Folha de S. Paulo
O senso de responsabilidade uniu as
autoridades competentes, sem picuinha partidária
Neste Carnaval, o
desfile teve enredo de Gabriel García Márquez. Em "Crônica de uma Morte
Anunciada", um cabra marcado para morrer vai trombando com conhecedores do
risco que, distraídos com uma festa, não se mexem. Depois lamentam a efetivação
do prenunciado.
Aqui também a simultaneidade de morte e
festa tomou o noticiário, em atenção intermitente entre euforia e desespero.
Depois de dois
séculos de pandemia e quatro milhões de anos de desgoverno Bolsonaro,
os brasileiros mereciam celebrar, vacinados e poupados de contendas sobre
"golden shower". Mas a hesitação entre alegria e luto diz muito sobre
o Brasil.
Uma abordagem dos eventos ganhou ares literários, enquadrado no gênero "tragédia". O termo dominou postagens e notícias, disseminando junto seu sentido de destino inelutável. Ninguém poderia deter forças sobre-humanas, uma revolta da natureza.
Outra pegada foi estadocêntrica. Cabia ao
governo evitar e remediar. Lula
entendeu que honrar os mortos e zelar pelos sobreviventes era mais importante
que assistir a desfiles. A atitude do presidente surpreendeu porque a
República se desacostumou a ter governo. O senso de responsabilidade uniu as
autoridades competentes, sem picuinha partidária, em ação coordenada para
prover no presente e prevenir no futuro.
Executivo, Legislativo e Judiciário podem
atacar a especulação imobiliária, proteger áreas ambientais e garantir direitos
de grupos vulneráveis. Mas a ação decisiva nem sempre é do Estado porque parte
dos problemas não está sob sua alçada.
O
acontecido no Sahy, antiga vila de pescadores, acontece em muitas partes.
Os ricos são poucos e, no Brasil, pouquíssimos, mas são criadores de hábitos.
Ir à praia de veraneio ficou tão massificado que parece costume imemorial, mas
antes do século 20 ninguém tostava na areia. Os estratos altos inventam modas e
se apropriam de espaços.
Logo, legião dos estratos médios corre
sôfrega a imitá-los. Requisitam infraestrutura e serviços. Abre-se a temporada
de excursões da CVC. Tudo a atrair os pobres, que serão os servidores. Por
isso, mostrou o sociólogo Norbert Elias, modismos distinguem por pouco tempo.
Os ricos, ao perderem um paraíso, fogem para outro, "exclusivo".
Deixam atrás de si o rastro da ocupação predatória que convocaram. Ao migrar,
levam a dinâmica consigo, com seus imitadores e empregados. E um novo lugar
intocado vira outro conspurcado.
É uma corrida segregacionista. A busca por
distância social orienta as escolhas de locais de moradia e lazer dos estratos
altos. Como no Carnaval, anseiam por insulamento, em camarotes de abadás
caríssimos, frequentados
por celebridades de cachês exorbitantes, religiosamente registradas nas
mídias. É uma gente que se diverte, se casa e negocia entre si. A ação do
Estado é pouco eficaz sobre esse padrão inscrito num modo de vida.
O Momo volta todo ano, assim como o drama.
No clímax, a ação caridosa dos ricos "conscientes" de sua
"situação privilegiada" sobe aos píncaros. Depois some, como uma
fantasia guardada para o próximo desfile.
Passada a comoção, volta a vida segregada,
bem como as reclamações sobre a falta de empreendedorismo dos pobres e a
inépcia do Estado. Sob essa pressão, os governos tornam a responder aos
reclamões. Enquanto isso, os sob risco são enxotados de manchetes de jornais e
feeds de influencers. Retornam às suas vidas invisíveis, na espera pelo próximo
temporal.
*Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
O ministro da justiça com sua pança pulando no carnaval de Salvador como se nada tivesse acontecendo e os mortos da tragédia de São Paulo ficaram em segundo plano
ResponderExcluirAcima: Anônimo fake ataca novamente.
ResponderExcluir