segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Martin Wolf - A democracia iliberal chega a Israel

Financial Times / Valor Econômico

Opositores dizem que reformas vão despedaçar proteções contra arbitrariedades do governo

A política israelense está em crise. Um grande número de pessoas tem participado de manifestações nas ruas contra as “reformas judiciais” da coalizão de direita, intensamente criticadas. O presidente de Israel, Isaac Herzog, até chegou a declarar que “não estamos mais em um debate político, mas à beira do colapso constitucional e social”. O programa deste governo é de óbvia importância para o futuro do país. Mas também tem um significado mais amplo. Isso se deve em parte ao papel de Israel na região. E ainda ao fato de que o que acontece levanta questões sobre como uma democracia pode se transformar em uma autocracia por meio do domínio de uma maioria que não está submetida a nenhum controle.

Larry Diamond, da Universidade Stanford, argumenta que a democracia liberal tem quatro elementos necessários individualmente e suficientes coletivamente: eleições livres e justas; participação ativa dos cidadãos na vida cívica; proteção dos direitos civis e humanos de todos os cidadãos; e um Estado de direito que rege e protege todos os cidadãos, até os mais poderosos. Aqueles que vencem eleições não têm o direito de pôr em perigo nenhum desses elementos essenciais da democracia liberal. Se eles procuram criar tal Estado, estão subvertendo a democracia. A democracia, então, é um sistema de governo da maioria, limitado por controles e equilíbrios institucionais. Dessas restrições, nenhuma é mais importante do que o Estado de direito.

É por isso que a União Europeia tem tanta dificuldade com as “democracias iliberais” da Hungria e da Polônia. É por isso também que as “reformas” jurídicas propostas pelo governo israelense são tão controversas. Para os opositores, as reformas vão despedaçar as proteções contra ações arbitrárias do governo e, assim, colocar em risco as liberdades individuais e a previsibilidade jurídica em um país que depende de investimentos estrangeiros e de uma economia de mercado dinâmica.

Não é preciso dizer que não é assim que o governo vê suas reformas. Ele acredita que a Suprema Corte minou sua capacidade de governar ao examinar até mesmo a “razoabilidade” de suas ações. Isto também coloca os assessores jurídicos do governo em uma posição questionavelmente poderosa no desenvolvimento de políticas. Para completar, o tribunal abriu as portas para uma enxurrada de litígios ao reconhecer o direito de qualquer um a processar o governo e, deste modo, paralisar atividades econômicas necessárias. Em resumo, a Suprema Corte se excedeu para muito além da conta, o que ameaça a prosperidade e a democracia.

Isto é o que aprendi em conversas com um alto integrante do governo. Para saber se faz sentido, falei com Netta Barak-Corren, professora de Direito Constitucional da Universidade Hebraica de Jerusalém. Barak-Corren concorda que a Suprema Corte de fato reduziu as exigências para entrar com processo contra o governo. A Corte também reverteu decisões dele, não com frequência, mas de forma consequente. Isso cria consequências para o papel dos assessores jurídicos governamentais, o que afeta a capacidade do governo de funcionar.

Ela explicou, porém, que esse ativismo foi em grande parte uma resposta à inadequação da estrutura democrática, que se resume a apenas um Parlamento unicameral, em que a maioria simples é suficiente para aprovar qualquer lei, até mesmo uma que tenha relevância constitucional. Essa estrutura teria o potencial de dar poderes desmedidos a uma maioria, sem paralelo em outras democracias. Até o momento, esses poderes têm sido limitados mais pela cultura política e pelas circunstâncias do que pela lei.

O argumento-chave de Barak-Corren, no entanto, é que as propostas da coalizão – ou seja, politizar as nomeações para o Judiciário, inclusive para tribunais de instâncias inferiores, e tornar extremamente difícil para a Suprema Corte reverter ações do governo, ao mesmo tempo em que possibilita que o Knesset derrube suas sentenças – não são necessárias nem suficientes para corrigir os problemas na estrutura da democracia israelense e no comportamento do Judiciário. Esse relato me convence de que as reformas são principalmente uma tentativa de ganhar mais poder. Elas permitiriam que o Executivo operasse com pouca necessidade de prestar contas à Suprema Corte e enchesse o Judiciário com seus partidários (possivelmente incompetentes), mesmo em áreas que têm pouco a ver com políticas.

Essas mudanças também têm implicações econômicas que podem ser importantes, mesmo para o bem-sucedido setor de alta tecnologia, que tem contribuído de forma considerável para o crescimento da economia israelense. Note-se que hoje o Produto Interno Bruto (PIB) real per capita de Israel é quase o equivalente aos do Reino Unido ou da França.

O grande perigo econômico criado pela democracia iliberal, que podemos observar em muitos outros países, é o de um “capitalismo clientelista”. Nesses sistemas torna-se fácil demais para o corrupto ter sucesso na política, no governo, no Judiciário e nos negócios. Isso, por sua vez, desencoraja a participação de novos concorrentes honestos na economia, porque são sempre eles os que mais dependem de um Judiciário e uma burocracia independentes. Os que estão dentro do sistema têm o poder do seu lado. Os que estão fora dependem do Estado de direito.

Não é preciso dizer que a chegada deste novo governo criou muitas outras preocupações, em especial quanto ao futuro dos territórios ocupados. A ideia de anexação da Cisjordânia, por exemplo, é potencialmente letal para um Israel democrático, a menos que seja concedida cidadania plena aos palestinos, o que transformaria Israel em um Estado binacional. Mas na área mais restrita da reforma jurídica, a questão é se o governo está preparado para limitar o que busca às mudanças que os especialistas consideram necessárias para lidar com os problemas reais, ou se está determinado a obter o controle político sobre o sistema judiciário e, desse modo, abalar o Estado de direito.

Vale a pena notar neste contexto que a história econômica de Israel demonstra que o sistema jurídico do qual o governo reclama hoje tão amargamente não impediu seu sucesso no passado. Isso também sugere que essas reformas dramáticas são desnecessárias em si mesmas e visam outros objetivos além dos declarados. Benjamin Netanyahu deve pensar duas vezes antes de causar danos irreparáveis.

 

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