingo passado.
“Quem coloca ministro e tira ministro é o
presidente da República. O José Múcio fui eu quem trouxe para cá. Ele vai
continuar sendo meu ministro porque confio nele, relação histórica. Tenho o
mais profundo respeito por ele. Ele vai continuar”, afirmou o presidente, num
dia em que a reação ao atentado golpista prosseguiu com toda a força contra os
envolvidos, inclusive o ex-ministro da Justiça e Segurança Públicas, Anderson
Torres, cuja prisão está decretada.
Até agora, Lula não havia se pronunciado
publicamente sobre o papel das Forças Armadas, consciente da influência do
ex-presidente Jair Bolsonaro junto aos militares. Vinha mantendo um
relacionamento efetivo com os novos comandantes do Exército, da Marinha e da
Aeronáutica, mas não esperava o que ocorreu no domingo, quando todos os
dispositivos de segurança dos Poderes falharam, inclusive a Guarda
Presidencial. Houve um colapso das cadeias de comando, que precisa ser
investigado para que os responsáveis sejam punidos e não ocorra novamente.
Haiti não é aqui
Lula tem consciência de que existe uma
questão militar em aberto. O Congresso nunca debateu profundamente o novo papel
das Forças Armadas, a partir da Constituição de 1988. Numa ordem democrática,
essa definição não cabe aos militares de forma autárquica — deve ser debatida
amplamente para que se tenha um consenso na sociedade. Isso até hoje não
aconteceu, 37 anos após a eleição de Tancredo Neves no colégio eleitoral. De
certa forma, os governos Lula e Dilma contribuíram para que essa relação se
tornasse litigiosa.
Lula, involuntariamente, ao atribuir
missões de ordem prática às Forças Armadas que fossem atreladas à projeção do
Brasil na cena internacional como potência regional, inclusive com a formação
de um novo complexo militar-industrial, cuja maior expressão é o projeto do
submarino nuclear. Entretanto, sem elaborar e consolidar entre os militares e
na sociedade uma nova doutrina de defesa, na qual não exista um “inimigo
interno” a ser combatido.
De certa forma, as missões de pacificação
em guerras civis sobre a bandeira da ONU, particularmente no Haiti, onde se
formou uma espécie de “irmandade”, e as sucessivas operações de Garantia da Lei
e da Ordem (GLO) durante as crises de segurança pública, ressignificaram a
mentalidade salvacionista-institucional que predominou nas Forças Armadas desde
a Proclamação da República.
O ponto de inflexão, porém, foi o governo
Dilma Rousseff. Ex-guerrilheira torturada, a presidente da República não
escondia seus ressentimentos em relação aos militares e nem de longe manteve a
cordialidade com que Lula os tratava. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi
a gota d’água. Oficialmente instalada em 16 de maio de 2012, para investigar
crimes, como mortes e desaparecimentos, cometidos por agentes representantes do
Estado no período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988, revolveu o
passado. O escrache dos militares envolvidos com a tortura e os assassinatos
nos quarteis despertou solidariedade da caserna e a velha narrativa do inimigo
interno, comunista, subversivo e covarde.
O objetivo não era punir e nem indiciar
criminalmente qualquer um que tenha violado os direitos humanos nessa época,
mas amenizar a dor dos familiares de envolvidos, prestar esclarecimentos à
população e elaborar documentos para estudo histórico-social. Entretanto,
tornou-se um instrumento de ajuste de contas moral com os militares. O troco
veio com a Operação Lava-Jato, que atingiu em cheio a elite política do país, e
o impeachment de Dilma, que abriram caminho para a prisão de Lula e a eleição
de Jair Bolsonaro.
A coisa foi degringolando.
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