O Globo
Bolsonaro já é passado, mas seus crimes
ficarão como cicatrizes na democracia. Lula assume e ocupa posição inédita na
história do país
Quando estiver hoje no Congresso sendo
investido no cargo de presidente da República, pela terceira vez, Lula estará
assumindo uma posição inédita na história do Brasil e estará atingindo o ápice
de uma saga pessoal e política. Ninguém antes dele foi presidente três vezes.
Ninguém no Brasil transpôs em tempo tão curto dois polos extremos que vão da
prisão ao Planalto. Nenhuma história política brasileira tem tantos
inesperados. Na primeira vez em que ele assumiu, a crônica da época destacava o
impressionante trajeto da infância pobre ao posto mais alto da República. Desta
vez, fica demonstrada a sua incrível capacidade de se reconstruir.
Não serão anos fáceis os que virão. O governo enfrentará o campo minado por armadilhas, rombos e conflitos espalhados pela administração que se encerrou. O último capítulo foi tão lamentável quanto o próprio governo. Jair Bolsonaro fez uma live cheia de ambiguidades em vez de um balanço formal de seu governo, falou apenas para seus seguidores e não para o país, pegou o avião presidencial e foi para Miami. O aparato que existe para apoiar viagens oficiais do presidente foi usado para a fuga dos seus deveres constitucionais. Antes de mais esse uso indevido dos recursos dos contribuintes ele deixou nova prova de que cometeu crime contra a democracia. “Como foi difícil ficar dois meses calado trabalhando para buscar alternativas”. Isso é confissão de que conspirou. Que alternativa constitucional existe para um derrotado nas eleições que entregar o poder ao vitorioso?
Bolsonaro já é passado. Mas seus crimes
ficarão como cicatrizes na democracia brasileira. Ele segue impune. E isso tem
consequências institucionais. Cria-se o precedente. Ficam avisados todos que o
presidente pode durante uma pandemia ter o mais tenebroso dos comportamentos,
pode cometer crimes de responsabilidade, pode conspirar contra a democracia e
sair ileso para férias em Miami no avião presidencial.
A economia do governo Lula, sob a batuta do
ministro Fernando Haddad, terá o enorme desafio de reduzir o déficit e atender
às demandas setoriais que baterão nos cofres do Tesouro com todos os seus
justos argumentos. Os indígenas pedirão mais dinheiro para inaugurar o
Ministério dos Povos Originários, o Meio Ambiente precisará reconstruir seus
órgãos de controle, a Saúde precisará de reforços para correr atrás das
crianças que estão por aí expostas a doenças que a humanidade já venceu, a
Educação terá de ajudar as crianças a recuperarem o conteúdo perdido. O combate
à fome precisará de um plano imediato. Para onde se olhe na Esplanada dos
Ministérios há urgências. Mas será necessário apontar de maneira convincente
para o horizonte do controle das despesas públicas.
Lula no primeiro governo recebeu uma boa
herança das mãos de Fernando Henrique. Em tudo, as transições são experiências
opostas. Em 2003, o país tinha superávit primário e várias reformas estavam
dando frutos. Fernando Henrique determinou que o governo trabalhasse nos
últimos dois meses para ajudar o sucessor. Agora há sequelas de várias outras
crises. Será preciso enfrentar a vencer uma herança maldita. Sim, desta vez, é.
O presidente Lula quando entrar hoje no
gabinete presidencial representará a vitória não apenas dele, mas das muitas
forças políticas que conseguiram superar divergências em defesa do patrimônio
democrático comum. É natural que essas forças voltem a divergir a cada ato do
governo e mesmo dentro dele há inúmeras contradições que vão aflorar e muitas
vezes entrarão em conflitos. Lula precisará arbitrar e nem sempre será possível
conciliar. Há contradições antagônicas dentro do seu governo. Por outro lado,
há uma saudável e desejável diversidade humana e política. O predomínio ainda é
de homens brancos, mas o Ministério que será empossado hoje pelo presidente
Lula é o que mais tem a cara do Brasil.
Quando Lula foi solto escrevi aqui uma
coluna com o título “Festa e fúria no solo do Brasil”, em que citei Guimarães
Rosa. “O mais importante e bonito do mundo é que as pessoas não estão sempre
iguais, ainda não foram terminadas.” E é isso também que faz a beleza da
democracia. Ela nunca está terminada. Hoje o Brasil verá mais um recomeço.
Feliz Ano Novo.
O texto e a competência da colunista são extraordinários.
ResponderExcluirQue prazer dá em ler e ouvi-la expor.
Feliz Ano Novo,Miriam.
Brilhante texto da Míriam! Parabéns a ela e ao blog que divulga o trabalho dela!
ResponderExcluirO ser humano se encontra num tubo de ensaio.
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