segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Angela Alonso* - Depois do temporal

Folha de S. Paulo

O senso de responsabilidade uniu as autoridades competentes, sem picuinha partidária

Neste Carnaval, o desfile teve enredo de Gabriel García Márquez. Em "Crônica de uma Morte Anunciada", um cabra marcado para morrer vai trombando com conhecedores do risco que, distraídos com uma festa, não se mexem. Depois lamentam a efetivação do prenunciado.

Aqui também a simultaneidade de morte e festa tomou o noticiário, em atenção intermitente entre euforia e desespero. Depois de dois séculos de pandemia e quatro milhões de anos de desgoverno Bolsonaro, os brasileiros mereciam celebrar, vacinados e poupados de contendas sobre "golden shower". Mas a hesitação entre alegria e luto diz muito sobre o Brasil.

Uma abordagem dos eventos ganhou ares literários, enquadrado no gênero "tragédia". O termo dominou postagens e notícias, disseminando junto seu sentido de destino inelutável. Ninguém poderia deter forças sobre-humanas, uma revolta da natureza.

Outra pegada foi estadocêntrica. Cabia ao governo evitar e remediar. Lula entendeu que honrar os mortos e zelar pelos sobreviventes era mais importante que assistir a desfiles. A atitude do presidente surpreendeu porque a República se desacostumou a ter governo. O senso de responsabilidade uniu as autoridades competentes, sem picuinha partidária, em ação coordenada para prover no presente e prevenir no futuro.

Executivo, Legislativo e Judiciário podem atacar a especulação imobiliária, proteger áreas ambientais e garantir direitos de grupos vulneráveis. Mas a ação decisiva nem sempre é do Estado porque parte dos problemas não está sob sua alçada.

O acontecido no Sahy, antiga vila de pescadores, acontece em muitas partes. Os ricos são poucos e, no Brasil, pouquíssimos, mas são criadores de hábitos. Ir à praia de veraneio ficou tão massificado que parece costume imemorial, mas antes do século 20 ninguém tostava na areia. Os estratos altos inventam modas e se apropriam de espaços.

Logo, legião dos estratos médios corre sôfrega a imitá-los. Requisitam infraestrutura e serviços. Abre-se a temporada de excursões da CVC. Tudo a atrair os pobres, que serão os servidores. Por isso, mostrou o sociólogo Norbert Elias, modismos distinguem por pouco tempo. Os ricos, ao perderem um paraíso, fogem para outro, "exclusivo". Deixam atrás de si o rastro da ocupação predatória que convocaram. Ao migrar, levam a dinâmica consigo, com seus imitadores e empregados. E um novo lugar intocado vira outro conspurcado.

É uma corrida segregacionista. A busca por distância social orienta as escolhas de locais de moradia e lazer dos estratos altos. Como no Carnaval, anseiam por insulamento, em camarotes de abadás caríssimos, frequentados por celebridades de cachês exorbitantes, religiosamente registradas nas mídias. É uma gente que se diverte, se casa e negocia entre si. A ação do Estado é pouco eficaz sobre esse padrão inscrito num modo de vida.

O Momo volta todo ano, assim como o drama. No clímax, a ação caridosa dos ricos "conscientes" de sua "situação privilegiada" sobe aos píncaros. Depois some, como uma fantasia guardada para o próximo desfile.

Passada a comoção, volta a vida segregada, bem como as reclamações sobre a falta de empreendedorismo dos pobres e a inépcia do Estado. Sob essa pressão, os governos tornam a responder aos reclamões. Enquanto isso, os sob risco são enxotados de manchetes de jornais e feeds de influencers. Retornam às suas vidas invisíveis, na espera pelo próximo temporal.

*Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

2 comentários:

  1. O ministro da justiça com sua pança pulando no carnaval de Salvador como se nada tivesse acontecendo e os mortos da tragédia de São Paulo ficaram em segundo plano

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  2. Acima: Anônimo fake ataca novamente.

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